sábado, 27 de abril de 2013

O meu você quem é?


Não penso em outra coisa há dias. Quero saber tudo. Mais. Vasculho histórias.
Ouço a música. Vejo o filme. Tento ler. Tuas entrelinhas. Tento entender, mas não.
Procuro pistas. Imagino cenas. Torturo minha mente. Meu corpo.
Eu choro. Grito. Esperneio. Espremo. Em vão.
Não sei, e não saber me consome. Me mata, lentamente.
Me devora. Apavora. Preciso de terapia. Urgente.
De um porre. Uma luz. De um guia.
Faltam peças. Sobram espaços. Cheiros, que não encaixam.
Palavras que me embaraçam, que me confundem. Amordaçam.
Mudo de jeito. Quero tudo perfeito. Tudo igual.
Quero tudo de antes. Antes era perfeito, não era? Me diz que era. Diz agora.
Me dá um abraço.
Te quero dentro, não fora. Te quero de volta. Onde está você, por que foi embora?
Onde estava você, naquela hora? Como isso aconteceu?
E quem era você, naquela história? Quem é você, meu Deus?
Quem era ela, que não era eu?
Onde estava eu, que não estava lá. Onde estava você que não estava aqui?
Quem é você quando está com ela? Com quem se parece?
Faltam peças, preciso entender. Teu cheiro, teu gosto, teu corpo, eles mudam de cor?
Você fala sacanagem no ouvido dela, você grita seu nome quando goza, me fala, eu preciso saber.
Ela é bonita, eu sei, mas ela sabe que você toma café sem açúcar, que você gosta de torrada sem nada, ela sabe do que você gosta? Ela te deixa em paz, de manhã, porque você não consegue pensar antes da terceira xícara? Ela sabe de você, me fala, ela sabe? Ou você não é mais você quando está com ela?
O meu você é o mesmo você dela?
Me diz que você não contou para ela suas histórias compridas e chatas, a piada do jacaré, não, esta não, por favor. Para ela não. Ela sabe que você adora massagem no pé? Lembra, você me pedia, todo dia. E eu não fazia, não todo dia. Ah, se eu soubesse. Eu faria. Foi por isso? Me perdoa.
Ela sabe qual o seu livro preferido? Conhece seu medo de trovão e de raio? Você falou para ela que é alérgico a camarão e cigarro? Que tem pavor de gatos? Ela não tem um gato, espero. Ou tem? Só faltava ela fumar. Agora que eu parei. Ai, que agonia.
Me garante que você não deixa ela desmanchar seus cabelos, fazer cafuné. Você detesta isso, lembra? Eu nunca entendi, mas você não gosta, ela sabe, não sabe? Você sabe, não sabe,  que você odeia que mexam no seu cabelo. Não esquece disso, por favor. Não esquece de nada. De nada de você, por ela.
Não esquece de você de mim. De você comigo. Não esquece de você, por mim. Não com ela. Por favor. Com ela, não. Por ela não.

Dani Altmayer


quinta-feira, 25 de abril de 2013

Desde então


E desde então não choveu mais. Desde então, os dias são de um outono perfeito. Dias que não parecem passar, e sim, se derramar sobre nós. Dias que se derramam em azul intenso de um céu que não tem nuvens. Que não tem nuvem, por isso parece não ter limite. Dias que se derramam em um sol brilhante e cálido. Em um sol pálido. Que aquece menos o corpo do que ilumina a alma. Dias que se derramam em temperaturas amenas e em suavidades imensas. Que fazem tudo parecer imenso. E imensamente suave. Dias de um outono perfeito, que se derramam em noites de um outono perfeito. Em noites claras, incandescentes. Noites de sonhos, incipientes. Sonhos que se derramam, em noites de lua. Lua que se derrama em fases. Em fases, que se derramam em ciclos. Em ciclos, que se derramam em nós. Desde então, a lua, que era nova, cresceu. Encheu, e se derramou. A lua cheia se derramou. Em um abril de luz. Se derramou, e se abriu. Em desejos, que se derramaram em nós. Que se derramam. Em paz.

Dani Altmayer

domingo, 21 de abril de 2013

Um beijo




Se a minha lua é a mesma tua lua.
Se o azul do meu céu é o mesmo azul do seu.
Se o sonho que sonho sonha você. É sonho teu.
Se tua voz chega aqui feito música.
Em suaves melodias.
Se as coisas que dizemos nos traduzem em sintonia.
Se todo meu dia espera tua noite.
Se toda tua noite me percorre tão nua.
Se tua boca penetra na minha.
Se meu desejo arrepia tua espinha.
Se uma dança se adivinha ao fundo.
Se meu toque é tão íntimo. Tão seu.
Se antes de ser, já era. Sou tua.
Se longe é tão perto. E perto é tão dentro.
Se dentro é tão certo. O sentir, tão profundo.
Se eu mudo seu mundo.Você, mundo meu.
Se sussurras meu nome, eu silencio. No teu.

