segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Crônica de fim de ano





Chegando a Floripa de ônibus, os outdoors se alternam na beira da rodovia. Cartazes anunciam sexo, shows de fim de ano- descubro com alguma surpresa que o Belo não é mais loiro e não está mais preso- anúncios de sapatos, restaurantes de fruto do mar, outro anúncio de uma casa de sexo com nome estranho, e a periferia, com seus casebres de cimento à vista, as roupas penduradas no varal, a periferia pobre, como são quase todas as periferias, um pouco caótica, como é quase tudo nesse país. Faz calor e os homens estão sem camisa, exibindo sem pudor as panças de cerveja, as crianças não brincam na calçada porque não há calçada, as mulheres conversam na soleira da porta, é quase noite, e é tudo um pouco feio, um pouco desorganizado, um tanto sujo, empoeirado, você já está exausta, e então vem o mar e o tempo entra em suspenso.
Vem a ponte, você avista o barco com as velas brancas, desfraldando a promessa de luz, do verão lento com cheiro de bronzeador de coco, e a cidade se abre toda com aquela beleza azul, a cidade brilha ofuscando seus olhos cansados: seja muito bem vinda à ilha da magia.
Penso então que Florianópolis é um microcosmos do Brasil, esse misto de esperança e caos, água cristalina e praias cheias, lixo na areia e lá na capital, tudo parado, tudo se movendo, num esforço lento por um pouco de sol, de gozo, de sal.

Hoje eu e a Bella pulamos sete ondinhas, antecipando a virada e fazendo juntas um pedido para cada onda pulada: 1-amor, 2- saúde, 3- paz, 4- bons amigos, 5-dinheiro, 6- viagens.E sete, pirulitos. (Why not?)

Claro que não dá para ter tudo, o tempo todo. Até porque também nós somos um pouco essa praia paradisíaca, um pouco aquela periferia. Uma bagunça bonita, mas nem sempre. Não temos tudo, não.

Mas que tenhamos muito, ou ao menos, o suficiente. Um bastante de cada. Para enfrentarmos 2019 com a resiliência necessária para as adversidades (que já sabemos) inevitáveis, e desejando que elas sejam breves, provisórias, que a poesia vença o cansaço e a dor na maioria dos dias deste ano difícil que se avizinha.

Que, como no jogo de amarelinha que eu e Bella tanto pulamos nessas férias, tenhamos equilíbrio para pegar a pedra, força para seguir jogando e um céu, ou algo equivalente: quer seja um abraço, um sorriso, um afeto para descansar.
Pode até ser um pirulito, também. De morango.

Feliz ano novo a todos! Que seja doce e transparente, como esse olhar.

Daniela Altmayer

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

"Nolite te bastardes carborundorum"




Apenas um dia qualquer no calendário dessa maluquice que chamamos vida, dia primeiro de janeiro está logo ali, num piscar de luzinhas de Natal, ao epocar das rolhas e dos fogos de artifício, embebido em espumantes, abraços, em laços, alguns desfeitos, outros apertados ou recém descobertos, coberto de uva passa e nozes, alguns nós, fios de ovos e fios de esperança- para alguns, para outros não, o ano se acaba barulhento, como acabam todos os anos, acaba quente, como acabam todos os anos, sujeito a chuvas e trovoadas, acaba rápido um ano longo que pode nunca acabar, onde já não sabemos se a folha dos dias avança ou volta algumas décadas, algumas casas, no jogo de tabuleiro onde somos todas essas peças de plástico, carne e osso, movidas pelos dados que eles jogam lá em cima, eles que manipulam, que blefam, que roubam, todos roubam no jogo dos dados, na roleta, a russa, de arma engatilhada, onde qualquer esquina pode ser a sua, eles mentem faz tempo, a gente finge que nem, e toca uma música, escreve uma coisa, vê um filme, faz amor para distrair da feiúra, da sujeira das ruas, dos buracos no asfalto, nas almas, nas livrarias, queremos que janeiro comece com posse, sem posse, sem pose, promessas, dietas, direitos, mar limpo, mar quente, beijo na boca, mão na mão, mão naquilo, amor de qualquer jeito, não, de qualquer jeito não, amor bom, bons amigos, trabalho, algum dinheiro para dar garantia, uma rede, uma varanda, cinco mil livros, arco-íris, um sonho, muitos, muitas manhãs de domingo, e a certeza de que uma hora a sorte vira, o vento muda, uma roda gira, e que a gente ganha, mesmo tonta, torta, mesmo doída, mesmo distraída, alguém tropeça na alegria, resiste na poesia, existe, apesar de tudo e apesar deles, dos canalhas, o amanhã sempre vem, sempre será outro dia, e os bastardos não conseguem nos derrubar, não irão nos derrotar, somos muitas, somos fortes, nosso segundo nome é utopia e temos uma história para contar.

Daniela Altmayer
Para todas as mulheres incríveis que estiveram de mãos dadas comigo durante esse ano.

domingo, 16 de dezembro de 2018

Mãe fantasma


outra noite você me visitou
lá pelas três horas da madrugada
chovia, uma porta se fechou com força
foi quando vi seu rosto junto ao meu

sorrindo da minha cara de susto
segurou minha mão com delicadeza
sussurrou baixinho no meu ouvido
não é sonho de sonhar acordada

de mãos dadas ficamos por um tempo
quis te dizer tantas coisas mas não
disse nada, nem você perguntou 

há muito tempo que você não vinha
tanto que quase esqueci do seu cheiro
inconfundível de jasmim em flor


Daniela Altmayer
Exercício para a oficina de poesia- Soneto (decassílabo)

sábado, 15 de dezembro de 2018

"Só olhar para ti"





E quando não formos mais que lembrança, ainda restarão teus olhos nos meus e aquele gesto, tuas mãos fazendo moldura para caber toda a existência em uma tarde de sol.

Daniela Altmayer

domingo, 9 de dezembro de 2018

histórias de consultório




Homem, 62 anos.
- Tenho essa dor na barriga, uma pontada, e meu intestino funciona mal.
- Tem que ver um procto, fazer col...
Me interrompe:
- Já fui duas vezes na dra X.(proctologista)
- Ela não te pediu uma colonoscopia? Depois de uma certa idade...
- Pediu. Eu que não fiz, nem vou fazer. Deve ser gases. Eu só quero saber uma coisa da senhora: não pode ser câncer isso, né? 
Deixa eu consultar as cartas, já te digo

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Minhas pacientes me deixam confusa.
Outro dia, conversando com uma delas (60 anos), explicando algo que acontece depois de uma certa idade, e sempre me incluo, usando frases com o pronome nós. Nós mulheres, nós depois da tal certa idade, nós que somos mãe, nós que trabalhamos, etc.
Aí ela me interrompe e pergunta quantos anos eu tenho. Arredondo para 50, porque né, facilita.
Ela me olha com atenção e um pouco de pena, e diz:
- Ah, é que tu aparenta porque é clarinha.Tenho dez anos mais que tu, mas sou morena. Uma vantagem.
Corta para a paciente de hoje. Oitenta anos de vida. Me chama de tu, depois de senhora, pode me chamar de tu, claro, tu poderia ser minha neta, quantos anos a senh...tu tem? Não arredondo porque, né. Não foi bom da outra vez. Tenho 49. Faz cara de chocada:
- QUARENTA E NOVE???? Mas olha só, a senh... tu pode mentir que tem a metade disso, fácil fácil. Parece uma guriazinha.
Moral da história: não tem.
Cada um ache o que quiser

Daniela Altmayer