terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Trégua no calor de Porto Alegre

                                    


Sob as altas temperatura do mês de janeiro, uma polêmica causada pelo novo prefeito esquenta ainda mais os ânimos dos moradores da capital gaúcha. O projeto de lei sobre o uso de cadeiras na calçada tem mobilizado a opinião pública em Porto Alegre

Porto Alegre. Devido ao forte calor, e visando prevenir a ocorrência de apagões como o da semana passada, o novo prefeito sugeriu, em entrevista a uma rede de televisão, que os moradores  de Porto Alegre passassem  a colocar suas cadeiras na calçada no horário entre 18 e 22 horas. Elaborou um projeto de lei municipal a ser votado com urgência pela assembleia. O objetivo seria evitar o uso desmedido de ar condicionado e outros aparelhos afins. "É como andar de bicicleta, uma medida sustentável. Um retorno aos bons tempos, tomar a fresca na rua, conversar com os vizinhos", disse ele. Quando questionado sobre a questão de segurança pública, minimizou o assunto. Fez uma brincadeira dizendo que os bandidos estavam todos no litoral, assim como qualquer cidadão de bom senso que tenha a mínima condição de fugir desse inferno que é a capital durante o mês de janeiro. Para dar exemplo, ele e a primeira dama se deixaram fotografar na frente do palácio do governo, sentados em suas cadeiras de praia, tomando chimarrão ao final da tarde de ontem. Vestiam bermuda e chinelos de dedo. Um grupo de moradores da praça da matriz, descontente, fez um protesto com cartazes dizendo "a rua é nossa". 
A notícia, como de resto qualquer ação do novo governante, dividiu os porto-alegrenses. Alguns, mais exaltados, reclamaram que o prefeito deveria se preocupar com questões tão ou mais importantes, como educação, saúde, saneamento básico, as coisas de sempre. Outros acham que antes, ele deveria fazer como outros prefeitos, deixar a cidade mais bonita e apresentável. Dizem que os muros estão muito sujos, os containers de lixo roubam a vista, e muitas pessoas se queixaram dos buracos nas calçadas, que inviabilizam o uso das cadeiras mais simples. O grupo que apóia o governo lançou uma campanha publicitária, do tipo namore no portão, conheça sua rua. 
Muita gente tem aderido ao programa, fato já constatado por uma importante rede de supermercados que viu sumir das prateleiras a erva mate, as geladeiras de isopor e os repelentes de insetos. A maior reclamação, no entanto, tem sido em relação ao preço das cadeiras de praia que aumentou em quase cinquenta por cento. Segundo uma moradora do bairro Bom Fim, dona Joana, já quase não está valendo a pena. "Paguei mais pela cadeira do que pelo ventilador de teto." De acordo com fontes ligadas ao prefeito, sua próxima ação deverá ser tratar a água do lago da Redenção, a fim de liberar o banho, em horário comercial, para os menos afortunados que não têm acesso a piscinas. Isso enquanto não cumpre sua promessa de campanha e não cria uma praia artificial, a exemplo de Paris, à beira do arroio Dilúvio. Porque, como ele mesmo costuma dizer: Porto Alegre no verão, ninguém merece.

 Dani Altmayer, para o Jornal de Notícias,  28-01-2017

( Exercício para a oficina de verão- crônica mimética)

domingo, 29 de janeiro de 2017

São tempos difíceis para os sonhadores





                       Só um tipo de silêncio me assusta:
                       A ausência absoluta das palavras.