Dani Altmayer


quarta-feira, 17 de abril de 2013

Meditação

Um quadro e duas rodas,
E não somente.
Aparente fragilidade.
Engano aparente.
Equilíbrio na força do pedal.
Equilíbrio na atenção constante.
O momento no presente.
No pedalar intermitente.
Pedala e para.
Para. E pedala.
Liberdade é brisa na cara.
Lábio rachado, no ar gelado.
Lágrima que não chora. Escapa.
Liberdade é escolher caminho.
Desafiar o tempo.
Liberdade é escolher diferente.
Pedalar amor.
Amor é coração na boca.
Coração na mão.
Coração lá fora.
Oração ao vento.
Liberdade é amor que não chora. Escapa.
Escolhe.
Equilíbrio e força.
Pedala e para.
E pedala. O medo.

Dani Altmayer

domingo, 14 de abril de 2013

Teoricamente

Ama -se por interesse.
Sem interesse, o amor não existe. Não é que o amor seja interesseiro. É o contrário disso.
Se o outro não me interessa, não é meu amor. Se eu não interesso, não sou seu amor.
Amor é interesse.
Ama-se para, e por interessar-se. Mas o amor não é interesseiro. É o avesso.
Ama-se para não ser egoísta. Para abrir os olhos e procurar um olhar diferente.
Um olhar interessante. E encontrar.
Ama-se para encontrar a paz. Na diferença do que se assemelha.
Ou na semelhança do que não é espelho. Que me reflete, sem me cegar.
Que brilha por si, sem me ofuscar.
Semelhança que não repele, e sim, aproxima. Que me ensina a me ver,  transformado por ver você.
Ama-se para observar, observar-se, e absorver. Para aprender, apreender. Para prender, jamais.
Ama-se para deixar entrar, deixar sair, deixar ficar. Quem não sai, e não entra, nunca fica. Não me interessa.
Ou não se interessa. É pássaro de asa interrompida. De vida cortada. De canto triste.
Há de haver um vai e vem. Um ir e vir. Um sempre fluir.
Duas asas para cada um. Nada menos será aceito. O céu, sem um limite. Nenhum limite.
Um interesse, que não é limite, e nunca será. É imã, e sempre será.
Há de haver um eu, um você, um nós. E um eles. Eles sempre existem.
Ama-se quando eles não interessam mais.
Há de haver um espaço, uma água, um mar. Muito sol, muito ar.
Ama-se para ser livre. Para se aquecer. Para melhor respirar.
Quem me interessa não vai me apertar. Jamais.
Ama-se por surpresa, não por susto.
Ama-se a descoberta. Do que multiplica, divide, e não diminui.
Ama-se para  ser mais. Nunca, em hipótese alguma, ama-se para ser menos.
Opostos se atraem, é verdade. Mas dificilmente se mantém. Falta interesse, invariavelmente.
Ama-se muito mais por afinidades, por parecências, por oportunidades. Por conhecimento.
Ama-se melhor por reconhecimento.
Ama-se de verdade por paciências, contingências, complacências.
Ama-se por gentilezas.
Ama-se o interessante. O que cativa, encanta, envolve, fascina. O que significa.
Ama-se o que dá significado. Motivo. Razão. Saída.
Ama-se por achar o caminho. Por tornar mais fácil o caminhar.
Ama-se assim, por interesses. Que podem até ser diferentes, nunca divergentes. 
Ama-se por escolhas, não por falta de.
Ama-se, assim, que difícil, verdadeiramente.
Ama-se assim, que difícil, idealmente.
Porque só é amor se for assim.
Desinteressadamente.

