domingo, 30 de maio de 2021

Diálogos (im)possíveis




Vamos sair?

Meu cachorro tá doente. 

Mas quando a gente pode se ver?

Tô muito preocupada com ele.

Mas nem um café?

Homens, não sejam essa pessoa.
Qualquer semelhança não é mera coincidência.

Teu desejo não é uma ordem, e sem empatia não há tesão. Sem tesão, não tem solução.

A empatia é aquela palavra que acabamos desgastando por uso indiscriminado, e acabou indo parar naquele balaio de ofertas junto com a gratitude, a gratidão, a resiliência, o emponderamento e outras tantas.
Mas a empatia ( e as outras) não são menos importantes por tão usadas.

Empatia significa olhar do olhar do outro, sentir do sentir do outro, deslocar do self por instantes e permitir-se estar na pele do outro. Lógico que é impossível tentar ser o outro, nunca seremos. E nem se trata disso.

Mas não há diálogo possível, ou conexão, ou amor, ou sexo (sem tesão não há sexo), sem o mínimo de tentativa.

Nós só nos interessamos por aquilo que nos interessa, já dizia meu sábio professor de escrita criativa. E eu acredito ( talvez ingenuamente) que somos todos, sem exceção, interessantes. Mas esta descoberta só vem depois que nos permitimos conhecer, descobrir, interessar.

Não há interesse por quem não se interessa. Nem tenta.

Teu desejo é muito vazio para a minha cabeça cheia.

domingo, 23 de maio de 2021

Aconchego

 




O vento assovia pelas frestas, a luz do fim do dia brinca na parede da sala, o céu outrora cinzento se colore de fogo para a despedida do sol, uma tarde de inverno em pleno outono, a gata aninhada entre as pernas, o velho cãozinho dorme enrodilhado no sofá, uma xícara de chá bem quente, e a bergamota, a única coisa boa desta estação, junto com a sopa e o vinho, esta fruta cor de laranja, azeda e doce na medida certa, o perfume que se demora na língua, nos dedos, na memória, a yoga da manhã, o livro lido até o final, a cozinha limpa, a roupa lavada, estendida, a alma ainda um pouco amassada, a música de domingo é lenta, meu um dia de silêncio e paz.


sábado, 22 de maio de 2021

Rosinhas




 A delicadeza das rosas

diminutas 

recortadas do cotidiano 

jardineiro infiel

o tempo incerto 

das coisas efêmeras 

algum poeta me disse:

a lágrima é a pétala do amor






domingo, 16 de maio de 2021

Narrador não confiável


 

Acordo naquela hora escura em que a noite abraça os sonhos, a madrugada me dói em silêncio, um pé escapa ao cobertor. Penso nas histórias que contamos para viver. Nas que nos contam, também. Mas mais nas que criamos sozinhos.
Somos todos fabuladores, ao fim do dia.
Vez em quando, temos a sorte de coincidir com alguém em capítulos. Dois, três, seis. Mais.
Duramos então o tempo exato de nossa crença, dos subterfúgios que usamos para manter à tona uma verdade inventada, um amor inventado, a trama que não existe fora da nossa imaginação.
Com a afinidade de uma comédia romântica, a amizade da série de TV, o drama do romance épico, o suspense policial, o realismo fantástico, até a superficialidade das redes sociais.
As escolhas do roteiro, os desvios de rota.
Nada é como é, tudo é como somos.
É tudo interpretação. E a narrativa, imprevista e imprevisível. Vilão ou mocinho, a vida nos prega peças. É uma peça sem direito a ensaio.
Somos passageiros, nós personagens. Nós, coadjuvantes nas histórias alheias. Protagonistas da nossa própria, mas nem sempre. Figurantes, quiçá. Ou perdidos no rolê, sem um contexto para chamar de seu.
Carentes de enredo, cenário ou direção. Passíveis de reviravolta. Famintos de finais felizes. Sem garantias. Não há garantia.
Puxo o pé de volta para a coberta, está frio. Friozinho de maio, noite alta.
Ainda falta uma hora para amanhecer, mas o sono e o sonho não voltam mais.


sábado, 8 de maio de 2021

Estou de volta


 

Ontem pintei as unhas.
Hoje pedalei.
Uma coisa não tem nada a ver com a outra, eu sei. Mas é que fazia bem mais de um ano que eu não fazia nem uma coisa, nem a outra. Por causa da pandemia, parei de usar anel, relógio, brinco- este já voltei há alguns meses, esmalte. Por causa da pandemia, parei de pedalar por achar que não conseguiria fôlego, de máscara. Moro num morro, a volta é sempre lomba acima.

Ontem usei um esmalte clarinho. Não sei se vou voltar a pintar a unha toda semana, achei bem libertador poder lavar louça e limpar banheiro (oi?) sem me preocupar com unha lascada. Motivo fútil, eu sei. Me deixa. Mas gostei de ver minha mão mais enfeitada agora, para variar.
Hoje fui à feira de bicicleta. De máscara e capacete, porque autocuidado é legal e é isso. Para minha surpresa, meu fôlego deu e sobrou, sem colocar a máscara no queixo nem por um instante. Quem me conhece sabe do meu ranço por máscara no queixo.
Na descida, o vento frio no rosto, o cheiro da alegria acordando os sentidos. Despertando cada músculo adormecido, num prazer quase infantil de se deixar levar.
Hoje está um daqueles dias gloriosos de outono, céu de azul imenso, temperatura sexy sem ser vulgar. Um dia de subir a serra, como dizia uma das minhas mães. Que saudade das minhas mães. Faz anos que não subo a serra. Aliás, faz tempo que não saio daqui.
Na subida da volta, a vitória das pernas. Dos pulmões. Da paixão reencontrada. Redescoberta.
Pedalar, mais do que pintar as unhas- mas também- me fez voltar e avançar no tempo, ao mesmo tempo. Para um passado e um futuro que existem, apesar. Que resistem.
Além da distopia deste presente, o vislumbre das possibilidades, a certeza de que vai passar um dia.
E que andar de bicicleta é feito amar: depois que se aprende, não se esquece jamais.


sábado, 1 de maio de 2021

O pulso ainda pulsa


 O pulso ainda pulsa 


Pulsão de vida
Eros adoeceu
na pandemia

morre um pouco a cada dia
mas Eros não está morto ainda
ele resiste com ajuda de aparelhos

no oxigênio da tua cantiga
no sonho de açúcar e canela
no balcão de vidro duma paixão
indecente

no toque sutil dos afetos
no tom exato da tua pele
no perfume de rosas ganhadas
gargalhadas esquecidas
na gaveta das meias

poesia dormente
rasgada
sem par

Eros respira
atormentado
adormecido
adoentado

quase sufocado

na força do ódio que destrói coisas belas
nas feias fumaças apagando as estrelas
nos leitos nos peitos apertados de medo

asfixia descaso desalento e desgosto
esta gente feia que não suporta o tesão
essa gente má

mas
pode demorar
mas pode apostar

Tanatos não vencerá seu oposto
não existe adversário mais bonito
ou mais potente

que o Amor