terça-feira, 31 de dezembro de 2013

O Caderninho


Então, eu tenho um caderninho colorido. Para anotar meus pedidos para 2014. Tudo o que espero que aconteça no ano que vai nascer. Pego a caneta, e ela fica no ar. O que eu espero deste novo ano?
Faltam-me as palavras, como tem acontecido nos últimos dias.
Queria poder acreditar que basta escrever, pedir, para acontecer. Talvez, se eu acreditasse, as palavras voltassem. Elas não gostam de quem duvida delas. E eu tenho duvidado, ah, tenho sim. Tenho duvidado de tanta coisa, neste final de ano. Tenho duvidado inclusive de mim.
Já fiz meu balanço, foi fácil até. É sempre fácil olhar para trás. Editar as memórias, tirar conclusões. Mesmo quando dói, ainda assim. Retrospectiva.
Difícil é olhar para frente. Não é que falte a esperança, esta vai morrer depois, bem depois. É deste jeito que sou. Sonhadora, otimista, persistente.
Mas faltam palavras. E quando faltam palavras é como se faltasse o chão. Ou a respiração.
Meu alimento, meu ar.
Podia pedir muita coisa. Deus sabe que sim.
Podia pedir paz, amores bons, dinheiro no bolso, saúde, todas estas coisas tão óbvias, e, ao mesmo tempo, tão necessárias e importantes. Podia pedir justiça, e, de novo, Deus sabe como preciso. Que se faça justiça.
Podia pedir pelas pessoas que amo, que estejam sempre por perto, e que fiquem bem. Que todos os problemas tenham a devida importância, nem mais e nem menos, que sejam na medida certa, apenas. Que se resolvam, de uma forma ou outra. Que façam crescer, renascer, ou não precisavam acontecer.
Podia pedir mais coragem, menos medo, menos vaidade. Mais igualdade.
Podia pedir tanta coisa. Tanta coisa, que até peço, mas é todo dia. Peço por meus amigos, minha família,  meus queridos. Peço mesmo.
Agradeço por eles, sempre. Não preciso de um ano nascer, para saber, para poder agradecer. Eles são meu presente.
Mas, apenas por um instante, queria pedir para acreditar. Na virada. Em Deus. Em mim, em você, enfim. Acreditar, tão somente, e simplesmente.
Na magia de um ano bebê, como fosse a primeira página de uma nova e bela história. Que pode, e vai acontecer.
Encheria meu caderninho de sonhos e fantasia, das infinitas possibilidades do raiar de cada dia.
Nas páginas coloridas, uma história, inteirinha em branco, para escrever.
E, se ainda me restasse um pedido, eu mais pediria.
Que não me faltem de novo as palavras, nunca mais, por favor. Nem o amor.
Podem me roubar tudo na vida. Mas não podem levar minha essência, meu ar e meu chão.
Isso, não.

Dani Altmayer

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Fragmentos / Reflexões sobre 2013


                               Coisas que aprendi em 2013, um ano...intenso. Imenso.


Só quando reconhecemos nossa própria fragilidade é que podemos encontrar nossa força. É preciso saber-se fraco para ser forte.

Às vezes a vida te dá uma rasteira, é quando você descobre outro ângulo de visão: o chão. Depois, ela te tira o chão, aí não tem jeito, não. É botar as asas para funcionar, aprender a voar. Sobreviver é isso. Saber sobrevoar.

Nem sempre dá para entender, mas sempre se pode aprender. Porque, como dizia o poeta: "a vida tem sempre razão. "Ou não.
É que, como falou o outro, "há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia. "Deve ser.

O mundo lá fora não é um lugar seguro. Aqui dentro, bom, depende. De mim. Ele pode ser, sim.

A vida é aventura. Uma trilha, divertida e perigosa, a ser percorrida com atenção e presença. Com intuição e cuidado. O caminho pode estar certo, mas se o passo for falso...ferrou. Não adianta se arrepender. Bobeou, dançou.

Nada é maior do que o instinto de sobrevivência, no entanto. É ele que te faz prosseguir, apesar.

Assumir responsabilidades, e não culpas. A culpa te prende, amarra, te mata. A responsabilidade liberta.

Liberdade...quantos anos demora?

Nenhuma escolha é definitiva, apenas suas consequências. Estas sim, são.
E ingenuidade não é virtude, não.

Todo controle é ilusão.
Não estamos no controle, se outros estão.

Não brigue com o vento, ajuste a vela. Mude de bordo. Ou mude o rumo.
Não abandone o barco, você é o capitão.

Estamos todos muito feridos, expostos ou não. Quase sem exceção.

Só dói porque estamos vivos. Crescendo. Dor de crescimento.

Mas, basta um sorriso, e você ganha o dia.
Um abraço, e todo cansaço se alivia.

Uma única lágrima fala mais do que mil palavras.

Anjos existem, difícil é reconhecer.
Mas, se com sorte, isso acontecer, não os deixe partir.
Tem coisas valiosas demais para se perder.

Bolhas de sabão.
Amor invisível.

Revisão de conceitos, valores, defeitos.
Regras, acordos, verdades absolutas.
Vaidades absurdas. Na lata do lixo, sem dó nem piedade.
Foi, já era.

Que só fique o que tiver que ficar. O resto, o tempo se encarrega de levar.
Desiste, tem coisa que não vale mesmo reciclar.

Tantos desencontros, alguns bons encontros. Reencontro.
Alguns fins, muitos começos. Recomeço.

Pedalar é preciso, viver não é preciso. Viver é incógnita.

Perder o medo nem sempre é opção. Desistir, também não.


Decidir não resistir, e se entregar. Acordar, não se acomodar.
É verão, e o sol insiste em brilhar.

Somos grãos de areia, poeira cósmica. Transitórios e imperfeitos.

Deus sabe o que faz. Assim eu espero.

A certeza de que só uma coisa no mundo vale a vida que levamos.
É o amor que doamos, e recebemos.
O amor que vivemos.

E...

Tem coisas que não dá para esquecer. Tudo o que é tocado pela pele do afeto se torna eterno. Tatuagem na alma.
Por mais que o tempo passe, sempre que é dezembro, eu lembro.
É Natal, faz calor, e pode chover.
Por onde andará você?

Escrever é só um jeito de continuar.
A gente nem sempre vê. Mas ele sempre vem.


Dani Altmayer



segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Carta para o Meu Papai Noel


Quando a gente era criança, ninguém se vestia de Papai Noel, lá na casa da vó Lourdes e do vô Hugo. O máximo que conseguíamos eram uns barulhos estranhos vindos do andar de cima, supostamente da chaminé, e depois a árvore cheia de presentes. De certa forma, acho que isso até aumentava o mistério. O único Papai Noel de que lembro era um magrinho, que ia distribuir brinquedos, na tarde do dia 24, em uma vila operária na rua de trás, e que espíavamos escondidos,  com um pouco de ciúme.
Num certo Natal, você, por algum motivo, resolveu nos contar que ele não existia. Misto de decepção com um "eu já sabia". De alguma forma os Natais ficaram diferentes a partir daquele dia. Encenações do presépio, músicas e devoção religiosa, estas continuaram. Lembro que um dos primos foi o pinheiro de Natal, uma vez. Muito engraçado. Outro, a estrela, Tinha os anjos, os reis, o menino, Maria e José. Eu de narradora. Enfim, como bons cristãos, com o bispo  quase sempre presente, celebrávamos o aniversário do menino Jesus. Seu nascimento, o evento da natividade, a razão maior desta data, por vezes já meio esquecida.
Claro que haviam presentes, e muitos. E a ceia, e todo o resto. Mas não havia o Papai Noel. E, ok, ele até pode ser uma invenção da Coca Cola, com sua roupa vermelha, suas renas, o trenó, os duendes. Mas vamos combinar que é uma boa invenção. Genial. Uma figura simpática, carismática, ele responde às cartas dos meninos e meninas do mundo inteiro. Dá a volta neste mundo, voando, em uma noite mágica e iluminada. Ele ri gostoso, hohoho. E parece com o vô da gente. ( ou com o pai, no meu caso).
Por muito tempo acreditei que ele não existia. Você me contou, e eu sempre acreditei em tudo o que você fala. Papai Noel não existe, você disse. Não sei porquê , mas você falou. Modéstia, talvez, já explico porquê.
Você estava enganado, e hoje,uns quarenta Natais depois, eu consigo entender. E eu precisava te dizer. Passei este tempo todo pensando que ele era uma invenção, mas não. Talvez ele não exista para todo mundo, ou em todo o mundo. Mas existe para mim. No meu mundo. Sempre existiu.
Hoje, (já mais para lá do que para cá), descobri que o Papai Noel é, na verdade, um para cada um de nós. E ele tem uma identidade secreta.
Eu descobri a do meu, e fiquei muito feliz. Na verdade, era até meio óbvio, a barba branca, a barriga,  só não vê quem não quer. Você foi ficando, a cada ano, mais parecido com ele. :)
Sim, pai, desde o início, era você. Quem fazia aqueles barulhos lá em cima, quem comprava os melhores presentes. Quem sempre esteve presente. Quem me deu quase tudo, o nome, a vida, a família. O amor, a palavra, a profissão,a educação. Dignidade. Quem me apoia, e segura, seguro. Quem  me pega no colo, até hoje. Quem ouve, atento, até o pedido não feito. E atende.
Quem esteve sempre ali, em todos os Natais do meu filho. "Vô, eu nunca passei um Natal longe de ti". Quem não me deixa desistir, esquecer, ou cair. Quem fez de si mesmo um porto tranquilo, o ninho, o abrigo. O meu melhor amigo.
O que me deu de presente, neste Natal, o maior que eu já recebi: esperança. O que eu mais precisava.
Devolveu para mim o verdadeiro espírito desta data.
Só você poderia ser ele. Meu Papai Noel é meu pai, e foi assim, desde o princípio.
Obrigada, pai e você sabe porquê. Por tudo, mas principalmente por você existir. E por não me deixar desistir.
Feliz Natal!
E não mente mais para mim... nunca mais!

