domingo, 29 de outubro de 2017

Sol particular





Não há luz mais bonita do que o amor.
(Ou seja lá que nome isso tem.)
Só por hoje é o que basta saber.
De todas as outras coisas, eu não sei.

Daniela Altmayer

Muitos




Deitada de costas, a sensação é de que estou boiando numa água calma, meu corpo é líquido quente no fogo brando da sua boca. 
Ao toque sutil da sua língua, sou puro deleite.
Excitação pungente. Crescente, quase dor.
Começa com um arrepio suave que sobe pelo meu ventre, me alcança a garganta num gemido surdo. Depois um tremor quase imperceptível, então muitos- múltiplos espasmos me percorrem feito redemoinhos. Numa dança sensual e lenta, o ritmo marcado pela respiração. 
Seios ofegantes, lábios entreabertos, secos, me curvo e me ofereço inteira e úmida à sua delicadeza única.
Súbito, uma descarga forte, e outra, outra ainda- encadeadas, incessantes, insistentes. 
Ondas sem platôs, sucessivos ápices de um orgasmo interminável: a soma de vários.
A multiplicação da felicidade rara- que só é possível assim, na mais perfeita das entregas.
Que só é possível assim, com você.

Daniela Altmayer

domingo, 22 de outubro de 2017

Por que o amor?




São quase sete da noite, horário de verão- ainda é dia, mas está escuro. Um dia cinzento que não amanheceu.
Vejo seu João fechar a porta da guarita, está acabando seu turno. O uniforme azul-claro impecável em contraste com a pele escura, a cabecinha branca curvada sobre os ombros também curvados. Ele conversa um pouco com Manoel, o porteiro gordo da noite. Olha para cima e me vê na janela. Acena timidamente, está triste. Estamos todos. Pega sua sacola e se despede do colega.
Seu João trabalha no prédio há 18 anos. Ela a viu nascer e crescer. E foi ele quem a encontrou, cedo pela manhã, na piscina.
Espio o jardim recém-florido, a grama bem cuidada. Um pássaro se despede da tarde, e o resto é silêncio- nada lembra a confusão do início do dia. Todas as janelas estão fechadas no quinto andar, nenhum carro na garagem exceto o meu. O parquinho infantil está deserto de risos inocentes. Um balanço dança com o vento, e range, gemendo. Precisa botar óleo, me lembro.
Fecho a cortina e penso nas palavras do porteiro, os olhos arregalados e úmidos:
- No pulso direito tava escrito fé. No esquerdo, AMOR. Bem grande. Não dá pra entender, dona Cláudia. Uma menina bonita, tinha tudo. Minha amiga...
Ainda posso ver os dois conversando na guarita, pouco tempo atrás. Ela sentada no banquinho dele, uma xícara de café na mão e os biscoitos que dividiam quase todo dia.
Uma vez me disse que gostava das histórias que o velho contava, anotava todas num caderninho- tinha planos de escrever um livro. "Tudo é inspiração, dona Cláudia." Também de mim perguntava, interessada. Mas eu não tinha nada de bom para contar, só sei das coisas do condomínio, e das que vejo da minha janela- faz tempo que a vida parou de acontecer por aqui.
Imagino agora seu João sozinho na parada, depois sacolejando dentro do ônibus em direção à sua terrinha, como ele diz. Mora num pequeno sítio na periferia, com a esposa e o neto Carlinhos. De vez em quando ele nos traz umas bergamotas miúdas e azedas, diz que a patroa mandou. Traz ovos caipiras também, para vender. Acendo uma luz no apartamento, suspiro- hoje foi difícil ser síndica. Imagino o pobre homem chegando em casa agora e dando a notícia, os olhos turvos molhados e incrédulos. A mulher o abraça forte pelas costas, ele solta o choro represado do dia, inconformado:
- Pra quê? Se tinha tudo, tanto amor... Se tinha amor até tatuado, pra não esquecer. Não consigo acreditar.
Primeiro a fé, de leve, superficial, com medo ainda. Depois o amor- que ela cortou forte e fundo, e deixou sangrar até morrer, o AMOR.

Daniela Altmayer
( desafio: pra que o tal do amor?)