Dani Altmayer

domingo, 7 de abril de 2013

Para não escapar

Não é o rosto, marcado por muitas rugas. Não é o corpo, curvado pelos anos. Não são as mãos, trêmulas, e cheias de manchas. Não é o cabelo, branquinho, bem penteado. Não é o jeito como segura sua bolsa pequena, bem junto a si, como que para não esquecer. Não é a maneira como anda, toda cuidadosa. Não é nada disso que me comove, quando a encontro na lotação.
São os sapatos. Seus sapatos pretos, sem salto, de sola de borracha. Sapatos sem enfeites, sem fivelas, sem cadarços. Sapatos confortáveis. Seguros. Sapatos que destoam do vestido creme, do casaquinho rosado, do batom vermelho em seus lábios. Destoam do pó de arroz, dos brincos de pérolas e do perfume doce. Sapatos quase masculinos.Contrastando com sua feminilidade. Desprovidos de qualquer vaidade. Sapatos funcionais. São seus sapatos que me comovem.
Seus sapatos contam a verdade. Denunciam. Eles não falam, simplesmente. Eles gritam.
Ela senta ao meu lado e me conta sua vida. Veio ao centro para um encontro no salão da igreja. Se reúnem, toda terça feira, no clube de tricô e bordado. Diz que vai só para conversar, seus olhos não permitem o bordado. Seus tremores dificultam o tricô.  Gosta do chá e precisa da companhia. Tem oitenta e tantos anos, mora sozinha, é viúva há muito tempo. Duas filhas casadas, três netos adultos. Todos vivendo suas vidas, que bom, assim é que tem que ser. Nas quintas ela dança. Me fala que adora dançar. Quando o marido era vivo, estavam sempre nos bailes. Ele era pé de valsa, bonitão. Ela também não fazia feio. Agora dança com as amigas, homens são poucos no grupo. Sorri com sua boca vermelha, seus olhos brilham quando me conta isso. Mora sozinha, não quer acompanhante, a filha se preocupa. É final de tarde, ela não pode perder a novela, mas o trânsito não anda. Enquanto isso, ela fala, e fala, e eu ouço. Escuto parcialmente, distraída pelos seus sapatos que gritam. Pelos meus pensamentos, que se infiltram nas palavras dela, na casa dela, na vida dela, nos sapatos dela. Minha imaginação se infiltra na realidade dela. Visualizo sua casa, cheia de toalhinhas de crochê, um ou dois gatos, um prato de sopa rala, e uma solidão consistente. Sinto tristeza por ela. Tristeza que é só minha, e não dela. Porque ela é feliz, me diz, e eu acredito. Está vivendo um tempo emprestado, ela sabe. Fala que muita coisa foi deixada pelo caminho, aqui e ali. Pessoas se foram, os anos se foram, a juventude se foi. Há muito. Mas ela ficou, tem boa saúde, e é grata por isso. Faz festa de aniversário todo ano, com bolo, balão e vela. Comemora cada minuto extra que lhe é concedido. Não quer desistir, me confessa. Quer ver o neto casar, o outro se formar, a filha se livrar do traste do marido, um dia. Quer saber como vai acabar a novela, qual virá no lugar. Quer viajar para a serra, visitar a prima mais nova, tomar aquele vinho bom. Dançar na quinta, conversar na terça, fazer feira no sábado.  Ainda tem muito para ver, reclama um pouco é do corpo, que já não acompanha. Morre de medo de cair. Mas a cabeça? Tá ótima, como aos vinte anos. A gente não envelhece por dentro, na mesma proporção. A gente envelhece pouco, aqui dentro. Há um certo sadismo nisso, percebe a ironia.
Preciso perguntar dos sapatos, não tenho coragem. Pergunto então da solidão. Solidão é psicológico, me responde. É coisa de quem não sabe ser só. De quem não se aguenta. Doença da alma. É como fantasma, só aparece para quem acredita. Ela não acredita em fantasmas, que Deus os tenha. Ela acredita em gente viva, de verdade, que encontra todo dia. Sente saudade do que já não é, para isso tem álbuns, e cabeça. Para lembrar. Gosta de ser a feliz proprietária de muitas lembranças. A maioria boa, tem sorte. Guarda tudo no coração. Mas quem vive de passado é museu. Ela não. Ela vive do dia. Gosta de vida.
Despede-se então, vai desembarcar, chegou a tempo da novela das seis, que bom. Pede para o motorista esperar, desce com cuidado, acena um sorriso da calçada. Entra no prédio com passos firmes, garantidos pelos feios sapatos de borracha. Caminha devagar e com dignidade.
Seus sapatos me comovem. Eles gritam um aviso. Haverá um momento na vida em que se vai precisar de sapatos assim. Isso se tivermos sorte, claro, de chegar até lá. Nem todos tem. Ela sim. São eles que a seguram firme no chão. São seus sapatos que impedem a queda, a fatalidade. São eles que a levam ao centro, que a tiram para dançar. Eles são como grossas raízes de uma árvore anciã. Ela precisa do seu peso deselegante. É ele que ainda lhe confere uma total elegância. O peso dos seus sapatos pretos. São eles que impedem sua alma borboleta de voar antes da hora.
  Dani Altmayer