Dani Altmayer

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Prefiro Homens que Elogiam os Óculos

   
Era uma noite quente de domingo, janeiro em Porto Alegre. Acabáramos de sair do cinema, eu e uma amiga. Como a noite pedia, e o filme tinha sido muito triste, decidimos parar em um bar na Padre Chagas para tomar uma cerveja. O lugar estava quase vazio, era domingo, e era janeiro. Logo que chegamos, dois caras que estavam em uma mesa ao lado se aproximaram e começaram a puxar assunto. Uma conversa meio boba, sobre carros e apartamentos, numa tentativa explícita de impressionar. Eu e minha amiga apenas ouvíamos, sem interesse, até o momento em que eles resolveram brincar de adivinhação. Primeiro eles concluíram que estávamos participando do Fórum Social Mundial, o que não era verdade. Diante de nossa negativa, chegaram à brilhante conclusão de que éramos professoras, então. Só podíamos ser professoras. Motivo da dedução: as duas usavam óculos. Esta simples e, a princípio, inocente afirmação bastou para que eu fizesse o que já deveria ter feito desde o começo: expulsei os dois, sem mais. E fiquei furiosa. Admito que foi uma reação um tanto exagerada.
   Minha amiga me olhou com espanto, e eu expliquei: trauma. Uso óculos desde os três anos de idade, devido a um sério problema de visão. Contava minha mãe que, quando os coloquei, fiquei maravilhada com a nitidez do mundo ao meu redor, como se estivesse enxergando pela primeira vez. Usei óculos por toda a infância, e isso foi durante os anos 70, o que significava um modelo mais feio do que o outro, pode apostar. Até hoje, quando olho os álbuns, fico com pena da menina que se escondia atrás daquelas aberrações. Ela até era bonitinha, hoje consigo perceber. Mas aquelas armações enormes, de lentes grossas, esverdeadas, não ajudavam em nada. Além da questão estética, minha pouca visão prejudicava  meu senso espacial, e eu vivia me batendo em todas as quinas de móveis, o que resultava em pernas sempre cobertas por hematomas. Ganhei a fama de desastrada, e não a perdi até agora. E haja yoga para recuperar a consciência corporal. Aliás, não praticava esportes pelo mesmo motivo. Muito cedo me refugiei nos livros, e passei meus primeiros anos assim, mergulhada nas aventuras que não podia viver. Os livros acobertavam minha timidez. Me poupavam de mim. E me redimiam do resto.
No início da adolescência, pude usar lentes de contato, e finalmente me livrar dos apelidos carinhosos, entre eles “quatro olhos”, para citar apenas um, dos mais famosos. Usei lentes e fui feliz até os 18 anos, quando então desenvolvi uma alergia que me impediria de voltar a usá-las pelo resto da vida. Crise existencial. Pânico total! Como ir para a balada, que naquela época chamávamos simplesmente de “noite,” usando óculos? Mesmo com a música do Paralamas do Sucesso bombando nas rádios, não era uma opção. Eu não nasci de óculos, mas quase. Ninguém olharia para uma menina de óculos, era o que eu pensava. A solução, então, foi passar a sair sem eles, e correr os riscos inerentes de não se enxergar um palmo na frente do nariz.  Além dos óbvios hematomas, a chance de beijar sapo por príncipe triplicou. Isso não me incomodava, afinal, dizem, o que os olhos não vêem, o coração não sente. Mas havia mais um problema: sou levemente estrábica, defeito que se corrige com os óculos, mas se evidencia quando estou sem. E se agrava quando bebo além da conta. Como resultado, muitas vezes ouvi esta pergunta, assim mesmo, na cara: ué, você é vesga? Resolvi então, providenciar uma franja gigante, que caía sobre meus olhos, estrategicamente. Isso me conferiria um  ar de mistério e sedução, imaginei. Por sorte, era o final da década de 80. Assim passei meus anos de juventude. De olhos semicerrados e franjão.  Ah, e de ombreiras. As lembranças que tenho deste tempo são, obviamente, borrões mal definidos, e não poderia ser diferente. Acredito que as bebedeiras também não ajudaram muito. Bom, tem coisas que é melhor esquecer mesmo. As ombreiras, por exemplo.
     Só bem mais tarde fui fazer as pazes com aquele objeto, tão essencial na minha vida. Hoje uso óculos, se não com orgulho, ao menos com resignação. Com aceitação e certa dignidade. Tenho uma pequena coleção, e não tiro para nada. Bem, para quase nada.
O bom de amadurecer é isso, nossas perspectivas mudam, os valores também. Hoje estou muito mais interessada em ver bem do que em ser bem vista. Bem resolvida, pelo menos até algum engraçadinho qualquer me dizer:
 -Você tem olhos bonitos, não deveria se esconder atrás dos óculos.
          Grrr.
Traumas. Se duvidar, a gente morre antes deles.

Dani Altmayer

Oficina de crônicas Fabrício Carpinejar em fevereiro/março 2013.
                                                     
No primeiro dia, ele perguntou a cada um sobre os traumas. Depois mandou escrever uma crônica, enviada por email. Resposta dele:

" genial, escreve muito bem, fiquei com vontade de ler mais e mais.
poderia terminar.
- Você tem olhos bonitos, não deveria se esconder atrás dos óculos.
- Prefiro homens que elogiam os óculos.
mas gostei do desfecho.
beijos"
 Acabei usando a frase no título do texto.
E o trauma, de tão grande, impediu a publicação até hoje. Hoje, junto com algumas resoluções de ano novo, decidi postar. E superar?  ;)                   

domingo, 8 de dezembro de 2013

Carta para o Hugo

Faz muito tempo que ele se foi. Quase trinta anos. Quando passa tanto tempo assim, não dá para confiar muito na história. Ela vira memória, e memória é afeto. Edita a história. E esta é a história que vou te contar. São pedaços do meu amor que entraram na história. Algumas coisas são reais. Outras, posso ter inventado. Memória inventa história. Amor também. E tudo bem.
Então, era uma vez um homem chamado Hugo. Como você, ou quase. João Hugo era o seu nome.
Ele tinha um cheiro bom. Cheiro de tabaco e de mar. Fumo de cachimbo, marinheiro que era. Um velho homem do mar. Aquele homem chamado Hugo amava o mar, e as coisas do mar, e da água. Assim como a sua avó, filha dele. Ele era meu avô. Avô do seu pai. Seu bisavô.
Ele me ensinou muitas coisas.
Com ele aprendi a amar o mar e as coisas do mar. A gostar de navegar.
Foi ele quem me ensinou a nadar. A respirar dentro da água. Ele jogava a gente do barco, sem pena. E mandava a gente fazer bolhas. "Fecha o nariz, solta o ar pela boca." E te joga, sem frescura. Ele não tinha muita paciência para frescuras. Ele me ensinou a me jogar, enfrentando o medo.
Foi ele quem me ensinou a comer risoto de frango com bolachinha picada, de água e sal. Faço isso até hoje, e a tradição já passou para a próxima geração. Ele fazia o melhor risoto do mundo, o risoto do barco do vô. Se tem coisa que memória não esquece é gosto, e cheiro, pequeno Hugo. Fico com água na boca só de lembrar.
Ele me ensinou a amar o mar, os ventos, as velas, os céus infinitos, sua imprevisão. A gostar de risoto com bolacha, e outras coisas simples, assim.
Ele tentou me ensinar a jogar tênis. Não teve lá muito sucesso, vou pular esta parte. Mas me ensinou a gostar de esporte. Ele jogava, muito bem. Sua avó também.
Ele nos levava para longos passeios de bicicleta pela cidade de Rio Grande. Íamos a lugares impensados. Um bando de netos, e seu capitão. Hoje, quando pedalo, levo um pouco dele comigo.
Com ele brincávamos de escalar. Ele subia as dunas de areia da Quitéria, com todos os netos amarrados por uma corda. Ele ensinou que a união faz a força. Que a subida é dura, mas  que lá em cima é sempre muito bonito. Toda subida vale a pena. Depois, escorregávamos pelas dunas, rolando, morrendo de rir. E aprendemos que, para baixo, todo santo ajuda.
Ainda na Quitéria, fazíamos trilhas pelo meio do mato, e sempre, todas as vezes, ele perguntava: "vamos complicar?" E  se metia nos lugares mais difíceis, com sua faca, ou canivete, não lembro. Ia desbravando caminhos. Ele me ensinou que a vida  muitas vezes, é a gente que complica. Que há sempre um jeito. Ele mostrou que, se não há uma passagem, a gente inventa. Nossas estradas, a gente é quem abre.
Você tem o nome dele. É uma homenagem bonita. Ele era um homem bonito. Um homem forte, um pouco duro. Como os homens do mar. Mas tinha um coração de manteiga. Você pode achar estranho, é que os homens são assim, na nossa família. É só a casca, eu acho, que é grossa, de tanto suor, sal, e sol.
Ele tinha voz de trovão, e eu tinha um pouco de medo. Mas eu o amava, porque o amor é deste jeito mesmo, às vezes amamos com medo.
Ele tinha um abraço forte, e uma risada rouca. Olhava bem dentro do olho da gente, com aquele olho azul que nunca mais vi igual. Em nenhum dos filhos, netos, e bisnetos, mesmo os de olhos azuis, aquele azul se repetiu. Era turquesa, sabe? Da cor do mar de algum lugar, muito distante. De um lugar que nunca visitei. De um lugar do qual tenho saudade. 
A pior saudade é daquilo que não vivemos, é a que mais dói. Você saberá disso, um dia. Talvez até já saiba. Você já deve saber, eu sei.
Aí, tudo o que a gente tem é a história que nos contam. E tudo bem, também. Não importa o tempo, saudade ainda é memória. E são sempre os pedaços de afeto que inventam as melhores histórias.