           Dani Altmayer

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

O primeiro verão sem ele





Ao vasculhar a memória em busca de uma boa lembrança dos meus mais de vinte verões porto-alegrenses, cheguei a uma conclusão.
Não tenho memórias de verão em Porto Alegre. Tenho memórias de calor.
Antes de vir morar na capital, naquele longínquo dezembro de 1994, eu não fazia ideia do que me esperava. Não sabia ainda o que era calor. Ao menos não um calor assim, "portoalegrês."
Porque do verão da minha terra, que fica bem mais ao sul, eu lembro de tudo, menos de fazer calor de verdade. Eu lembro do mar cor de chocolate e do vento nordestão; das conversas no alpendre de casa e do chimarrão compartilhado; do coaxar dos sapos e do jardim florido em buganvílias. Eu lembro das noites frias.
Noites em que era impossível sair sem ele. Ele, que debochava das minhas produções mais ousadas, implicava com as blusas de barriga de fora, ignorava os ombros nus e bronzeados. Acabava com meus vestidos soltinhos.
Fiel, onipresente, indefectível, eu só consegui me livrar dele quando me mudei para Porto Alegre. Naquele quente dezembro em que eu desbravava a cidade com olhos abismados, o suor se esgueirando pelo meu corpo, o sol forte derretendo minha saudade, o asfalto quente ia me moldando aos poucos ao novo endereço... Foi aí que eu comecei a esquecer.
Esqueci dele já naquelas primeiras noites no Bom Fim, aos primeiros goles de um chopp gelado na calçada, no beijo de um primeiro amor longe de casa. Esqueci dele no Lei Seca, no Opinião, na frente do Theatro São Pedro, onde me perdia na esbórnia de um país, de uma vida recém descobertos.
Esqueci ainda mais completamente dele nas tardes abafadas, nas caminhadas pelo parcão em busca de sombra e de uma vista do lago; na esperança de encontrar um refresco, em vão. De vento ali, só restava um moinho. O resto era ar, comprimido. E tempestade ao final do dia.
Esqueci dele no sonho então impossível de uma casa com piscina, de um clube com piscina, de um amigo com piscina. No brinque da Redenção. Esqueci dele no meio de plantões intermináveis, de ônibus lotados, de lançamentos de filmes. No ar sempre estragado do Guion. Esqueci dele no refúgio gelado dos shoppings vazios, nos amigos novos e antigos, na conquista de uma liberdade recente, inebriante.
Esqueci dele por um tempo, e quase completamente, confesso. Até o dia em que estava indo para Rio Grande numa visita de fim de semana, era meados de janeiro. Minha mãe me ligou:
- Não esquece de botar o casaquinho na mala, pode ser que esfrie.
Levei, usei todos os dias, mas nem esfriou.
Só não fez nunca, esse tanto de calor.

Dani Altmayer
( exercício para a oficina Santa Sede de Verão- crônica de memória)

domingo, 22 de janeiro de 2017

Domingo






O domingo se despede nublado, como convém a um domingo.
A semana se antecipa na agenda que nunca é preenchida, na agenda que não existe, porque há muito foi devolvida. (A cada dia o que é do dia.)
Difícil pensar numa hora dessas, em que a preguiça de uma tarde na rede, essa também inexistente, se impõe na sonolência do final de domingo, agora nublado, e quente.
Um filme na tevê, Woddy Allen dos menores, ainda assim, um livro que finda, outro ao meio, um texto morno sobre verão, para a oficina. (Repleto de falta de inspiração).
A conclusão de que verão é um pouco como o Natal, só tem graça quando a gente é pequeno, e acredita.
Verão só existe quando a segunda não começa nem termina, quando a rede balança na varanda, quando os pés descalços pisam numa areia fria. De resto, não deve ser. Não é verão.
É só um calor que a gente sente.
Domingo é o melhor dia da semana, depois da sexta. E do sábado, talvez das terças.
Porque é dia de fazer de conta que o mundo é isso, nossa casa na praia ou na montanha- com rede. Onde tem filme, tem música, tem livros. Onde vivem os devaneios, as poesias, os ventos. Onde entram aromas, amigos, amores.
Domingo é dia sem pressa, bucólico, quase reverente.
Domingo é dia de ouvir os silêncios que moram com a gente.
( Na falta de um barulho, de mar)
Dani Altmayer

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

A magia do verão



                                                                "Vem chegando o verão
                                                                  O calor no coração
                                                                  Essa magia colorida
                                                                  Coisas da vida..."
                                                                                   
