sexta-feira, 21 de julho de 2017

Carta para um avô



"Foi ontem que chegou a confirmação.
Mamãe fez xixi no sapo e ele deu três pulinhos de contente.
Estás ali dentro no quentinho, batalhando para crescer, por enquanto menor que um grão de arroz.(...)
E cá entre nós, que ninguém nos ouça, meu peito parece não segurar tanta alegria. Abraço tua vó e choramos juntos, como fizemos nas quatro vezes em que o sapo também pulou para ela."

Assim começa o livro que tu deu para o JP quando ele tinha oito anos.
Assim começou a história de vocês.
(Nove meses antes de ele te olhar pela primeira vez.)

Folheio agora o livro com a emoção de sempre, e penso que já escrevi tanto para ti, mas não sei se alguma vez te agradeci pelo papel de melhor avô desse mundo.
Se não o fiz, faço agora.
No dia do teu aniversário, enquanto lembro das tuas mãos enormes ensaboando aquele bebê careca e sorridente, trocando fralda, passando protetor solar ( a pior das tarefas, que sempre foi tua).
Enquanto lembro dos passeios de bicicleta, vocês dois de boné pelas ruas do Cassino, a cumplicidade  e a parceria evidentes.
Enquanto lembro das aventuras na neve, dos safaris, das partidas de tênis e futebol.
Das brigas pelo carrinho amarelo, um Porsche se não me engano.
Das tantas viagens que fizeram juntos (dentro e fora.)

Ainda posso ver vocês na rede, na piscina, na varanda.
Ele sempre falando, tu explicando cheio de paciência, contando aquele monte de história inventada.
Acho que o JP é o único que ri das tuas piadas. ( De verdade)

Um homem e um menino.
Um avô e seu neto.
O melhor vô do mundo: desde sempre.

Gratidão, pai. Vô.
Pela tua existência na nossa.
Pela tua presença forte, pelo teu apoio, teu afeto incondicional.
Pelo jeito como tu nos pegou (e pega) no colo e consolou (e consola) tantas vezes, a mim e a ele.


 Teu neto anda querendo fazer uma tatuagem. De novo essa ideia, e agora a coisa é contigo:
- Mãe, para começar, eu queria tatuar a data de nascimento do meu vô no peito.
Depois ele me mostra uma paisagem em um losango, e diz que na seguinte (vai ter mais de uma), gostaria de colocar ali o desenho de um homem de chapéu, e um menino.

"Eu e o vô".

Para representar muito além das andanças de vocês por essa terra:
O amor de vocês nessa vida.

"Quando manuseares este livro, lembra com carinho deste avô que sempre foi um apaixonado por ti e que te acompanhou até aqui. Quero te acompanhar por muito mais..." Assim terminou o livro, nove anos atrás.

Ainda bem que a vida vem te concedendo este "muito mais."
E que venham muitos muito mais!
Que tu sigas com saúde e energia para continuar essa história que, se não está mais registrada num livro, está impressa.
Indelevelmente, e sem precisar de tatuagem alguma

Tá ali, desde o início:
No coração de um neto que é um apaixonado por ti.
E no meu.
Porque, confesso: eu também sou.

Feliz aniversário, paizinho. Te amo!
Te amamos.

Dani


domingo, 16 de julho de 2017

Abrindo espaço



Muitas não se viam há anos.
Algumas reataram.
Outras tantas ficaram sem par. 
Arrumar a gaveta das meias nessa tarde de domingo chuvoso me fez pensar no poetinha:
A vida é mesmo a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.

Só (mais) um café



Ele dizia: ainda tem mais um pouquinho, doce. Vem.
Obediente ela ia, sempre.
Sempre tinha.

Uma hora, de tanto espremer, mesmo o pouco já não resta.
Finda.

Terminaram de comer a torta entre semi- confissões, olhares demorados, perguntas não proferidas.
Voltaram juntos num silêncio embaralhado, ainda úmido - íntimo da emoção contida nas entrelinhas.
Entremeados por aaquela quietez conhecida.

O rádio do carro estava desligado.
- Em que está pensando?
- Nada... Estou ouvindo teus sorrisos.