Com amor, da tua prima
 Dani Altmayer




quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Dois


" O amor é a união de duas solidões que se respeitam."
Rainer Maria Rilke


Não espero que você ande na mesma velocidade que eu. Não sempre.
Não precisa estar ao meu lado o tempo todo. Vai ter horas em que eu vou querer ir para lá, e você vai querer ficar. Ou ao contrário. 
E tudo bem, você pode ir, se souber como voltar. Se não for para um lugar onde eu não possa mais te alcançar.
Quero caminhar de mãos dadas por muito tempo, mas também quero minhas mãos livres para escrever, vez em quando.
As suas mãos livres para criar.Nossas quatro mãos livres para, escolher.
Para o que for, apenas ser.
Quero correr sozinha por um momento, e depois te esperar. Deixar você voar solo. Preparar um ninho onde você queira pousar. Para onde deseje retornar.
Quero saber dosar meu ritmo para acompanhar o seu. Sem me afastar muito, nem jamais te atropelar.
Quero que meus passos possam te conduzir, se necessário, sem nunca atrapalhar. 
Que meus sonhos não interfiram com os seus. Que, sendo os mesmos, possamos ser diferentes.
Que um não seja o reflexo do outro, mas seu melhor espelho.
Quero ser alguém especial, não para você, e sim, por você. Porque você me faz querer.
Quero a distância apenas suficiente para que, se um tropeçar, o outro possa amparar.
Que ela tenha a exata medida do alcance de um abraço. Porque toda a dor se dissolve nos teus braços.
Estar junto é poder estar longe, mesmo ao lado. É estar perto, mesmo distante. 
E estar tudo bem, do mesmo jeito.
É perceber, e manter, o fio invisível, a todo instante. 
Fio que une sem amarrar, e sem prender. Que é, todo ele, feito só de respeito.
É saber que, ainda que a estrada leve a desvios, e ela leva. Apesar disso, o ponto de chegada será o mesmo da partida. Porque tem que ser.
Só assim, para o fio não se romper. Para a gente já não se perder.

Dani Altmayer

domingo, 1 de dezembro de 2013

Onde o Sapato Aperta

eu, pro exemplo, nunca usaria este sapato, mas tudo bem ;) tem gosto para tudo, ainda bem.
Eu fui pediatra antes de ser mãe. Era outra médica, então.
A teoria é muito diferente da prática, sempre. É fácil falar, difícil é fazer.
Depois que a gente se atrapalha toda com as horas da mamada, que esquece o horário do remédio, que coloca o bebê na nossa cama para garantir alguns minutos de sono. Depois que a gente quase desmaia com um pequeno corte no super cílio, que a gente chora junto com as cólicas, que a gente tem vontade de brigar com o mundo por um mundo melhor, muda tudo. A vida ganha outra perspectiva.
Nada substitui uma experiência. Só ela te dá a real capacidade de se colocar no lugar do outro. E na maioria das vezes, a gente só aprende assim, na marra, depois de cravar na própria carne.
Mas não precisava ser deste jeito, só deste jeito. Ou será que precisa?
Ficar doente para entender a doença, queimar-se para aprender que o fogo queima, cair para conhecer o tamanho do buraco?
Todo mundo tem um palpite, um modo de fazer melhor, uma ideia genial. Regras, existem aos montes. Só que nem todas se aplicam. Há que ter muito cuidado com a crítica, com o querer ajudar, com a receita prescrita. Nem sempre o outro está pronto. nem sempre ele pode comprar.
Usamos filtros de nossas próprias dores e conceitos para julgar, avaliar, reprovar, apreciar. Até aí, nada de errado, não tem como escapar. É como somos moldados. Mas, quantas e quantas vezes, mordemos a língua? Engolimos nosso próprio veneno, como antídoto de uma situação da qual não pudemos escapar. Simplesmente, por não pensar: e se eu estivesse neste lugar? A gente nunca sabe, de verdade. Até estar.
Empatia, para mim, é isso. A capacidade de se transportar, por alguns momentos, para a casa do outro. De sentir, ou imaginar, onde e como este outro vive. De onde ele veio, que histórias ele tem, as bagagens que carrega, o lixo que produz.
É respeitar, ainda que não vivenciar. Mesmo sem concordar, mesmo sem querer, ou poder participar. É apenas não condenar. Trocar, muitas vezes, um conselho por um abraço. Um silêncio, amoroso.
Não é fácil, nem estou dizendo que é. Nem sempre a gente consegue, mas não conseguir não impede ninguém de tentar. Não custa experimentar.
Afinal, a gente nunca sabe onde vai, um dia, parar.
Eu posso ser você, amanhã. E vice versa, ao contrário. Você, no meu lugar.

Dani Altmayer





sábado, 30 de novembro de 2013

O Acaso que Nos Protege

Ontem eu recebi uma notícia boa. Para falar a verdade, eu não a recebi. Eu a encontrei, quase por acaso, se acaso houver. O que me fez lembrar da música: "o acaso vai me proteger, enquanto eu andar distraído".  E já me distraio, cantando, desafinada, o refrão na minha cabeça. Sou assim.
Então, voltando. Ontem eu encontrei esta boa notícia. O meu nome no segundo lugar de um concurso nacional de micro contos, do qual já nem lembrava que estava participando. Sabe aquela coisa de última hora, quando você pensa, por que não? Foi assim. Sem expectativas ou pretensões, que enviei uma pequena história. E foi assim, vagando pelo facebook, distraída, que encontrei a minha boa notícia. Difícil descrever a sensação ao ver o meu nome ali, naquela lista. Tem certificado, até prêmio em dinheiro, mas não lembrei de nada naquele momento.
Só o que podia pensar era em gratidão. A boa notícia não podia ter vindo em melhor momento. Veio para me lembrar que há sempre um motivo para agradecer. Que a alegria é possível mesmo em meio à mais profunda dor. É possível sorrir chorando, e ser feliz estando triste. A vida dá e leva, o tempo todo. Expande e contrai, como nas batidas de um coração. Sístole e diástole. Altos e baixos. Isso é estar vivo. E é nestas subidas e descidas que a gente vai fortalecendo, as pernas e o espírito. Encontrando o equilíbrio preciso.
Hoje eu queria agradecer, simplesmente. Espero que este seja o primeiro de muitos passos, porque amo fazer isso que faço. Mas se não for, já está valendo. O significado desta boa notícia é outro. Enquanto houver corações batendo, enquanto houver acasos, e gente distraída, e sonhos para se sonhar, há possibilidades. Infinitas. Há esperança.
Queria agradecer a todos os que vibraram junto comigo, porque não tem nada melhor do que compartilhar alegrias. Obrigada por todas as mensagens, e palavras de incentivo, vocês não imaginam a diferença que isso faz. Coisa boa estar assim, distraída, e "tropeçar"em tanta gente legal por aqui. Valeu!

domingo, 24 de novembro de 2013

Reticências

Rio,1981

(...seis anos se passaram...)
O relógio marca as horas. O calendário, as semanas e os meses.
A vida, a gente marca em outra folhinha.
Marca no diário dos afetos bons, das dores inevitáveis, dos micos e alegrias impagáveis. Das conquistas compartilhadas.
(... coisas assim...)
No caderno das rugas adquiridas, dos sonhos perdidos e renovados. Em encontros especiais.
No cotidiano dos desencontros, desenganos, tropeços e recomeços. Nos fios de cabelo branco, no filho que passou da mãe.
(... crescemos, enfim...)
Assim é que se conta o tempo. Em histórias que nunca terminam.
( ... temos tanto para te contar...)
Regando lembranças, nasceram crianças, criamos jardins. Mudamos de ideia.
(...mudamos de lugar...)
Seis minutos, seis dias, seis anos. Tanto faz.
Existe um tempo que não se mede pelo sol.
Tem outra rotação.
É tempo que não troca de estação, que nunca vai embora.
Que não muda com a mudança, eternizado está, na memória.
AMOR de uma vida não acaba com a morte.
Apenas toma outras formas, transforma.
Este é o único tempo que não finda, ao fim.
(... e estamos todos bem...)

