sábado, 30 de abril de 2016

Afogada



A gente pode dizer até logo com um sorriso.
Mas não há sorriso numa despedida. 
A gente pode fingir que sim, pode até mesmo sorrir.
Mas não há sorriso numa despedida.
Porque todo adeus é um pouco triste. 
Todo adeus demora.
Você está tão perto que posso sentir sua respiração.
Tão perto que me faz prender a minha.
Tão próximo que é só esticar o braço, num toque acidental.
Num toque incidental, fora de alcance e sem propósito.
Porque tão perto estamos quanto dois continentes...
E um oceano inteiro nos separa, nessas tardes (agora) intermináveis.

DA

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Ainda não

 
 
                     
                           25 de março

No convite estava escrito traje passeio completo. Para mim, traje de passeio é calça jeans e camiseta. Não sei porque aceitei ir a essa festa, a Verinha sabe que eu tenho pavor dessas coisas metidas a besta. Pareço uma pata caminhando com esse salto, o vestido que aluguei está apertado, engordei bastante, acho que foram os remédios, só pode ser. Meu cabelo está ralo, e a pele horrorosa, quilos de maquiagem só fizeram pesar minhas rugas, pareço uma bruxa loira de batom vermelho. Fazia tempo que não me olhava no espelho com tanta atenção. Devia ter recusado mesmo, ainda não estou pronta. A culpa foi sua, que me convenceu, mas vamos combinar, tem coisa mais triste do que uma festa de casamento, aquela gente toda fantasiada em sorrisos, a mesa de doces, o buquê da noiva, a dancinha ensaiada. Tudo caro, e chato, acho brega. E para quê, pode me dizer? Você sabe que eu não acredito em nada disso mais, eu sei que tudo não passa de um show de atores, um show vazio, antessala de uma vida de mentiras e traições. Eu nem gosto do noivo, ele era muito amigo do Edu, mas a Verinha me garantiu que o Edu não vai. Se ele fosse, eu não iria, você sabe, não estou pronta. Parece que está viajando, o idiota. Na Bahia, com ela.Vi umas fotos no face dele. Sim, de vez em quando eu olho, ok, você me pediu para não fazer isso, blablabla, mas parece que não conhece mulher. Nunca mais mandei mensagem, isso não. Faz meses. Enfim, o vestido é preto, não consegui botar um colorido. Fui no salão fazer escova e maquiagem, e pintei a unha de vermelho. Por você. Vou com a mãe, ela não perderia uma ocasião dessas por nada, acho que também é desculpa para não me perder de vista. O pai já está roncando no sofá, e não são sete horas. Não vou beber, nem se preocupe. Mas estou levando as gotinhas na bolsa. Já tomei algumas. Tenho usado menos, agora. Só na rua, só em caso de emergência. Esse é um caso de emergência, total. Eu fico com pena da Vera, sabe, queria tanto casar, gastou um carro zero nessa festa. E ela foi uma das poucas que ficou, apesar de tudo. Vou fazer o possível para parecer feliz por ela, mas a vontade que tenho é de dar os pêsames em vez de parabéns. Ela não sabe o que a espera. Talvez saiba e não se importe. Tudo o que importa é o que aparece. Falei isso para a mãe, que só me olhou atravessado. A mãe está linda. Nem pareço filha dela, tão elegante sempre, tão poderosa. Queria era ficar em casa com o pai, vendo TV de pijama. Mas eu vou, pela Verinha, por você, e prometo me comportar. Amanhã escrevo mais, contando como foi. Ando um pouco cansada de ficar escrevendo, eu sei que faz parte e tudo, mas quase nada acontece, nunca. Às vezes tenho vontade de inventar umas coisas para você me achar mais interessante. Porque, fala sério, eu sou um tédio mesmo. Ah, já ia esquecendo. Antes que você pergunte, o vestido é longo, tem rendas nas mangas e esconde os braços. Vestido de bruxa, não dá para ver as marcas. A mãe que escolheu. Não que seja um segredo para ninguém, né? Mas é melhor assim, a gente acha. Ainda não estou pronta. Nem um pouco. Mas eu vou.
Nem saí de casa ainda, e esse salto alto já está me matando. Fui.

           26 de março

Ele foi.
Ela também.
Eu bebi.
Minha mãe quer me matar.
Os doces estavam ótimos, afinal.
Não consigo escrever.
Desculpa.