Poesia.

A mão de um na perna do outro, o toque firme. O conforto das mãos que se sabem. Que tão fundo se deram.
Tão breve.

Por um momento, um lampejo.
 Seria apenas um lapso.

Despediram- se. No beijo a promessa.

Prometeram- se a dose certa.


Não sabem contar as gotas, ela uma desastrada.
Derrama- se toda.

Sem sentido.
Não poderiam ser dose depois de ser tanto.

Nenhum pouco bastaria.

Acho que foi isso, um tipo de respeito póstumo.
Uma espécie de reverência ao que foi.
Que ambos sabiam: foi.

E foi imenso.

Toda essa imensidão e então o deserto.
Esta é a tragédia.

Foi.

Amor de hora marcada,
Hora errada?
Sem drama.

Dani Altmayer

   

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Olhos de ver mundo (carta para Isabella, número 6)


Ainda guardo as lágrimas e o quentinho do nosso último abraço, junto com a pulseira rosa que você me deu. Aquela, que tem poderes mágicos como os da fada do chega, do livrinho que tantas vezes lemos juntas.
É assim que eu atravesso a saudade desse oceano que de novo nos separa.

Sinto falta de sentar ao seu lado e inventarmos juntas aquelas histórias malucas sobre esquilos, cachorros e meninas corajosas.
Morro de vontade de te apertar nos meus braços, de cheirar teu cabelo, de te ver trocando de roupa a cada instante. Experimentando, imaginando. De te ver ficando a cada dia mais forte. Mais grande. 

Só não fico muito, muito triste porque tenho a certeza de que uma vida linda está se abrindo à sua frente, ainda que numa língua diferente da minha, minha princesa que agora vive na terra da rainha.

Uma nova vida que você já desbrava com a coragem e autonomia de sempre, sabendo-se amada e protegida por todos, independente da distância e do tempo - que não nos afastam. Você vive enchendo a gente de orgulho e respeito, sabia?

Cinco anos...
Cinco anos é uma idade importante, Isabella.
As primeiras letras começam a fazer sentido a seus olhos, e logo você estará lendo, descobrindo cada vez mais mundos, crescendo. Ganhando asas para voar. Voa alto, minha bela. Leia muito.

Que nada te limite, jamais.
Que os limites sejam sempre os seus, lembra? "Chega!" ( Sem medo.)
Você é quem define.

Que venham muitos novos amigos, outras paisagens e novas aventuras, menina dos olhos de luz. Que teus olhos nunca percam o brilho das descobertas de cada novo dia.
Inteligente e sensível, que você saiba sempre a melhor medida. A força certa de cada emoção.
Que o universo te devolva em dobro todos os sorrisos e todo amor que você irradia.

E que você saiba que, ainda que cada um tenha um caminho diferente, e às vezes esses caminhos parecem mesmo nos levar para longe, o longe não existe quando existe amor.
Estamos unidas pelos laços desse afeto. É o afeto que não deixa uma história bonita chegar ao fim.
É ele que faz os "para sempre."

Trago no lado esquerdo do meu peito, além dessa grande saudade, a certeza de que a minha vida é mais feliz e plena porque você está nela. Pelo simples fato de você existir.
E também porque faz cinco anos que ganhei de presente um nome que eu adoro, que é só nosso, meu e teu, sempre vai ser (ainda que você esqueça o português, disso não vai esquecer):

    tiDani

Feliz aniversário, Bella. Com todo meu amor.


domingo, 2 de julho de 2017

Sobre meditação




"Note-se e medite-se. Para mim mesmo, sou anônimo;o mais fundo de meus pensamentos não entende minhas palavras; só sabemos de nós mesmos com muita confusão. "
( João Guimarães Rosa)