Dani Altmayer





sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Pontas Soltas- Fragmentos

                             Bons Tempos
Ela sentou do meu lado, na lotação. Tinha cheiro doce, cheiro de uva.
Senti saudade de um tempo em que o único medo que eu tinha era de engasgar com uma bala soft.
                                                          *******************
                            Nostalgia
Era um dia de vento e sol. O céu azul, de nuvens apressadas, me fez lembrar de uma estrada, por onde nunca passei. Engraçado. Dentro de mim vivem lembranças que não me pertencem.  Memórias de coisas que nunca aconteceram. Recordo, como se fosse hoje, o dia em que não te conheci. Sinto falta do beijo que não recebi. Da vida, que, não lembro. Vivi? E carrego comigo a dor de uma saudade que já não é minha. Uma saudade imensa, alheia.

                                   
             
                                                       ************************
                 
                           
                                                         Selva                                    
                          Tem gente que mata um leão por dia.
                      Tem gente que não. Eu, por exemplo.
                               Eu mato ilusão, todo dia.

                     
                                                    *********************
                                     
                                        Pedido        
                          ...e, quando o choro me cegar, e o chão me faltar.
                          Que eu siga o sol, que eu aprenda a voar.
                          Que eu ache um jeito.
                           Que eu saiba  rezar.



                                           *********************************

                                           P.S.
                                 Você. A cura, e a causa da minha insônia.

  Dani Altmayer
                             

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Vinte e Duas Horas.






Parece que quando a gente tem pressa, o tempo prega uma peça, se arrasta, pesado, em segundos que parecem minutos, e minutos que parecem horas. Ainda bem que acabou, agora é só fechar o caixa da Luisa, fechar a loja, e pronto. Começar a vida. Minha vida começa às dez horas da noite. Quando o shopping fecha.
Tenho que pegar o ônibus, e a Ana se arrumando. Se eu perder o de agora, só daqui a meia hora. Ela não sabe, não anda de ônibus, tem carro. Não sei como tem carro, com este salário de merda. Grande coisa, ser gerente desta joalheria. Ela se acha. Seu João deve dar um por fora, para ela. Já passei e repassei as contas, está sobrando 854 reais. Não consigo entender. A Ana vai me encher a paciência. Vou perder o ônibus.
Vou passar este caixa bem rápido, a Luisa nunca erra. Metódica, certinha, uma chata. Mas muito honesta, correta, confio nela. Boa funcionária. Preciso me apressar, ou vou perder meu cliente. Valter é de Curitiba, viaja à meia noite e meia. Combinamos uma rapidinha no hotel do aeroporto. Coisa básica, mas grana boa. Gente boa.
Não acredito que a Ana não percebeu que está sobrando dinheiro. Que gerente é esta? Se estivesse faltando, ela ia gritar. Também não sei, tá com a cabeça na lua. Muito estranha esta mulher. Bonitona, mas esquisita. Não sei o que seu João viu nela, pra dar tanta confiança.
Por que a Luisa está me olhando deste jeito, não consigo entender. Ela não tem como saber, lógico que não. Vamos logo com isso, fechar esta loja, tenho mais o que fazer, que o João não escute.
A Ana está com pressa. Tem dias que ela fica assim, sem paciência. Não consigo falar da sobra. O Vanderson quer tanto um videogame, prometi há mais de um ano. Ia dar certinho. E ainda sobrava para eu fazer minhas luzes, esta raíz tá uma coisa.
A Luisa está muito estranha, será que ela desconfia? Não pode ser, ninguém imagina.
A Ana desligou o computador, disse que está tudo certo, fechou. Deu boa noite. Falo, ou não falo? 
- Ana, tem uma coisa que preciso te dizer. 
- Luisa, estou morrendo de pressa. Você vai perder o seu ônibus. Outra hora a gente conversa.
 Falei que ela tá muito esquisita. Bom, azar dela. Ela que se entenda com o seu João, depois. Pego a minha bolsa, meto o envelope dentro. A Ana nem repara, tonta. Já está na porta, tomou banho de perfume. Corro até a parada.Bem a tempo.
Entro no carro, ainda tremendo. Preciso demitir a Luisa, não tem outro jeito. Mas como? O João não pode nem sonhar.
Amanhã penso em algo, indenização, uma grana extra. O João paga uma miséria para a coitada. Quem sabe compro o tal videogame para o filho dela, o Anderson? Valterson?  Nunca sei.
Bom, depois vejo isso. Agora é cuidar da minha vida. Que começa quando o shopping fecha. Às vinte e duas horas.

Dani Altmayer
Exercício Oficina Escrita Criativa MóduloII- troca de narrador. (bem confuso!)

terça-feira, 12 de novembro de 2013

À Deriva- Fragmentos

       
                 
         Mesmo lugar

Meu tempo é emprestado. E a trilha das pegadas que sigo sempre acaba no mar.

              ******


          Não Tem Volta

   É tarde demais para quem atendeu ao canto da sereia.

               ******

         Sufoco

Você por cima. Gemendo, suando. Resfolegando.
É como dia que tem que chover e não chove. (Pesado, úmido, abafado.)
Demorado.


              ******

       Metáfora

 Tudo bem, então. Se não puder ser com você, que seja com alguém. Como você.

             ******

      Pensamento

 Algo sempre dá errado. Ela planta brisa, mas só colhe tempestade.

          ******
    
             Dani Altmayer

Exercício de mini ficção- Oficina de escrita Criativa Módulo II



segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Aceitação

Jaime Goldberg photography

O tempo, que arrasta certezas, não é senhor das respostas.
(Ninguém é.)
Algumas perguntas nunca serão respondidas. Alguns silêncios não serão preenchidos.
Nem todas as dores serão curadas. Algumas só serão transferidas.
O tempo, ele passa sozinho. Como a gente.
Independente. Intolerante.
Indiferente, quase frio. Não adianta tentar segurar.
É da natureza do homem querer parar o tempo. Em vão. Esquece, não é coisa de se agarrar.
Tempo é mais do que sopro. É vento de primavera, não deixa nada no lugar.
Levanta as folhas mortas. Arranca o que está podre, o que não tem raíz.
Desmancha cabelos, e ninhos, sem maiores cuidados.
Em troca, traz e espalha presente. Outra semente, um novo grão.
Que germina ou padece. Que vinga, ou não.
Depende, do adubo e da vontade. Depende, da verdade e do chão.
O tempo é feito um passarinho.
Ele não perdoa. Voa.
Escapa pela mão.

 PS:  Então, tempo é para cuidar. O tempo que há.

Dani Altmayer 

sábado, 2 de novembro de 2013

O Som de Cada Um

Toda dor é solidão.
Lembro quando a minha mãe faleceu, há seis anos. Umas duas semanas depois, eu estava em uma daquelas festas de final de ano de empresa, fazendo um esforço extra humano para me distrair. Em uma conversa com colegas, uma falou: "nossa, como você está bem, né? Nem parece que acabou de acontecer".
Sério?
Alguém se foi. Algo se perdeu. Ele adoeceu, ou morreu. Ela te deixou.Você se separou. Sua vida partiu, desmoronou.
E ninguém diz.
Você sai na rua, e tudo está tão igual. As pessoas riem, e brigam, e andam. E falam, o tempo todo.
Tem gente esperando o ônibus, pegando táxi. Mais adiante um casal se beija. O chip do celular é anunciado, aos gritos. Conversas entreouvidas, entrecortadas, uma música alta na loja de roupas. Faz barulho, lá fora. Os sons atravessam seus ouvidos sem fazer sentido. Estilhaços.
É verão, o sol brilha forte, e ofusca seus olhos, escondidos em óculos escuros, enormes. Olhos que ardem, de lágrimas residentes, pendentes.
Da vida que segue, ela também pendente, sem saber para onde.
Você vai ao supermercado, faz compras, corta o cabelo. Toma banho, se perfuma. Come, e dorme. Acorda. Trabalha. Até fala. Sorri. Vai a festas, enfim.
E ninguém diz.
Você quer parar o mundo, mas o mundo não para. Logo mais é Natal.
Você quer o mundo em silêncio, para fazer par com o abismo que está dentro de você. Mas o mundo não cala.
Você está tonto, e o mundo gira. Você segura firme, mas ele roda, rodopia.
Dá voltas, te exige. Em círculos, sempre os ciclos. O circo continua.
Está faltando uma metade, um pedaço, uma perna, um abraço. Abraço também é pedaço.
Mas ninguém vê. Ninguém diz, assim, só de olhar para você.
Não podem saber, não ao certo.
É que ninguém sabe da dor que não a sua.
E ela tem um ritmo só dela. Só seu. Bate de um jeito, dentro de cada peito. 
Toda dor é silenciosa e íntima. Mesmo quando gritada, é profunda.
Uma dor é sempre secreta, ainda que compartilhada.
E não menos real, por não ser dividida. Por estar escondida.
A dor cala somente a alma de quem a sente. Cala só.
Toda dor é única, pessoal e intransferível. Impressão digital.