Dani Altmayer

Exercício para a oficina de escrita, personagem em 3D ( e porque ela aceita, ou recusa, o convite para uma festa).

quinta-feira, 28 de abril de 2016

(Mais) conversas de consultório



Eu e os meus reacionários...
-Doutora, vai querer me dizer que 1964 foi ruim? Não sei o que o seu pai e outros lhe ensinaram, mas não era ruim não.
- ...
- Tem uma palavra bonita que todo mundo tem medo, doutora: REPRESSÃO. Fez coisa errada, tem que ser reprimido mesmo. Vai dizer que 1964 era ruim? Podia fazer tudo sim, desde que fosse o certo. Só não podia ter uma conversa como essa nossa agora. Só isso.
- ...
Desculpa, seu J. É que eu nao sei bem o que é este " certo" que o senhor fala. E palavra bonita para mim é LIBERDADE.

Dani Altmayer

terça-feira, 26 de abril de 2016

Atacado

Brasil com s


Com um pouco de jeito, tudo é facilmente distorcido para se moldar a um desejo ou uma crença. Impressionante.
Que criaturas tão manipuláveis somos nós, apaixonados e bipolares... Não somos mais do que massa de modelar, brinquedos guiados pro controle remoto, memes engraçados e tristes, escravos de nossa (im)própria fé.
Marionetes sim, mas de quem?
(A foto não acompanha o pensamento, são independentes. Mas, sei lá, deu vontade de casar um com o outro...) 
Júlio de Castilhos, POA, Brasil.
Ou, simplesmente: Brasil

Dani Altmayer ( em fase de fotografia...)

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Temporal



A chuva bate na vidraça com força e ritmo, os raios atravessam as frestas e se acabam em surdos trovões cada vez mais próximos. Mais dentro. Lembra da mãe que queimava aquelas folhas bentas de palmeira que ficavam junto à cruz, e rezava. Quer rezar, mas não sabe para quem. Não tem cruz, nem espada. Não tem mais crença. É madrugada ainda, está sozinha com a tempestade e tem medo. Sempre teve. Afasta a cortina para olhar a rua alagada e o céu que desaba numa enxurrada levando embora seu sono e seus sonhos. Não tem mais sonhos, divaga. Só restam os clarões e esse barulho ensurdecedor. Explosões, lá fora, aqui, na sua cabeça. A pergunta não respondida, a resposta tardia, a saudade absurda. Abraça o travesseiro com força, e fica tudo escuro. A luz acabou faz horas. Faz tempo. Quer chorar, mas o choro secou. Faz anos.

Dani Altmayer
( desafio de escrever em 15 min sobre insônia)

domingo, 24 de abril de 2016

A porta



No meio da curva tinha uma casa.
Uma casa feita de plástico e papelão.
Foi "construída" na frente do palácio da polícia. Faz um tempo que passo por ali de bicicleta. De vez em quando encontro os moradores, um homem e uma mulher, sentados na rua que é o quintal da sua casa no meio da curva. Às vezes só ouço suas vozes, em alguma discussão íntima, de dentro da casa de paredes finas.
Uma casa torta, de papelão e de plástico, escorada no poste, na curva da pedalada. Uma casa que não tem telhado, janela ou metro quadrado.
Uma casa que não tinha nem porta, até outro dia.
Agora tem. ( E, pensando bem, porta é mesmo mais importante que janela).
Tem uma porta agora. Na casa de papel e de plástico que fica ali, naquele poste. Na curva da avenida Ipiranga, número zero. Exatamente aqui, bem no meio do nosso caminho.

( Tem coisas que só passando devagar se percebe. Tem coisas que só olhando de perto. Uma porta para lugar algum...)
Dani Altmayer