Naufragada



Não sei se você vai entender minha letra. Escrevo com dificuldade, minha mão direita treme muito, às vezes esqueço as palavras. Pedi à enfermeira um dicionário, mas de nada serve quando esse branco toma conta do meu cérebro, aos poucos eu estou perdendo a capacidade de dizer. Devia ter falado quando ainda havia fala, paciência. Espero que me reste tempo suficiente para eu terminar essa carta que esboço há meses, tem dias que não consigo escrever nada.
Queria dizer que voltei por vocês. Todas as vezes, eu voltei por vocês. Não espero que me perdoem por isso, acho que nunca poderiam entender o que eu fui e o que me tornei, vocês nunca poderiam saber o que se passava aqui dentro, nessa cabeça e nesse corpo febris que finalmente falham, que agora me privam de uma velhice digna, do acerto de contas, dos netos que não conheci nem conhecerei. Este é o exílio que mereci.
Os dias aqui são todos brancos, como as paredes desse quarto. Na mesa ao lado da cama tem uma foto de vocês duas, vestidos vermelhos iguais e longas tranças, de mãos dadas com seu pai. Fui eu quem tirou essa foto, logo depois que voltei. Seu pai tem os olhos cansados. Ele era um homem bom e cansado. A foto está desbotada, mas o vermelho dos vestidos não. Vocês eram lindas, tão diferentes uma da outra. A Lina sempre muito séria, com raiva-já sabia e nunca me perdoou. Ana, tão pequenina e ainda inocente do crime de que foi cúmplice involuntária.
Eu só amei um homem na vida, e não foi esse que me olha na fotografia, esse homem correto e cansado, que sempre me recebeu de volta. Não, ele não foi o amor da minha vida, o pai de vocês. Deveria ter sido, se as coisas fossem como eram para ser, nunca foram, ele tinha o melhor tipo de amor. Acho que hoje vocês já devem saber que existem amores bons e amores ruins. Eu escolhi o amor ruim. 
Seu pai viajava muito, a trabalho, isso não é desculpa- teria acontecido de qualquer jeito. Desde sempre tive paixões que me queimavam, um buraco que não conseguia tapar com a maternidade, com as tarefas de casa, me perdia nos livros e escrevia poemas, fazia longos passeios pela ruas de pedra, sofria de solidão. Mesmo quando meu marido estava em casa, até mais quando estava. Odiava a cidade pequena e cinza que me confinava, o cais do porto e sua promessa de terras distantes, a sujeira das calçadas. Aquela gente pequena.
Quando fui embora, você tinha três anos, Ana. Nunca falei para nenhuma das duas onde estive, fui para longe, atravessei o oceano. Fui para muito longe. Tentei buscar vocês muitas vezes, seu pai impediu. Durante um ano e um mês, fui a mulher mais feliz e a mais infeliz do mundo e no fim, sem saída, eu voltei. Por vocês.
Seu pai aceitou tudo, os outros amantes, homens em quem eu buscava alívio e dor, as bebedeiras, os abortos- filhos não planejados, não havia mais espaço: sempre foram só vocês. Ele era um homem bom, tinha esse amor cansado, acomodado, que eu não merecia e não desejava. Vocês sabem, fiquei com ele até o fim e não poderia ter sido diferente. Mas eu nunca estive ali.
Hoje que já não tenho voz, e que as palavras me fogem, escrevo antes que seja tarde, só que é sempre tarde. Anoitece, e eu queria que vocês soubessem: antes de ser mãe, fui mulher. Fui muito mais mulher do que mãe. Doente, intensa, atormentada pelos vícios de uma paixão e de um segredo que devorou meu corpo, depois meu espírito, finalmente explodiu minha cabeça. 
Voltei por vocês, mas não para vocês. Já era tarde demais sem que eu soubesse. 
Minha mão treme, tudo falha, estou de partida. Estou partida há muito tempo. 
Mas antes de ir, Ana, preciso te dar um nome e um endereço. É de longe, de um lugar distante.
De onde nunca retornei de verdade.

Daniela Altmayer
( Exercício de texto confessional - objetivo não alcançado- para a oficina de escrita criativa)

sábado, 14 de outubro de 2017

Sons


Chove em Porto Alegre, e para.
Ecos de trovões exigentes precedem o aguaceiro. Chove e para.
Quando para, o canto insistente dos pássaros  atravessa o nublado do céu. O ronco de um motor desregulado abafa a música passarinhal.
Carros são a anti-poesia, realidade concreta e crua.
Sinto falta dos sapos do Cassino, daquele lamento triste que vinha do jardim molhado.
O cheiro da grama brilhando na noite escura, a sinfonia dos grilos- uma breve melancolia.
Chove em Porto Alegre e quando para, o som seco do cimento é quase silêncio.
Exceto pelos passarinhos.
Só os pássaros resistem, a intervalos de chuva.