Dani Altmayer



sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Outro Sonho

É um sonho. Estou sonhando, e sei que é um sonho.
Não faz mal, estou feliz, mesmo sabendo.
Você está no meu sonho. Faz tempo que não te vejo. Nem em sonhos.
É um sonho confuso, como são os sonhos.
Tem tanta gente no sonho, gente demais. Mas tem você.
Por mim, bastaria você, no meu sonho.
Se eu pudesse mandar nos sonhos, mandaria todo mundo embora. Esvaziaria o sonho, reduziria. Deixaria bem simples.
No meu sonho só caberia você. E eu. O básico.
Não posso, no entanto. Não se controla sonhos, que pena.
Então, é mais ou menos assim, este sonho: eu, você, um monte de gente no meio. Um pouco confuso.
Você  me vê, sorri para mim, entre as gentes. Entre tantos.
Aproxima-se, e entrega, escondido, um papel amassado. É importante, você diz, em segredo.
Guardo no bolso, com muito cuidado, o coração disparando. Para ler depois.
Quero muito ler, mas deixo para depois.
A gente sempre guarda para depois o que é importante.
Um depois que nunca vem.
Acordo antes.

Dani Altmayer  

"O seu amor, a sua ternura, eram apenas um sonho. Mas valeria a pena aceitar sonhar um amor que queremos viver na realidade?"
Simone de Beauvoir

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Sem Paradas



  O ônibus está lotado, que saco. Tinha esperança de viajar sozinha, mas, pelo tamanho da fila, nem pensar. Dezembro. Faz calor na rodoviária suja. Entrego a passagem ao motorista, e procuro meu assento. Bem no fundo, comprei de última hora. O bom é que não para no caminho. Vai direto.
  Pouco depois, minha companheira de viagem chega, esbaforida. Quase perdeu o ônibus, me diz. Não estou com sorte, mesmo. Penso, mas não falo. Ao menos é magrinha, uma mulher pequena. Não vai ocupar muito espaço. Ela está na janela, eu no corredor.
  Senta e começa a mexer na bolsa. Fico desviando de seus cotovelos, enquanto ela escava seu território. Acha o celular, liga para a prima, para a mãe, e a prima de novo. Repete a mesma história de como o trânsito é louco nesta época do ano em Porto Alegre, de como quase perdeu o ônibus, de como está precisando de uns dias de descanso, depois de tudo. Não, não viu mais o Carlos Eduardo, graças a Deus. Aquele filho da puta. Sim, está indo bem, dadas as circunstâncias. Não sabe a que horas vai chegar, liga da Junção.
  Desliga, e começa a jogar Candy Crush, com som. Apoia o cotovelo na divisória entre nossos bancos. Eu afundo meus olhos no livro, com meus braços colados ao corpo. Só mexo as mãos, o mínimo necessário. Não gosto de ficar encostando, me dá agonia. O ar condicionado está um gelo, ainda bem que eu trouxe um casaquinho. Faço uma ginástica para vesti-lo, sem usar os braços.
  Ela pede passagem para ir ao banheiro, na volta pisa no meu pé. Pede desculpas, é apertado ali. Está acostumada a viajar na classe executiva, mas este ônibus não tinha. Bem mais espaçoso lá, e dão um copinho de água. Até vale pagar quase o dobro. Concordo.
  Ela senta, logo depois o telefone toca: "pre- pa -ra." Levo um susto, estava quase cochilando.  É o Carlos Eduardo, dá para acreditar? Aquele, mesmo. Depois de todo este tempo. Esquece, ela tá em outra. Não interessa, ela não quer ouvir. Não quer saber, a Martinha que se exploda. Fica com ela, faz bom proveito. Casa! Bate o telefone na cara dele (modo de dizer), e começa a chorar. Finjo que durmo, mas ela começa uma nova exploração na bolsa. Quer um lenço, não acha, e me cutuca. Não sou o tipo de mulher que anda com lenços, desculpa.
   Ela  limpa o nariz na manga da blusa, funga bem alto, e liga para a Júlia. A Júlia não acredita que o Carlos Eduardo apareceu, depois de todo este tempo. É verdade, posso confirmar. Logo agora, que ela estava se recuperando, ia tirar uns dias na praia, ficar longe de tudo. Por que é sempre assim, quando a gente tá bem? Hein? Parece que eles tem um radar, os filhos da puta.
  Acabou a bateria, no meio da conversa. A tomada do ônibus não funciona, nem a internet a bordo. Ia tentar um Skype. Ela desliga o tablet, conformada. Guarda o celular.
  Pede licença para pegar a mochila, que está acima dos bancos. Tira dali uma lata de coca, e um pacote de salgadinhos com cheiro de vômito. A coca está quente, ela derrama um pouquinho. Procura os lenços, não tem, nem eu. Oferece um salgadinho, não, obrigada. Tenho intolerância ao glúten. Ela me olha, espantada, e diz: nem parece!
  É noite já, sou obrigada a tirar os óculos escuros. Não consigo ler, com esta luz fraquinha. Olho para ela, de canto. Estou enjoada com o cheiro, do salgadinho, e do perfume doce. Não digo nada. Ela, quando fica triste, precisa comer. Sem parar. Ansiedade, né? Para provar isso, abre um pacote de Bis. Eu até gostaria de um ou dois, mas ela não oferece, desta vez. Come todos.
  Com a boca cheia, conta a saga do Carlos Eduardo, aquele. Eu quero dormir. Coitada, passou por tanta coisa. Não foi fácil, tanta decepção. Homens, né? Todos iguais. Agora está ali, renascida das cinzas, uma, qual é mesmo o nome? Fênix, isso mesmo. Pronta para outra. A prima vai apresentar um amigo, e tal. Parece que o Carlos Eduardo sentiu o cheiro, impressionante. A volta dos mortos vivos, me diz. Não é justo, concordo. Sim, eles tem um radar. Concordo.
  Estamos chegando, ela pede meu celular para ligar para a prima. Vai descer na estrada, a outra vai buscar. Muito querida, esta prima, a Carmen. Está ajudando nesta fase difícil. E aquele filho da puta enchendo o saco de novo. Não lembra o número da Carmen, mas tem anotado, em algum lugar. Recomeça a escavação da bolsa. Telefona para a prima, adivinha, guria, quem ligou?  Deixa a moça curiosa, quer contar pessoalmente. Escova os cabelos, retoca o batom. Coloca (mais) perfume. Desvio, mas borrifa um pouco em mim. Espirro.
  Antes de sair, diz:
- Olha, obrigada pela força. Você foi um anjo de me ouvir.
  Concordo.
- Tão bom a gente poder dividir um pouco, né? Quase não tenho com quem falar.
  Suspiro. Penso no Carlos Eduardo.
  Ela me abraça com força, e se despede.
  Percebo, então, que não consigo mexer meus braços. Vou precisar de ajuda. Grudaram.

Dani Altmayer

sábado, 19 de outubro de 2013

Sem piedade


Na avenida, carros andam mais lentos do que prédios.
Edifícios crescem, velozes, feito truque de cinema.
Brotam do chão, antes plantas.
Gigantes espelhados, de concreto armado.
Onde era vazio, ou casa, ou apenas nada. 
Surgem de lugar algum. Pré moldados.
Vingam da pedra, intrépidos, ligeiros.
Empilham-se, andares e vidas.
Compartimentam-se flores, e dores, em imensas sacadas.
Fechadas.
Perdem-se de vista, na vista de outras janelas.
Suspendem-se jardins, e alegrias.
Progridem acima, ao alto, avante.
Competem com coqueiros, em altura, e passarinhos.
Arrasam com canteiros, e sonhos, e amores quase perfeitos.
Entalam risos e canções, e cadeiras na calçada.
Engaiolam-se, em torres, vizinhos de elevador.
Acomodam-se, inquietos, sujeitos.
Enjaulam suas solidões sem sol.
Na modernidade de vidro e de lata,
Faz frio, faz calor.
O asfalto arranha a garganta.
E a cidade, arranha o céu.