                                                                                Renato Rocketh

Sexta-feira, segunda semana de janeiro, supermercado vazio. A voz da Marina chega suave ao corredor das verduras. Estou escolhendo uma manga para a salada, aperto, cheiro e deixo minha mente vagar, voltar no tempo uns trinta anos, para um verão onde não lembro de haver mangas nas saladas, apenas uvas, abacaxis e melancias gigantes que ocupavam a geladeira da garagem, na casa de praia, mais um freezer enorme, repleto de sorvetes e morangos congelados. Volto a um daqueles verões intermináveis, de pés descalços, biquinis asa-delta e bundas de fora, e sim, uma ou outra menina mais ousada fazendo top-less na areia. Um verão de peles expostas, marquinhas escondidas, ardores secretos. Um verão cujas noites eram promessas. Os dias, imensos.
A Marina canta "essa noite eu quero te ter" e não consigo disfarçar um sorriso. Canto junto, baixinho, a música que embalava os nossos, os meus sonhos adolescentes, e de repente me dá uma saudade de nome bonito, me bate uma nostalgia daquela menina desajeitada que tinha pela frente a magia colorida dos verões sem pressa, das pedaladas e sestas na rede, dos livros empilhados à espera - momentaneamente esquecidos em troca de mais urgentes amores. Saudade de um tempo em que as únicas preocupações eram esperar o carrinho do picolé, as amigas para sair em bando,  sem rumo. Imaginar se o menino que a gente gostava ia estar na avenida, e se ele ia nos ver, e se nos visse, se ia nos querer. A música fala das estrelas, do mar, e eu lembro dos passeios noturnos pela praia, das noites sem lua, a gente deitado na areia olhando a imensidão infinita daquele céu, o mais bonito que já vi: pedidos para uma ou outra estrela cadente. Não é à toa que nas minhas lembranças, a saudade é sempre verão.
A música termina, acabo de escolher as mangas, o mamão, as bananas. Ameixas. Como eram doces, suculentas, diferentes, as ameixas daqueles verões. Como eram diferentes, os verões. Num impulso, compro também um pote de sorvete. Um não, dois. Saio para a rua, e o calor da cidade me abraça com força. Perco o ar por um instante, suspiro. Está todo mundo na praia, as avenidas de Porto Alegre estão desertas, como estavam os corredores do supermercado, como estava meu carrinho, antes de se encher de frutas, cheiros, lembranças.
Coisas, da vida.

Dani Altmayer

( crônica para a oficina- Santa Sede, verão)

domingo, 15 de janeiro de 2017

Se eu te amo você me pertence



"Sei que é você e não vem dizer
Que não, não, que não, não
Eu te amo e ao meu lado é o seu lugar

Me dê uma chance posso te mostrar
Que o meu amor não vai te machucar"

Não são ainda sete horas da manhã, estou num uber indo para o plantão. Andar de uber já não é como no início, quando o motorista, além de oferecer água e sete belos, gentilmente perguntava: 
- Tá boa a rádio?
Não estava, mas ele não havia perguntado e eu não tinha respondido. Tampouco ele havia ligado o ar, e fazia um calor absurdo já àquela hora nas ruas vazias de Porto Alegre, só que não era sobre a piora deste serviço que eu queria falar. 
Era sobre essa música aí de cima que tocava na rádio (Alegria?), e me fez pegar o caderno de notas e escrever o refrão para não esquecer, "eu te amo e ao meu lado é seu lugar."

Se você não me ama, não interessa. Porque eu te amo, você não tem escolha. É minha. 
E meu amor não vai te machucar, se você me der uma chance. Se me aceitar de volta, me perdoar. Se você voltar para onde pertence, se ficar ao meu lado. Não vem dizer que não. Não aceito seu não, nem vem.
Porque se você não voltar, então sim, meu amor poderá te machucar. Poderá até te matar. 
E depois ainda ganhar aquele nome bonito, quase romântico, de crime passional.
A culpa, claro, será sua, foi você que esqueceu onde era seu lugar. 

Meu amor, relaxa. Era só uma música. Boba até, desafinada.
Era só, mas poderia não ser.
(Não acho que seja.)