Daniela Altmayer

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Vinho doce



No álbum velho as fotos estão desbotadas. Mal reconheço a menina de dezoito anos que vivia sua aventura de estreia longe de casa.
De todas as viagens que fiz, guardo nítida a lembrança da primeira vez em que estive na terra da minha mãe, ainda no século passado. Desembarquei sozinha na Inglaterra, em abril de 1988, para estudar inglês durante três meses.
Fiquei em uma cidade chamada Bath, tem esse nome devido aos antigos banhos romanos. Morava na periferia, hospedada com um casal que me parecia velho então, mas que, muito provavelmente, tinha a idade que tenho hoje. Ele, Mick, era funcionário da prefeitura, Margaret era enfermeira. Ele achava minhas pernas engraçadas, me apelidou de Funny legs, vivia contando piadas. Ela era mais séria. Mantive contato com eles através de cartas por longo período após meu retorno. Dez anos depois, voltei para uma visita.
A casa era simples, jantávamos às 17 horas, e depois tomávamos chá, assistindo programas bobos na televisão, comendo os melhores biscoitos com cobertura de chocolate que já provei na vida. 
A escola onde eu estudava era perto, dava para ir a pé. Fiz amizade com duas brasileiras, dois italianos- um dos quais namorei, um suíço e um árabe. Para se chegar ao centro da cidade, era preciso atravessar um parque muito verde, onde também fazíamos piquenique e jogávamos frisbee. De vez em quando a gente fumava um haxixe, trazido pelo árabe, o Ali. Naquele quase verão, o sol ia alto até perto das dez da noite.
Uma ou duas vezes por semana, o programa era ir até um pub local, onde eu pedia sempre a mesma coisa: a glass of sweet white wine, please. Não sei como não me engasgava nas palavras, a sorte é que, sendo o dinheiro curto e contado, eu só tomava uma taça mesmo. 
De vez em quando íamos a Londres de trem. Aprendi os mapas do metrô, visitei catedrais e museus, morria de inveja das japonesas sempre cheias de sacolas de compras, em contraste com minha pseudo miséria.
Detestava a comida da escola e em geral só comia pão, biscoitos e Mars bars- minha grande descoberta daquele tempo. Engordei sete quilos, ao final da viagem minhas calças já não fechavam. Falando em roupas, sobrevivi três meses com meia dúzia de camisetas, dois jeans de cintura alta, três blusas de lã e um casaco.Outra coisa impensável, hoje em dia.
Comprei um walkman que tocava repetidamente duas fitas-cassete: uma do The Police, a outra dos Pet Shop Boys. Quando ia a Londres, entrava na Virgin`s e enlouquecia. Ficava horas ali ouvindo discos. Hospedávamos-nos em Bed and Breakfasts baratos, o banheiro em geral ficava no corredor. Chuveiro era luxo raro naquele tempo, as banheiras tinham crostas de sujeira.
Eu nunca fui tão feliz. E o melhor de tudo: eu era feliz e sabia. 
Sabia que aquilo era único e irrecuperável, que eu nunca mais teria aquela idade, aquela experiência, aquele lugar no mundo. Pensava nisso toda manhã, caminhando para a escola, e ao longo dos dias sempre tão longos. Não esquecia, por um instante sequer, a sorte que tinha, e vivia.
A menina bochechuda que me sorri hoje, na foto desbotada, é até parecida comigo. Ao mesmo tempo, me parece uma estranha. Quando lembro daquela época, penso em como ela era mais sábia. Eu era.
Porque ela tinha a inteireza e a consciência que eu deveria ter até hoje (e não tenho): a de que, não importa o lugar, nem o tempo, a vida é sempre presente.
E só no presente.

Daniela Altmayer
( texto "memorialístico" para a oficina de escrita)

Meus pais ingleses e os brasileiros, em visita.


segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Nas melhores famílias



Eu mandei a foto para o grupo da família.
No grupo da família está a minha mulher, minha cunhada, meus sogros e a tia Clarissa. A tia Clarissa tem noventa anos.
Eu estava sem óculos, tinha acabado de sair do banho e isso é tudo que tenho a dizer a meu favor. Isso e o fato do nome da minha amante ser Flávia. Não sei se eu mencionei que tenho uma tatuagem na virilha, um sol. Minha mulher tem uma lua no mesmo lugar, fizemos juntos no nosso primeiro verão em Garopaba.
Estava todo mundo de férias na praia, menos eu. Num primeiro momento não percebi meu engano, ainda sentei de toalha na cama e telefonei para a Flávia:
- E aí, gostou, gostosa?
Quando vi que ela não sabia do que eu estava falando, desliguei. Em seguida tocou o telefone de casa. Era minha mulher, aos berros.:
- Enlouqueceu?
Perguntei se ela não tinha curtido a surpresa, falei que aquilo tudo era saudade dela, muita saudade.
Não se comoveu. Me disse que a tia Clarissa teve um ataque quando abriu a foto. Estava sentada na varanda agora, em estado de choque. Nunca entendi essa velha conectada, manda trezentos vídeos fofinhos por dia, uma chata. Os pais dela estavam na missa, pedi para ela pegar o celular deles e apagar a foto- não adianta, ela diz, levaram junto.
- E depois, a Cláudia já viu e não para de rir.
Cláudia é a cunhada, que por sinal, já conhecia a minha tatuagem. Uma vez entrou no banheiro sem bater, a safada.
- E as crianças?
Bom, as crianças não estavam no grupo. Menos mal. Estavam brincando no vizinho. Pergunto se estão bem.
- José Ricardo, não me enrola. Você tem outra?
Meu celular vibra, a foto da Flávia aparece na tela. Ignoro.
- Claro que não, docinho. Imagina, você é a primeira e a única, meu anjo. Me confundi, só isso.
Ela resmunga um "tudo bem" desconfiado, os pais voltaram da igreja. Antes de desligar ainda ouço a voz estridente da mãe dela:
- Maria Imaculada do céu, o que é isso? Me explica!
Paciência, o domingo esta só começando. Volto para a cama, deito de toalha molhada mesmo, olho as roupas jogadas no chão: ah, as pequenas liberdades...
O celular pisca, duas mensagens:
Uma da Flávia. A outra da cunhada- a safada.

Daniela Altmayer
( qualquer semelhança é mera coincidência)