Dani Altmayer

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Quem ri por último


Ana arruma a mesa pela décima vez, Paulo desconfia:
- Que neura é essa, mulher? Até parece que quem vem jantar é a rainha da Inglaterra.
Ela quer que fique tudo bonito, como na casa da Lúcia. Mais bonito, até. Olha para o vaso de flores. Nunca pensou que flores do campo fossem tão caras. Paciência. Não ia perder para a outra.
- Você colocou a cerveja no freezer, Paulo? Não quero oferecer cerveja quente.
- Ana, relaxa, é só o Fábio e a Lúcia. Eles são de casa, tá tudo no controle. Você tá gostosa, hein?
Ana confere mais uma vez sua imagem no espelho: vestido curtinho, florido, sandália de salto, o cabelão lindo, santo alisamento. É, tô gostosa, concorda. Pensa na Lúcia, deixa escapar um sorriso. Tão sem sal.
Vai na geladeira, pega uma cerveja, e serve dois copos.
- Pra esquentar.
Como é bom ter a casa sem as crianças, para variar um pouco. Só o som da TV, na novela das oito. Nem está assistindo. Quando as visitas chegarem, vai botar uma música. Já separou os CDs. Nada muito romântico, para não dar bandeira. Coisa suave. Um pagodinho, a Paula Fernandes, o Diogo Nogueira. Fábio gosta. Tão diferente do marido, entende de música, de livro. Fala até uns poemas. Tem assunto, sabe conversar. Deve ser porque é casado com uma professora. A Lúcia dá aula de português. Sem graça!
Paulo sabe falar de carro e de futebol. Os dois trabalham juntos, o Paulo e o Fábio, há anos. Em uma revenda de automóveis. O Fábio é gerente, o Paulo mecânico. Jogam futebol todo sábado. Esta é a primeira vez que vem jantar, fora o aniversário do Júnior, ano passado. Ana caprichou na lasanha. Fez até uma salada verde, o Fábio gosta. Paulo não come verdura, só carne, e massa. Por isso a barriga, depois reclama.
Estão atrasados, Ana fala que a culpa deve ser da obra no viaduto. Anda tudo trancado para aquelas bandas. Deixa escapar um suspiro. Está nervosa, a Lúcia deixa ela nervosa. Ainda mais agora. Tudo bem, vai dar tudo certo. O Paulo nunca vê nada, mesmo. Depois da terceira cerveja, só fala do Grêmio. A Lúcia, coitada, não fede nem cheira. Nem bebe, é quietinha. Duas pessoas tão diferentes, o Fábio e a Lúcia. Casados há quinze anos, sem filhos. Vai entender.
- Está quente aqui, vou ligar o ar.
- Não, mulher. Pra que gastar? Abre a janela, deixa entrar a fresca da rua.
Pão duro, como sempre. Um chato. Mania que tem de chamar de " mulher". Ana vai até a janela, abre a cortina, vê o carro do Fábio. Estão chegando. Sente um arrepio na espinha, ao ver o Fábio descer, de bermuda e camiseta preta, cabelo molhado. Todo cheiroso, delícia de perfume. Comprara até um igual para o Paulo, mas não ficou a mesma coisa.
Lúcia dá um beijo na Ana, entrega um pote de sorvete. Sobremesa, diz ela. Está diferente, mais bonita, deve ser o vestido soltinho.
Fábio disfarça, não chega nem perto. Está esquisito.
Alcança uma garrafa de champagne para o Paulo, que estranha:
-Onde é a festa?- pergunta.
Fábio não fala nada, baixa os olhos. A Lúcia é quem responde, radiante:
- Para comemorar com vocês, agora podemos contar. Estou grávida, de doze semanas! É uma menina, como o Fábio queria. Vai se chamar Vitória.
Olha em volta, e sorri. Elogia:
- Nossa, Ana, que beleza! Até parece que você sabia...  adoro flores do campo, minhas preferidas. Uau, esta mesa está linda mesmo. Arrasou!
Ana fecha a janela, liga o ar. Está muito quente, ali.

Dani Altmayer
( exercício para Oficina Escrita Criativa- módulo II- "Realismo sujo" )

domingo, 13 de outubro de 2013

A Nossa Música Nunca Mais Tocou


 Outro dia eu li uma frase: "a verdade só dói em quem está vivendo uma mentira."Fiquei pensando nisso. Se a mentira é uma doença, a verdade é que nem injeção. Dói muito na hora, depois fica ardendo um pouquinho. Então passa, e você fica curado. Livre.
 Hoje eu fui ao cinema, sozinha. Lá, onde a gente se encontrou da primeira vez, porque você sabe, eu não gosto de shoppings. Quando o filme acabou, o tempo estava lindo, e tomei um choque de realidade. Sair da escuridão de uma história fantástica para a claridade do dia me assustou. Fiquei meio tonta, e decidi ficar um pouco, para me ambientar. Não foi de propósito, mas sentei na mesma mesa em que sentamos. Tomei a mesma água. Fiquei observando as pessoas, o lugar, tomando notas no meu caderninho, sobre o filme que acabara de ver. Queria comentar com você. Eu ainda quero comentar tudo com você, força do hábito. Fotografei com meus olhos a lembrança dos teus. Tudo ali é a tua cara. Precisei ir embora.
 Peguei um táxi para voltar, ele pediu a direção. Disse a ele que fizesse o mesmo trajeto daquela vez. Queria fazer o caminho de volta. Não tocou a mesma música, nem poderia. A música era secreta, como a gente. O rádio estava ligado, e tocava Caetano. "Todo dia ela faz tudo sempre igual... " Não teve este tempo para nós.
 Cheguei em casa, e ninguém me beijou. Não era noite, mas dia. Chorei um pouquinho. Não me importei, chorar me faz bem. Não foi choro de dor, nem alegria. Foi de ardência. Uma lágrima cai sempre que uma ilusão é perdida.
No entanto, hoje você esteve comigo, como se fosse real. Foi minha companhia. Talvez pela última vez. Talvez ainda não. Mas logo, é certo, você será a mais doce lembrança. Você, meu querido engano, será ausência. Aceito, acredito, e quero.
Não se preocupe, eu entendi. A injeção foi bem aplicada. E vai fazer efeito. Já está fazendo. Mais cedo, ou mais tarde, não interessa o tempo, eu vou me curar. Eu espero

Dani Altmayer

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Caraminholando

 Não dirijo. Não tenho carro. Uso bicicleta, ônibus e lotação para me locomover. Mas não me queixo, gosto de ser passageira.
 Apesar de viver correndo, não tenho pressa. Minhas ideias costumam surgir nestes momentos solitários, no tempo que gasto me deslocando daqui para lá. Ou de lá para cá. São instantes de devaneios, pensamentos perdidos, uma espécie de sonolência criativa. Um tempo para caraminholar. Bom, às vezes até durmo, mesmo. E sonho, quando estou precisada.
Nenhum lugar é melhor do que a rua, para ver a vida como ela é. Para observar, e ouvir, cada coisa. Acontece de tudo, na calçada. Às vezes, acontece comigo.
 Hoje, por exemplo. Estava eu, na esquina de casa, esperando a lotação. Numa boa, curtindo o solzinho. Distraída, não vi ele chegar. Um homem, como qualquer outro, loiro, de seus cinquenta anos, um sorriso bonito. Chegou falando:
 " Não sei se compro uma kitnet na rua Joana Angélica, perto da lagoa. 
    Ou uma casa. Casa tem que ter cachorro, sabe. Eu gosto de cachorro. 
    Eu gosto de tudo. Sabe por quê?  Não sou invejoso. Consequentemente, não sou recalcado. 
    Engraçado, estou aqui falando contigo, e é como se eu te conhecesse há anos. E olha que eu não bebo. Nunca bebi.
     Bom, vou indo. Ah, Feliz ano novo! -com uma risadinha, justifica: -é que eu sou judeu. E nosso ano novo é por agora, cinco mil e tantos anos."
  Já longe, no meio da rua, grita: "tiau gata. Agora escancarei, hehe. Tiau, gata."
  Não falei uma palavra, ele falou sozinho.
  Quando ele se foi, puxei meu bloco de ideias da bolsa ( sempre ando com um, nunca se sabe), e transcrevi o "monólogo" na íntegra. Tal e qual.
  A lotação chegou em seguida. Veio rápido, até. Às vezes demora muito, dá para fazer duas viagens, ou mais. Sem sair do lugar.
  É... De carro ganha-se tempo, não resta dúvidas. Mas perde-se um bocado da diversão.
  Fazia tempo que ninguém me chamava assim, talvez anos. Gata. Já pensou? Que bom que ele não bebe, nunca bebeu.
Ainda bem.