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Janaína

Ela sabia, agora. Que nunca ia se curar totalmente. Que era como uma doença crônica, uma diabete, uma hipertensão. Poderia controlar, desde que tomasse os cuidados necessários. Mas cura, mesmo, não havia. Era como ser viciado em drogas, ter uma compulsão alimentar. Era como ser alcóolatra. Conseguia até se imaginar em uma daquelas reuniões,  declarando: "Boa noite, meu nome é Janaína. E eu tenho baixa auto estima. Sou uma baixa auto estima em recuperação."
Após anos de terapia, ela sabia que seu problema estava bem disfarçado. Ela diria, até, bem controlado. Mas não estava curado. Nunca estaria. Tinha recaídas, não tão frequentes, é verdade. Lapsos que aconteciam quando se distraia. Como naquele dia em que ia atravessar a rua, estava olhando na direção certa, e veio um cara na contramão. Ele praticamente a atropelou. Ela pediu mil desculpas, e o homem ainda reclamou, saiu xingando. Depois se deu conta, estava fazendo aquilo de novo. Pedindo desculpas quando não tinha culpa alguma. Ela estava certa, ele estava errado.Teve um tempo em que vivia fazendo isso. Típico de quem sofre desta doença: pedir desculpas por existir. Sintoma básico e sempre presente. Desculpa aí.
Outra coisa que quase nunca conseguia: dizer não quando deveria. Acabava abraçando mil coisas, e causas, com as quais não sentia a menor afinidade. Pela dificuldade em pronunciar esta palavrinha tão sonora, e libertadora. Tão simples. Imagina, dizer não. Não responder a mensagem. Não atender o telefone. Não estar disponível. Não agradar. Que absurdo. Logo ela, tão legal, imagina. Todo mundo ia falar.
Às vezes até conseguia, dizia não. NÃO!  O que não conseguia ainda, de jeito nenhum, era livrar-se da culpa que o não sempre trazia.  Falava e ficava se torturando, dias e horas, e meses, mas "e se"... Como resultado, não poucas vezes, acabava voltando atrás: SIM!  
O que a fazia lembrar da maior dificuldade de todas: mandar tomar naquele lugar! Ah, não, isso nem pensar. Nem com todos os anos de terapia, nem com floral, nem com banda de música. Não combinava com a moça tão educada, tão fina, o que poderiam pensar? Difícil até escrever, falar então, nossa, chegava a suar frio só de cogitar.
Sabe a cena clássica, das histórias em quadrinho, quando um personagem tira o casaco e coloca na poça de lama para o outro passar? Pois a Janaína, antes da terapia, não tirava o casaco, simplesmente, não. Ela se atirava na lama, deitava, de corpo inteiro. Pronto, agora era só passar por cima, quem quisesse. A banda de música, inteira.  Ela era muito altruísta. Mas isso foi antes, agora ela estava bem melhor. Quase sempre. Menos quando se distraía. E tinha um lapso, que é o nome que se dá para a recaída de um doente crônico, em recuperação.
Ela se ama, hoje em dia, quase sempre. A não ser quando alguém a odeia. Aí ela se odeia, junto. Muito solidária com os sentimentos alheios, sempre. Ela é muito legal, a Janaína. Alguém com quem se pode contar. Talvez um pouco sensível a críticas, mas tudo bem. Ela sabe seu valor, geralmente. Não importa que tenha ido procurar lá no "tudo por um real e pouco". Referências, como gosto e religião, não se discute.
Olhando assim, por cima, meio de longe, nem se percebe. Mulher feita, independente, dona do seu nariz. Gente boa pra caramba. Ela sabe, a terapia ajudou a disfarçar. Só se percebe bem de perto. Está sob controle, quase sempre. Menos quando escapa, assim, de repente. Quando se distrai. Aí, mil desculpas. São só alguns lapsos. Coisa que acontece, depois passa. Já nem liga muito. É que ela sabe que tem doença crônica. Que é que nem alcoolismo e diabete. Até dá para controlar. Recupera, mas não cura de verdade. Nunca cura.

Dani Altmayer

terça-feira, 2 de abril de 2013

Paciência

Os dias parecem sem nexo, uma repetição contínua do tempo. Sempre o mesmo.
Do amanhecer à noite, uma sucessão de cotidiano. De dias quase iguais.
Uma hora se emenda na outra. Como as letras, no velho caderno de caligrafia.
As letras, sozinhas, não fazem sentido. É preciso esperar que se transformem.
Que formem palavras, que formem frases, que formem parágrafos.
Que formam capítulos. Que se transformam. Em histórias.
Os minutos se escoam nas horas. As horas se perdem nos dias. Os dias se vão, nos meses.
Os meses viram anos. Os anos passam, com o tempo.
E o tempo devolve tudo. Dá sentido. Traz  significado.
Carrega a essência das letras soltas, no velho caderno de caligrafia.
Onde as histórias sempre começam, um dia.

   Dani Altmayer