Antigamente, meditar era pensar sobre. Quando a gente fazia alguma coisa errada, por exemplo, e a mãe mandava:
- Medita sobre isso!
Era quase um castigo, parar para pensar. Deve ser por isso que por algum tempo relutei em meditar.
Claro que depois de muito ler, de muita aula de yoga, e de muito pensar sobre, eu aprendi que a meditação tinha outro propósito, totalmente inverso: o objetivo era parar de pensar. 
Aí que complicou, pois se já era difícil parar para pensar, imagina parar de pensar. 
Comecei de um jeito muito complexo e esotérico: mantras, respiração, incenso. Muita pompa e circunstância, pouco resultado. Nada acontecia.
Eu tentava, sentava naquela posição de lótus. Me doíam as pernas, coçava o olho, as costas nem se fala. Respiração de cachorrinho no parto. Música de fundo. Muito sono, uma vontade de dormir. Dormia, quase sempre. Sentada mesmo.
Ai, que coisa mais difícil. Não era para mim. Era sim. Insistia. Fiz meditação ativa, passiva, dança da chuva. E só o que sentia eram dores no corpo e sono. Muito sono.
Li artigos, livros, vi tutoriais. Decidi que não ia desistir. 
De uns tempos para cá, adaptei a meditação à minha vida corrida- depois de tentar acordar, em vão, às cinco da manhã todo dia. Descobri que se medita em silêncio. Em qualquer lugar, e por qualquer tempo. Pode ser dois, dez minutos. Uma hora. Ou mais (ainda não consegui). Na lotação, no trabalho, no sofá de casa. Só não dá para ser na cama, acredite. Nem tente.
Se eu parei de pensar? Não. 
Mas descobri que eu penso muita bobagem. Não bobagem séria, preocupação, essas coisas importantes. Não penso quase nada importante, Eu penso besteira mesmo, na morte da bezerra, na casa da mãe Joana, no fim da minha série preferida. Na maior parte do tempo a mente divaga por caminhos estranhos e eu bem que me divirto nessa viagem.
São como umas telas soltas de um filme sem edição. Muito loucas. O segredo é não se apegar. Deixar vir, ir, vir, ir. Voltar, respirar. Respirar sim, é importante. São coisas tão desconexas  que começo a acreditar que o verdadeiro silêncio é esse caos mental. 
Autoconhecimento em mãos: sou uma perfeita confusão.
Outro dia participei de uma meditação coletiva. Passei 45 minutos pensando merda. Nem senti o tempo passar, mas saí de lá renovada. Com a mente lavada. Se está certo ou errado, não importa. Faz bem na hora e depois. Como um banho de chuva num dia quente, um balanço na rede, umas férias na Bahia.
É bom.
Se eu estou iluminada? Não, longe disso. Seguirei tentando.
Mas estou mais limpa, com mais espaço. Estou mais em paz. É um paradoxo: na maior parte do tempo, quanto mais confusa, mais coerente.
Descobri que sou tão louca quanto o resto do mundo. 
Quando não editada. 


Dani Altmayer



Clima bem bom


Regata, camiseta, moletom. Calça, meia, polaina.
Casaco grosso. Capacete.
Um protetor para o pescoço que tapa as orelhas e chega até o nariz, te deixando com cara de bandido de filme de faroeste.
Sete graus. (Na beira do rio baixa para quatro). Muitas nuvens, um sol envergonhado, não tem vento. Era só o que faltava.
Tira o casaco, corpo suado, mão gelada. 
Aquele papo de mão fria, coração quente: papo furado. 
Esfria, bota o casaco. Sol espia por entre as nuvens, faz cócegas na ponta do nariz e se esconde de novo. 
Esquenta.
Tira o casaco. Amarra na cintura. Uma chuva molha-bobo vinda sabe-se lá de onde embaça os óculos escuros.
Chove e faz sol, e não tem arco-íris.
Faz frio e calor, e a gente pedala.
Um passa correndo de casacão de náilon e bermuda. Outra exibe as costas tatuadas. Uma menina anda toda encasacada. Gorro e cachecol. Luva e regata. Poncho e bombacha. Um pouco de tudo, mas chinelo não vi.
O sol dá as caras, espantando de vez a intrusa fora de hora. Esquenta.
Na volta faz nove graus por fora e a chuva parou. Por dentro o termômetro marca trinta graus à sombra, depois da lomba.
A estética do frio domina. E determina:
Elegância não é prioridade.
Dez graus em pleno meio do dia. Esfria.
Bota o casaco, definitivamente.

Dani Altmayer