Dani Altmayer



domingo, 6 de outubro de 2013

Oração

Te quero perfeito, imperfeita que sou.
Falo que tenho fé, que tudo vai se ajeitar, que o que tiver que ser será. E tenho medo da minha sombra.
Digo que amo, que amo muito, mas não sei amar sem esperar. E para mim, isso não é amar.
Grito que me importo, mas fecho os olhos para não ver alguém chorar.
Canto uma música, leio uma história, cito coisas, recito. E tapo os ouvidos para não ter que escutar.
Escuto, mas não ouço. Não entendo. Mudo o significado, se me convém.
Peço, muito, peço errado, peço assim. Peço para mim. E nem sei aceitar.
Porque fui ensinada, agradeço. Obrigada, sim. Mas não reconheço.
Todas as linhas tortas por onde escreves, onde vivo a me equilibrar.
Onde tropeço, tantas vezes, e te troco por um osso, uma cachaça, uma droga qualquer. Sou vira latas assumida, faminta e carente. Infiel.
Você me dá um pouco, dá muito, e tira um tanto. Tem seus motivos. Você me leva para dançar. Convida para brigar. Eu avanço e recuo, sem saber onde tocar.
Você me mostra um milhão de razões para acreditar.
Mas basta uma só, e eu volto a duvidar.
Se me deito em teus braços, tenho paz. Tenho lar. Se abres teus braços, fico braba, me deixo escapar.
Te dou tantos nomes, te chamo de tudo, nenhum satisfaz. Nenhum me seduz.
Tenho mil perguntas a fazer. São tantos porquês.
No entanto, eu sei. Você não vai me dizer. Tem este jeito estranho, indireto, sutil, de não responder. De mostrar sem falar, o que preciso saber.
Nem sempre eu consigo enxergar, e peço perdão. Por desconfiar.
Na luz é fácil te ver. No sol, na cor, no calor do verão.
O problema é na sombra. Não vejo bem, no escuro. Quando é inverno, e faz frio, mal consigo lembrar.
Quando a noite demora, tenho dor. Onde está você, então?
Te procuro nas ruas, calçadas e becos. Te procuro na gente. Nas coisas do mundo, e de fora daqui. Te acho, me acho, me perco. Te perco, admito.
Sou inconstante, te quero e me afasto. Te busco aos pedaços. Tapo buracos com purpurina.
São muitos os furos, e eles nunca terminam.
Sou insistente, entretanto. Há tempos te amo. Amigo, desculpa o mal jeito, este amar imperfeito. Este amor que espera. Amor não espera.
Mas sou persistente, não vou desistir. Hei de aprender.
Aqui, ali, você está em todo lugar. Onipresente.
No fundo, eu já sei. Você nunca falhou. Eu, sim.
Te persigo bem longe, em desvios, atalhos. À toa.
Você já mora comigo. Alento, atento. No silêncio profundo.
Na prece que não sei dizer.
No poema que teimo em escrever.
No ar que sorrio. Na inspiração.
Em qualquer vão. Lá fora, aqui dentro.
Em tudo, em todos, em mim. Enfim.

Dani Altmayer



quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Vamos Combinar: Se eu não te vejo, você não existe .



Quando o parque de diversões chegava na cidade, era uma festa. Roda gigante, cinema 360 graus ( grande inovação tecnológica dos anos 70), maçã do amor, e a atração principal: o trem fantasma. Eu era pequena, e morria de medo, mas nunca deixava de ir. O melhor de todos os brinquedos. Tinha sempre fila para o frio na barriga, a gente vibrava na antecipação do susto.
Todas as vezes, sem falhar nenhuma, eu ia de olhos fechados. Do início ao fim. Todas a vezes, durante todo o percurso, sempre mesmo. Tenho que confessar que nunca, em todos aqueles anos, eu abri meus olhos no túnel. Nem para dar uma espiadinha. Mas gritava o tempo todo, e saía sempre apavorada.
Tudo o que eu tinha eram algumas sensações. Teias de aranha, gritos horrorosos, clarões de luz. E, claro, a minha fértil imaginação. Nada mais do que isso.
Outro dia, conversando sobre o assunto, cheguei a uma conclusão óbvia, embora um tanto tardia: o medo só era possível de olhos fechados. Provavelmente, se eu decidisse abri-los, a surpresa seria o riso, ao invés do susto. Com certeza, nenhum monstro, naquele parque meio falido, naquela cidade pequena, chegaria aos pés daqueles que só eu conhecia. Que só existiam dentro da minha cabeça, frutos da minha própria criação. Afinal, o escuro desaparece quando a luz se acende, né? Nenhum monstro resiste a uma boa encarada.
Quantas e tantas vezes, bem mais tarde, mas ainda feito aquela criança, fechei os meus olhos por covardia. Por não querer enxergar. Ainda hoje faço isso. Nunca funcionou, nem vai, e acho que sei o porquê.  
Como naquele trem, a vida que levamos de olhos fechados é a única capaz de meter medo de verdade. 

Dani Altmayer

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

A Benção, Madrinha


   
A campainha soava estridente, insistente. Quem poderia ser, tão cedo? Silvana levanta-se da cama, relutante, calça os chinelos e arrasta-se até a porta. Maldito vinho francês, não devia ter bebido tanto ontem, que dor de cabeça infernal.
- Sua piranha!- Marina empurra Silvana, e entra na casa, aos berros. Tem as bochechas ainda mais vermelhas do que de costume, e os olhos parecem  que vão saltar da face, como molas de desenho animado. Está desfigurada pela raiva.
- Como você pôde, sua puta? Vadia, sem vergonha, filha de uma égua! 
Sem dar chance de Silvana responder, Marina joga um porta retratos na parede, esfacelando o vidro em um milhão de caquinhos. A foto do seu pai, e não era uma moldura qualquer não. Comprara num antiquário, em Praga.
- Sua vaca, amiga da onça, traidora! 
Marina agora pega o elefante indiano da sorte, que ficava com o rabo virado para a porta, de modo a atrair boa fortuna, e o joga contra Silvana, que desvia, e deixa estatelar -se no abajur inglês que fora de sua avó.
Nada pode conter a fúria da amiga. Silvana logo percebe que o melhor a fazer é ficar fora do caminho da outra. Procura com os olhos o celular, pensa em chamar o porteiro, mas desiste e tranca-se no banheiro. Senta para  fazer xixi, a cabeça entre as mãos, ouvindo os sons das coisas sendo quebradas, destruídas pelo desespero da amiga. Tem vontade de chorar, mas não chora.
Nunca pensou que Marina pudesse chegar a este ponto. As duas se conheciam há mais de 20 anos, são amigas desde a faculdade. Foram madrinhas de casamento uma da outra. De batismo dos filhos uma da outra. Das duas, Marina sempre fora a de temperamento mais tranquilo, dócil. Agora isso.
De repente, silêncio. Silvana espicha o ouvido, tentando adivinhar. Nada.
Com muita cautela, abre a porta e se dirige para a sala, onde Marina chora, encolhida num canto, em meio aos escombros das caras lembranças. Chora e soluça, mas sem fazer ruído. Não emite nenhum som. Parece um estranho filme mudo. Como no dia seguinte a uma grande catástrofe, à explosão de uma bomba, o silêncio pesa. Espectral, antecipatório. O começo do fim.
Silvana chega bem perto, senta no chão, e abraça Marina com certo receio. Esta se deixa envolver pelos braços da amiga, e sussurra, em meio às lágrimas:
-  Você ficou louca? Ele só tem 19 anos, Silvana. Uma criança.
Sem dizer nada, Silvana balança a cabeça, e pensa: você está enganada. Ele é um homem, Marina. Seu filho é um homem.

Dani Altmayer
Oficina de escrita criativa-módulo II - Títulos ( outras opções: Amiga da Onça- O Filho Dela)



domingo, 29 de setembro de 2013

O que Foi Feito da Gente?


Amor.
Você levou quase tudo que eu tinha.
Levou minha paz, a magia.
Levou toda a cor. 
Você me levou. Quase toda.
Sobrou muito pouco, de mim.
Uma alma meio nublada, meio vazia.
Uma cama, uma metade fria.
Um corpo cansado, meio com dor.
Uma palavra, meio gaga, meio muda.
Desacreditada, carente.
Desconfiada. 
Uma solidão meio cega. 
Maior que a de antes.
Você me deixou meio assim.
Pouca, distante, indigente...
Sem norte, sem rumo. Sem guia.
Você me devolveu ao silêncio.
Da minha estrela, cadente.
Estrela surda.
Amor?