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Não ao obscurantismo


Eu tirei essa foto com o celular há algumas semanas, na avenida Osvaldo Aranha, de dentro da lotação. Era cedo, antes das oito da manhã, e a cena me chamou a atenção porque só havia mulheres na parada, com exceção de um senhor que fumava ali mais afastado.
Lembrei da foto por causa da polêmica matéria da Veja sobre a pretensa futura primeira dama do Brasil, e das discussões que se seguiram, como sempre em tom polarizado (pena), ainda que cheio de humor ( ufa).
Com o maior respeito às escolhas individuais, meu desconforto vem de antes e de algo mais profundo. Vem desde domingo. Sinto que estamos vivendo uma onda de retrocesso conservador cristão, com todos aqueles deputados falando em nome da família e de Deus e contra a mudança de sexo das crianças na escola (!!!!!). Percebo a fragilidade de tantos direitos adquiridos, direitos esses que como bem disse a Diana Corso na Zero Hora de hoje, estão "ainda nada afirmados e longe do ideal. "
Eu não votei na Dilma, nem gosto dela, menos ainda do Aecio, e desde que essa história toda começou eu fico em um lugar extremamente desconfortável, que é em cima do muro. Olho para um lado e para o outro. Leio muito, tudo que está à minha esquerda e à minha direita, penso, penso no esforço vão de tentar entender. Aos que necessitam de rótulos, podem me chamar de isentona, não ligo. Estou mesmo cheia de dúvidas e de medo.
Será que é possível pensar no bem individual sem perder de vista o coletivo?
Eu quero o fim da corrupção política, como todo mundo.
Também eu quero que as coisas melhorem, quero poder andar em segurança na cidade em que vivo, quero que meu filho possa continuar estudando na escola que pagamos com esforço, quero manter meus empregos e quero qualidade de vida. Quero poder viajar para a Europa, fazer academia e meus cursos de escrita. Seria hipócrita dizer que não. Tenho consciência de meu esforço pessoal e também da minha posição privilegiada, da qual não me envergonho ou orgulho. É como é, e sei que a vida é mais fácil para gente como eu.
Mas também quero que todos tenham acesso a um mínimo de dignidade, que a tal qualidade de vida seja um bem universal, assim como a saúde e a educação, a comida na mesa e o dinheiro no bolso. Quero que a minha família nada tradicional seja reconhecida como família, e que não sofra preconceitos de qualquer ordem. Que ninguém sofra, porque fachada não é casa. É cenário. Quero deixar Deus fora disso, porque tem gente que acredita, e tem gente que não. Quero dizer basta a radicalismos, discursos de ódio e rebaixamento de qualquer pessoa, seja por sua posição política, religiosa, social, quer seja por sua orientação sexual ou por gênero.
Quero que o feminismo e suas duras conquistas sejam valorizados, lembrados, incensados. (Porque é tudo ainda muito frágil). Quero que as mulheres possam escolher seus lugares, e serem respeitadas, sem distinção. Pela sua personalidade qual for, desde putas e santas, doidas e sanas. Com as saias na altura que bem entenderem. Belas, todas elas. E feras.
Quero, principalmente que as mulheres sejam respeitadas pelo seu trabalho, sim, não importa se dentro ou fora de um lar.
E, se isso tudo é utopia, que seja. Não sei mesmo viver sem sonhar.


PS: Quero ainda dizer que tirei essa foto cheia de orgulho dessas mulheres guerreiras.

Dani Altmayer


"É pelo trabalho que a mulher vem diminuindo a distância de um homem, somente um trabalho poderá garantir-lhe uma independência concreta"( Simone de Beauvoir)

sábado, 16 de abril de 2016

Contrato em branco



Ele vem para um exame admissional como porteiro, e pergunto por quanto tempo ficou na última empresa onde trabalhou como eletricista.  Responde com certa irritação:
- Seis meses, até terminar a obra. Era um emprego temporário, mas eles não avisaram. Se eu soubesse, não tinha nem pegado, eu gosto de trabalhar com elétrica, mas não gosto de temporários.
Ele sai da sala mas a frase fica: não gosto de temporários.
Ninguém gosta, eu acho. Porque a necessidade de garantia vem da da fome de certezas que decorre, por sua vez, da única certeza que temos. Que nosso tempo é provisório.
O tempo, esse velho senhor passageiro, misterioso e indecifrável, nunca dá garantias. Se o tivessem avisado, que diferença faria?  O que é pior, estar desempregado ou trabalhar por um tempo no que se gosta? O que é melhor, ficar na segurança de uma zona morna, triste conhecida, ou viver uma paixão desenfreada de dias contados e choro garantido?
Não sei de suas dúvidas, mas sei de mim. Não quero que a incerteza me limite. Quero aceitar os riscos e os desvios, os desvarios e as súbitas mudanças de direção. Quero viver a cada dia, mesmo sabendo que um dia irão terminar. Seja um trabalho, uma viagem, uma alegria, uma mágoa profunda. Nada é certo, ou permanente. É tudo ciclo, são ciclos.
Porque tudo nos é emprestado, a juventude, a infância de nossos filhos, até os sonhos. Um amor que dura uma estação ou uma vida inteira, ainda assim é temporário.
Nada nosso é eterno. Muito menos a vida, que não é mais do que uma caixa de surpresas a nós concedida pelo senhor tempo, dentro de um espaço finito, limitado. Um presente absurdo (de bom), e deveras inconstante. Essa vida louca, que, como disse Guimarães Rosa, (só) exige da gente a coragem.