Dani Altmayer









quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

A dona daquela casa


Gira a chave na fechadura com dificuldade. Afasta do rosto uma teia de aranha, a casa está fechada há muito tempo. Entra pela porta da cozinha, sempre entrou por ali, descalça depois de uma brincadeira no jardim, jogando a mochila de livros na volta da escola, chorando em busca de conforto. Abre as janelas e a luz que vem da rua faz as partículas de poeira dançarem à sua frente, o chão sujo tem marcas de pés e uma barata morta. Olha para o fogão antigo de seis bocas ao lado do fogão a lenha, lembra das panelas todas fervendo ao mesmo tempo, chiando, resfolegando. Exalando cheiros diversos. Feijão, arroz, batata frita, carne assada. Bacon, cebola, torta de maçã. Bolo de chocolate, calda de morango. Brigadeiro de panela, pipoca, doce de pêssego. Limonada azeda, é bom para afinar o sangue, menina. Bolo quente com refrigerante gelado dá dor de barriga. Come mais um pedacinho, está tão magrinha. Um doce para espantar a tristeza. Uma música no rádio de pilha. Fofocas dos vizinhos. Uma colher de azeite, para ajudar na digestão. Bala do coco, feita agora. Suspiros, suspira.
A dona daquela cozinha há muito se fora. De vez em quando, nos sonhos, ainda consegue sentir suas mãos ásperas e ouvir a voz rouca do cigarro de palha que compartilhavam escondidas da mãe, na escada dos fundos de casa, em tantas conversas sem pé nem cabeça, comendo bolinho de chuva, lambuzando as mãos de açúcar, canela, fritura
A dona daquela cozinha e dos sabores que agora se derramam em sua memória, aquela que sabia tudo de si, cada segredo e cada mania sua, sabia tão pouco dela. Será que alguma vez teria amado? Ela, que conhecia todos os temperos, os chás para as dores mais diversas, ela que fazia o suco de uva mais doce do mundo, teria ela conhecido o gosto amargo de um amor de verdade?
A cozinha era o coração daquela casa gelada, o único lugar onde as janelas e as portas estavam sempre abertas, onde o sol fazia a festa das violetas e das bromélias, onde o vento espalhava aromas e pólen, onde a pia brilhava na limpeza caprichada. Ali, na cozinha, ela queria fazer sua cama, como o velho cachorro que dormia o dia inteiro ao lado do fogão a lenha. Não deixavam. 
O restante da casa era escuro, a mãe não suportava a luz e a música, com suas enxaquecas, e era dura, fria de pedra, tinha aquele cheiro de fechado, cheiro de velho, de coisa vencida que se esquece de jogar fora. Como a mãe, depois que o pai partira.
Só na cozinha havia risos. Ali era onde a menina encontrava alimento e pão quentinho, onde ganhava carinho e puxão de orelha, rapadura de doce de leite e leite morno bem docinho, bom para afogar mágoa, minha filha.
A dona daquela cozinha parecia saída de um conto de fadas, como a bruxa do João e Maria às avessas. Ela a alimentara e a engordara aos poucos, em tudo o que não tinha de resto. Mas ela hoje percebia, sabia tão pouco daquela mulher que amara tanto, que estava sempre ali, como era para ser e como achava que tinha que ser, a mulher que era sua garantia.
Há muitos anos fora embora daquele lugar, da despedida só guarda aquele rosto enrugado e o sorriso sem dentes, os olhos marejados de tristeza e orgulho da sua menina que ia para a faculdade. Levava na bolsa uma fatia de bolo, broas de milho e um caderninho com as receitas que anotara com capricho ao longo dos anos. Nunca usara.
Poucas vezes voltou, em busca daqueles cheiros, de um bife mal passado, de um abraço. De um conselho que ela já não podia lhe dar. Havia crescido demais para aquele colo e o seu mundo perdera o alcance daquela cozinha. As visitas foram se espaçando, até que um dia recebeu a notícia. A alma da casa havia morrido, não viu motivos para retornar, por longo tempo. Nunca quis descobrir o sabor de um amor não correspondido. Até hoje não quer. 
A casa era sua agora, mas sua vida era outra.
Não percorre as salas vazias, os quartos, os corredores escuros. Não olha os porta-retratos, nem anda no jardim de grama crescida e flores em desalinho. Não abre nenhum armário, não revira gavetas nem memória. Os cheiros, os gostos e os desgostos, estes estavam todos, há muito, encaixotados.
Apenas deixa-se ficar na cozinha, de olhos fechados por um instante, pensando nela. Nelas. Depois pega a bolsa, tira de dentro o velho caderno de receitas e o deposita sobre a mesa de madeira. Talvez o novo morador tenha mais sorte com ele. Fecha as janelas, uma a uma, e sai por onde entrou. 
Ao trancar a porta da cozinha, a chave agora gira com facilidade.

Dani Altmayer ( escrito em setembro/ 2016)




quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Solidão, a praia



Canto de pássaros e o barulho do mar, o sol acordando no horizonte, a praia vazia.
Cheiro do mato molhado pela chuva da noite, e silêncio.
Uma picada de inseto na perna direita, pés descalços, a cabeça vazia.
São seis horas da manhã e mais trinta minutos. Todos dormem.
Os dias são longos, aqui. A noite também.
O tempo tem outro ritmo longe do asfalto.
Ontem a visão de conchinhas na areia me fez chorar. Chorei de saudade de um menino e de uma mulher que costumavam catar estrelas do mar aqui, muitos anos atrás. Eu os vi caminhando ao longe, de mãos dadas, entretidos em conversas intermináveis.
O menino cresceu, viajou. A mulher morreu.
Não adianta, a vida é sempre provisória.
Hoje uma menina ilumina nossos dias feito o sol que se levanta sobre o mar, no momento um pouco escondido por nuvens escuras, o que faz com que a água adquira reflexos prateados. Talvez chova um pouco como ontem pela manhã, antes de fazer muito calor.
Deve fazer muito calor mais tarde, agora não.
Agora só tem passarinho e barulho de mar, tem um pouco de vento e um muito de paz.

Dani Altmayer