Dani Altmayer



quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Astor

Não aguento mais. Quero a minha vida de volta.
No início, até que gostei. Quando o Sérgio parou de sair todo dia, achei até bom. Tinha companhia para ver TV e dormir até tarde. Os passeios eram mais longos, e a gente conversava bastante. Com exceção de um ou outro telefonema, ou alguns minutos no computador, mandando emails, todas as horas eram para mim. Acho que nunca recebi tanta atenção. Nem quando era bebê. Lógico que eu sentia falta da Renata, mas ter a casa só para os homens tinha lá suas vantagens. Recebi até permissão para deitar no sofá, e comer chocolate.
Renata saía cada dia mais cedo, ouvi qualquer coisa sobre uma promoção, e chegava cada dia mais tarde. Ia trabalhar como quem vai a uma festa, parecia uma daquelas bonecas Barbie da sobrinha, igual a uma que mastiguei por engano, quando era pequeno. Lembro até hoje da bronca que levei. Como poderia saber, estava no chão. E o chão é o meu território. O mundo todo sabe. A Renata também passava horas no banheiro, e seu cheiro mudou. Confesso que preferia o outro. Não gosto muito de mudanças, principalmente de cheiros.Ela já não deixa mais eu pular em suas pernas, anda sempre de saia. Tem medo que eu rasgue suas meias, é o que diz. Também não deixa o Sérgio a beijar, para não estragar a maquiagem. Recebe mensagens no celular, toda hora, inclusive tarde da noite. Aquela porcaria vibra sem parar, atrapalhando meus cochilos.
Já o Sérgio deixou a barba crescer, e passava vários dias de pijama. Só se vestia (mal) para ir na academia, e para passear no parque, comigo. A Renata vivia reclamando de tudo isso. E olha que nunca contei, mas tinha dias, antes, em que ele nem banho tomava. O que por mim estava ok. Gosto do cheiro dele, melhor que o dela. O que está me incomodando, agora, são estas brigas. Toda manhã, o mesmo papo: "vai passar o dia em casa? " Toda noite, um terremoto. Até prato já voou por aqui, ainda preciso tomar cuidado com os cacos que ninguém catou. O apartamento virou um campo minado.
Tenho saudade de quando os dois chegavam juntos, e me levavam para passear. Depois preparavam o jantar, e sentavam para assistir ao jornal. Juntos. Eu inclusive. Tenho saudade do silêncio e até dos sons que eles faziam, na cama, tarde da noite. Nestas noites eu não podia entrar, e isso me chateava. Hoje nem me importaria. A vida era boa pra cachorro, naqueles tempos.
Agora, o Sérgio quase nem lembra de mim. Não me escova mais, não tem tempo. Desde aquele dia no parque, e a culpa foi minha. Se eu não tivesse me metido no lago, e feito aquela confusão, nada disso teria acontecido. Ele não teria conhecido a Diana, que agora passa as tardes com ele, trancada no quarto. Devem ter muito assunto, nunca me deixam participar. Acho que a Renata não sabe da Diana. Eu é que não vou contar. Aprendi, na marra. Desde que levei uma picada de abelha no nariz, ano passado, ao cheirar um arbusto. Eu, hein? Doeu pra cachorro. Não me meto mais onde não sou chamado. Eles que deitem e rolem. Eu me finjo de morto.

Exercício de Escrita Criativa (módulo II- metáforas)

Dani Altmayer

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Em (Re) Construção

Obrigada, mas não. Não posso entrar, se não puder retribuir. Assim eu aprendi.
E sabe, aqui a coisa anda meio complicada.
Você vem com este seu coração aberto, e ele é tão espaçoso. Amplo, arejado, solar.
Dá até vontade de deixar, mas não dá. Um dia você vai pedir, perguntar pelo meu. Vai cobrar. E eu vou ter que negar.
Porque o meu está atulhado, ocupado, e todo fragmentado. Ele já foi como o seu. Enorme.
Não sei o que aconteceu. Um remendo aqui, uma parede ali, e mais uma, e mais outra. Acabou ficando assim. Compartimentado. E bem apertado.
As divisórias tinham portas, mas esqueci de fechar. Foram ficando abertas, uma após a outra, e complicou. Virou labirinto. Se nem eu consigo me achar, imagina você.
Para dizer a verdade, está uma bagunça mesmo. Perdoa, mas agora não tem condição. Está tudo ferrado. Tem restos, está sujo, e feio.
Precisa de tempo, e reforma, urgente. Existe o projeto. Já está em andamento, vai ficar bem diferente. As paredes serão derrubadas, o design modernizado. Tudo mais funcional, bem mais prático. O espaço será melhor aproveitado. Linhas retas. Restarão só duas portas, desta vez bem sinalizadas. Entrada e saída. Mais nada. Menos é mais.
Vai ter algumas regras para entrar. Há que se tirar o sapato, para poder pisar sem arranhar. Armaduras estarão proibidas. Máscaras não serão permitidas. Armas, então, nem pensar. Coisa complicada também não, nem besteira. O território será de paz, guerra eu já tive demais. Será sagrado, lugar de respeito. Por isso, nada de brincadeiras. Nada que possa machucar. Só risos e bolhas de sabão serão concedidos. Você vai estranhar, pode até nem gostar. Não importa, é assim que será.
Peço desculpas pelo transtorno, estamos em obras. Temporariamente fora de operação. Volta outra hora, outro dia, outro mês. Leva o teu, que está bem, para outro lugar, mais saudável. Tem muita poeira aqui. Não está terminado ainda, longe disso, aliás. Você sabe como funcionam estas coisas. Quero que fique bom, que tenha muita luz. Que seja fácil de entrar. Que dê gosto, e prazer de ficar. Só que isso pode demorar. Uma vida inteira, até mais.
Coração em reforma não dá nem para andar. É perigo de queda. Mágoa na certa. Não convém arriscar.
Deixa que eu ligo, te dou um retorno. Quando estiver tudo pronto, prometo avisar.
Mas é claro que você não precisa. Nem deve. Esperar.

Dani Altmayer



Remédio Amargo

ilustração Lumi Mae
Acorda com um sobressalto. Uma sensação de vertigem a desperta de seu breve cochilo. Abre os olhos com medo, não sabia se tinha sonhado.
Os lençóis emaranhados, a cama desfeita, um corpo ao lado, dormindo. Enorme, suado. Roncando um pouco. Não fora sonho.
Sente um arrepio na espinha, uma náusea, uma súbita falta de ar. Aquela mão pesada, apoiada na sua coxa. Vira para o lado, devagar, tentando se livrar do abraço indesejado. Querendo se desvencilhar do toque. Querendo apagar o tato, o cheiro, o gosto. Tudo. Querendo apagar a memória do que acabara de acontecer, a lembrança daquele momento e de tudo o que viera antes. Porque não haveria um depois. Naquele exato momento ela soube. Que não haveria um depois. O antes fora um erro.
Uma tentativa, frustrada, de trocar uma coisa pela outra. Um equívoco. Achara que poderia tentar, que precisava. Que devia isso, a si mesma e a ele. Grande engano. Tem coisa que não dá para escolher como verdura na feira, esta sim, aquela não. Este faz bem para a saúde, aquele não.Tem coisas que não podem ser substituídas só porque assim se decidiu. Amor não acontece por decreto. Simplesmente acontece. Ou não.
Tinha ido atrás da conversa de sempre, ele é tão legal, está insistindo tanto, você não devia ficar sozinha, enfim. Decidira arriscar. Precisava do paliativo, e acabara se ferrando. Trocou uma dor pela outra. Pior.Seu corpo todo doía. O resto também.
A sensação era de que tinha sido invadida. Arrasada por uma força contrária, um cabo de guerra. Estuprada emocionalmente, com o próprio consentimento. Fora sufocada por algo disfarçado de paixão, mas que era tão cego como nem a paixão poderia ser. Ele não a viu, além de seu próprio querer. Ele não sabia que precisava ir com calma, não percebeu que estava machucada. Ela, que amava as sutilezas, que gostava de intensidade na medida certa, foi atropelada pelo trator do desejo dele.
E nada torna tão evidente uma ausência quanto a presença dos braços errados. Da pessoa errada. Nada pode ser mais solitário do que acordar com um estranho, ainda que "apaixonado."
Agora queria desaparecer. Sumir sem dar explicação. Como pode dormir? Dormir é tão íntimo. Idiota!
Se veste, apressada. Não se despede, deixa o vento gelado bater na cara e toma uma decisão: nada mais de fugir, negar ou tentar escapar. Nada mais de placebo-vai aguentar no osso, sozinha. Como tem que ser.
Vai engolir a seco o gosto ruim da outra saudade.

Daniela Altmayer

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Se Eu Tivesse a Essência das Fadas

Se ao menos eu tivesse sabido, naquela noite. Que aquela noite seria a última noite. A última vez.
Se ao menos eu pudesse. Voltar àquela noite, agora. Eu não faria nada diferente, nada mudaria.
Nada foi menos que perfeito naquele dia. Mas eu saberia.
Saberia o que teus olhos tristes tentavam me dizer.
Eu saberia o que aquele beijo escondia.
Adivinharia o adeus, e o prolongaria. Sim, isso eu acho que faria.
Até a chuva naquela noite se demoraria.
Sopraria aquela bolha bem suave, bem alto, e ela duraria.
Eu me despiria de novo, e te amaria, outra e outra vez.
Se eu tivesse sabido, meu abraço não te soltaria. Não tão fácil.
Mas eu não sabia.
Pensando bem, esquece. Eu nem queria. Para isso não. Não voltaria.
Ter a eternidade da última vez. E não saber que seria.
Melhor assim, sabe por quê?
É que eu acredito em fadas, anjos. Feitiçaria.
Mas não acredito em última vez.
Em vez derradeira.
Ao menos, não com você.
Com você, sempre foi encanto, magia.
Foi tanto. Tão certo.
Toda vez foi como se fosse a última. Desde a primeira.
E a gente sabia.

Dani Altmayer