Dani Altmayer

sexta-feira, 8 de abril de 2016

O tempo é uma doença sem cura


Esperava chegar sem chamar atenção, por isso dispensara o convite para o jantar. Já passava das 22 horas quando desceu do táxi em frente à casa de eventos. A orquestra tocava uma música muito conhecida dos anos 1960, e ela respirou fundo. Entregou o convite à promoter, que lhe indicou sua mesa. O salão luxuosamente decorado estava na penumbra, e o cheiro de flores lembrava um velório.  Alguns casais dançavam. Cumprimentou Felipe com um beijo no rosto, e ele a ajudou a tirar o casaco, acariciando seus ombros nus.
- Você está linda, Malika.
Estavam sozinhos na mesa, com exceção de um velho que parecia cochilar. Ariadne tomou um gole de espumante, e esforçou-se por sorrir para o acompanhante que falava algo banal sobre o filé servido no jantar. Assim que seus olhos se ajustaram à luz, localizou a mesa do homenageado, o qual estava parcialmente escondido atrás de um arranjo enorme de rosas amarelas. Reconheceu sua mulher, agora uma senhora gorda, ainda muito elegante em seu vestido preto de renda, e o filho mais velho. Os outros deviam estar na pista de dança, mas não conseguia vê-los de onde estava. Por um instante, o idoso se levantou e pareceu olhar em sua direção. Ariadne cobriu o rosto com a mão.
A orquestra tocava New York New York, e muitos casais se levantaram. Ela recusou o convite de Felipe, "ainda não, "segurando com firmeza sua bolsa de lantejoulas.
Do outro lado do salão, o aniversariante sentia seu velho coração palpitar. Suando, colocou o remédio embaixo da língua, e voltou a sentar, tranquilizando com um gesto vago a esposa preocupada. A velha senhora o mantinha sob severa vigilância. 
Ele a vira desde o momento em que Malika pisara no salão, majestosa com sua beleza negra, o vestido prateado em cascata sobre o corpo perfeito de quadris largos, e observara cada passo seu em direção à mesa onde se encontrava agora. A mulher tinha aquela idade indefinida entre os quarenta e os cinquenta, mas não restava dúvida. A semelhança era impressionante. Era como se a estivesse vendo na sua frente, apenas um pouco mais velha e muito mais sofisticada. 
Um pouco tonto, ele se senta novamente. Os oitenta anos lhe haviam deformado o corpo, enrijecido pela artrose e dobrado pelo peso, mas não afetaram sua memória. A casa de varandas largas, a mulher e a menina, sempre agarrada às saias da mãe, o cesto no canto da cozinha. O cheiro, o calor, a sesta. Toda aquela umidade, os corpos nus... A tragédia, o escândalo abafado, a remoção às pressas. Suspira.
A orquestra para de tocar por um instante, e as luzes se acendem. O salão está repleto de políticos, amigos, antigos adversários e muitos desconhecidos que vieram homenagear o velho diplomata. O filho mais velho, que seguira os passos do pai e insistira em organizar a festa de oitenta anos, fala algumas palavras ao microfone. A filha e a neta contam uma história divertida. Há muitos risos, aplausos, o parabéns a você, e a orquestra começa a tocar uma valsa suave. Os convidados rodopiam pelo salão, inclusive Malika e Felipe, todos parecendo um pouco tontos e fora de foco. O ar está pesado, e o perfume das flores começa a ficar mais forte e adocicado com o passar das horas. 
O aniversariante agora conduz a esposa devagar e sem sorrir, esmagado pela emoção inesperada. Faz muito calor no salão. A música para de novo, e é esperado que ele diga algo. Pela segunda vez na vida o diplomata fica sem palavras, e só consegue pronunciar um breve agradecimento ao microfone. Nauseado, caminha sozinho e cambaleante em direção ao banheiro, mas algo o faz se virar. Sente os olhos azuis fixos nele, aqueles olhos incríveis incrustados no mármore preto. " Como?" 
O passado viaja de muito longe, é só o que consegue pensar antes que uma mão fria encoste na sua, e ele precise se apoiar na bengala.
- Você...
E a pequena faca lhe corta a jugular no ponto exato em que um punhal atravessou o pescoço da mãe de Malika, há exatos quarenta e dois anos, dois meses e três dias.

Dani Altmayer
( Exercício para a oficina de escrita )





domingo, 3 de abril de 2016

"Amor da alma da cintura para cima e amor do corpo da cintura para baixo."

"Até quando acredita o senhor que podemos continuar nesse ir e vir do caralho?-perguntou.
Florentino Ariza tinha a resposta preparada havia cinquenta e três anos, sete meses e onze dias com as respectivas noites.
-Toda a vida."

Um tratado sobre o amor em todas as suas formas.
Um presente, a cada página.
Há vinte anos, quando o li pela primeira vez me apaixonei. 
Agora a releitura me trouxe, mais do que o novo encantamento, uma súbita e nova compreensão.
Há tantas formas de amor quanto há gente nesse mundo. 

Não se pode entrar no mesmo livro duas vezes.
E isso é que é lindo.

Dani Altmayer ( com aquele aperto que se sente quando algo bom chega ao fim...)