segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Ventanias



Caetano, em sua oração ao tempo, fala que o tempo é compositor de destinos. Se assim for, o inesperado é a música pungente que o tempo compõe, aquela que toca fundo no peito, aperta ou solta, alegre ou triste, nem sempre agradável de ouvir, mas que jamais passa batida.
Pensando nisso, por estes dias. Porque também, sem surpresas ou novas melodias, a vida não teria a menor graça.
Ou ritmo ou poesia


O inesperado

senhor de destinos

vento de tempestade
muda a direção o clima
espraia as folhas do tempo
derruba a árvore amiga
antiga
levanta a telha das certezas
desabriga desaloja
desacomoda.
Inexorável inesperado
este senhor sem modos

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Refugiados





Às vezes uma palavra, noutras um amontoado delas, frase, parágrafo, capítulo ou livro- te botam comovida feito o diabo, ou desconcertada, atônita, desgarrada, consciente, demasiado consciente que teu lugar no mundo nunca será confortável enquanto não for confortável para todos. Não há paz, se não houver paz para todos.

É isso ou fechar os olhos, adormecer sem sonhos, sem pesadelos, sem olhar para os lados, andar em linha reta, cabeça baixa,  não pegar nas mãos a arma mais poderosa que já inventaram, a única que te transporta, arremete, faz viajar no tempo e entre os espaços, continentes e mundos, viver tua vida em outras vidas, mil impossibildades e a experiência de uma dor alheia, tão alheia que não te seria permitido conhecer não fosse aquela palavra. Ou o amontoado delas.
Lendo um livro chamado Despertar os leões. Extremamente tocada.

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Do outro lado da rua




Embaixo de uma árvore, a calçada escaldante ao sol das treze horas, uma família: mãe, pai, bebê. Sentados sob a sombra parca, eu na pressa de não atrasar para o plantão, pego no colo o recalcitrante e idoso shitzu e me preparo para atravessar a rua. Ela pede ajuda. Fala em espanhol. Não é daqui, é de algures. Imigrante, refugiada, latina. Digo que vou ver. O suor e a máscara me incomodam, entro em casa e espio pela janela os três sob a bergamoteira. Não é tempo de bergamotas, que lástima.

Hoje não fiz almoço, comi um sanduíche de preguiça. Também não fiz super, a  geladeira está vazia. Pego uma garrafa de água gelada, algumas bananas, uma barra de chocolate e uns 5 reais em moedas que consigo catar.
Agora tem também uma menina sentada na calçada, na frente deles. Uma jovem bonita, de seus vinte anos. Ela me diz, mostrando um maço de notas, estou ajudando eles a contar o dinheiro. Alcanço para ela as moedas, a mãe agradece o chocolate e as bananas. Descasca uma. A criança come com a avidez de quem tem fome.
Volto para casa, a garota fica. É tão raro alguém ficar. Vejo da sala que está brincando com o bebê, enquanto conversa com os pais. Está atenta, talvez ouvindo a história deles.
É tão raro alguém ouvir.
Saio para trabalhar e ainda estão lá, a moça desconhecida e os estrangeiros.
Na quase sombra de um fevereiro sem refúgio, como é raro alguém te olhar. 

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Oferenda




Cai a tarde e o sol se derrama em sombras

a penumbra invade a sala empoeirada e o pensamento abstrato das tardes de verão os dias alongados escaldam o asfalto ao meio dia o inferno tem a cor dos seus olhos inquietos o suor desfila na nuca entre as omoplatas os seios as coxas traçejando pegajoso desenho as lentidões de janeiro se acabam depois num dois de fevereiro tão azul da cor do manto nossa senhora iemanjá rogai por nós os filhos desgarrados no concreto órfãos navegantes náufragos sedentos repletos de saudade e desejo. 
De um mar qualquer. Qualquer mar.