domingo, 26 de abril de 2020

o verão interrompido



os dias de estiagem
o céu sem poluição
o azul infinito das tardes
o vidro sujo das janelas
o chão cheirando a cloro
a mão e a garganta secas
de álcool medo máscara
        e saudades estéreis

Daniela Altmayer

domingo, 19 de abril de 2020

O caos dentro fora




O médico que descobriu que era importante lavar as mãos para evitar doenças infecciosas, ele foi internado num hospício. Não acreditavam nele.
Negacionismo não é de hoje, não. É coisa antiga, para qual ainda não acharam cura.
Que o digam os terraplanistas, os que duvidam que o homem pisou na lua, que acham que a NASA mente, que creem em teorias da conspiração, que vacinas fazem mal, e por aí vai.
Com estes não adianta conversar, são casos graves, e estas crenças precisam de muito mais do que conversa para se desfazer. Só com muita terapia e paciência.
Mas todo dia alguém bem intencionado me faz uma pergunta nova. Sobre se isso ou aquilo é verdade, funciona, se comer alho mata o vírus, se beber água a cada dez minutos, se o vinho protege mesmo, enfim, coisas que se originam sabe lá de onde, e se espalham pelo mundo mais rápido do que a infecção.
Eu respondo que não sei, provavelmente não, ou não teríamos já tantos milhares de mortos ao redor do planeta,
Quase nada sabemos, é tudo muito novo, são seis meses apenas, e neste momento, muitas cabeças privilegiadas estão pensando juntas, na tentativa de entender a história natural da doença, a fisiopatologia, o comportamento do vírus. Em busca de remédios, vacinas, respostas. Respostas que ainda não existem, que ainda não nos satisfazem, nem nos redimem, tampouco aplacam nossas angústias.
Outro dia um colega me perguntou o que eu achava do uso de tal medicamento.( Do tal) Eu respondi, não acho. Deixo para a ciência achar, procurar, testar. Médico não é cientista, na grande maioria. Eu não sou, e tenho a humildade de reconhecer o pouco que sei. 
A verdade é que eu também queria acreditar num milagre. Estamos todos à espera de um milagre. Mas ele ainda não veio, ele pode nunca chegar, e tudo o que sabemos por hora, é o que estamos aprendendo a cada dia. À custa de exemplos bons e ruins, muitos sacrifícios pessoais e coletivos, na base de erros e acertos, de muita dor, o que temos até agora é uma doença séria e invisível.
Negar que ela exista é como fechar os olhos para não ver um perigo. Não vai fazer com que desapareça.
Aceitar é a etapa mais difícil do luto, mas é fundamental para seguirmos em frente. Diante do inevitável, a escolha é só uma: quem queremos ser daqui por diante.
O que caminha às cegas à beira do abismo, ou o que abre os olhos e procura pela ponte pêncil possível?
É hora de encontrar a estrela dançarina, ressignificar o sofrimento, pensar fora de si.
Hora de, mais do que nunca, amarmos uns aos outros.
O que eu faço, então, além de trabalhar, cozinhar e limpar a casa?
Eu acredito na ciência, na força da solidariedade, no distanciamento social e nos bons hábitos de higiene.
Eu tenho tanto medo quanto tu.
E eu tomo própolis, para reforçar a imunidade. Fiz uma reposição empírica de vitamina D, vai quê.
Cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém, legumes e frutas menos ainda.
Tiro os sapatos quando chego em casa, troco de roupa. Escovo os dentes no mínimo três vezes ao dia. Faço exercício na sala. Leio meu livro, choro no chuveiro, dou uma surtada. Bato umas panelas.
E rezo baixinho.
Por um milagre. Da ciência.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Sons de quarentena



De novo o afiador de facas.
É quase meio dia, ele interrompe o silêncio da santa sexta. Lembram do tempo em que se dizia sextou? Lá, antigamente.

Nunca fui muito da sexta- feira, meu dia é o domingo, e segue sendo meu preferido- mesmo agora, quando para tantos, os dias são todos meio domingo ou feriado. Não para mim.

Pela janela o sol se espreguiça, as nuvens intercalam o cinzul do céu de outono, o almoço já está pronto. É a janta de ontem, um risoto de frango, também conhecido como arroz com galinha. Sem peixe hoje, porque não. Fiz outro dia, uma tilápia no forno com farinha de amêndoas, banana, batata crocante. Tenho me puxado, hoje não.

A yoga de manhã cedo foi para poder respirar melhor e sem máscara, enchendo bem o pulmão de ar, barriga inflando feito um balão. Inspira, expira, solta o pensamento. Medita, mulher. Meditação é quimera, utopia e de utopias estamos todos precisados. Não tenho conseguido meditar, mas tento. Tento sempre, quando acordo. Mas só o que consigo mesmo,  é chorar.

Depois vem a limpeza da cozinha, cozinha e banheiro é todo dia, álcool, cloro, antisséptico da veterinária. Esfregar o fogão tão usado. Tem um cara aqui aprendendo a cozinhar também. Lado bom das coisas, sempre tem.

Quinhentos potinhos de água e comida para limpar, a ração da gata esparramada pelo chão- não tem modos a bichana, só para andar: desfila.

Os sacos de lixo, intermináveis, o seco, o orgânico. Cascas de limão, gengibre, cebolas. Raspas e restos. As roupas no varal, roupas da rua, toda vez, os panos secos, molhados, desconheço o verbo passar.

Será que isso vai passar, e quando?

Depois do meio dia ainda tem o plantão, uma metade de doze- seis horas enfiada numa carapuça, máscara, avental, luvas, óculos, medo.

E mais adiante tem o domingo, outro plantão. A vontade era de pegar a estrada rumo sul e voltar no tempo, a outras páscoas, levar o filho para caçar o coelho no Yatch, ganhar um ovo de chocolate diamante negro, o abraço grande do meu pai, do avô dele, de um almoço barulhento em família.

Nunca afiei faca alguma. Todas as minhas facas estão cegas. Surdas, mudas.

Ontem à noite passou um carro aqui na rua, avisando para ficar em casa. Era tarde já, perto das onze. Será que ouviram? E se ouviram, escutaram? Ah, as pessoas, como as facas...

Hoje o afiador nos chama para fora- e é para fora que queremos ir, num assovio triste, feito o do flautista de Hamelin. Seremos nós aqueles ratos? As crianças?

Talvez o afiador seja um serviço essencial, em tempos de pandemia. Assim como passear cachorro e olhar para o céu.

Mas se vai sair, põe a máscara.
(Usa a máscara, lava a mão, tosse no cotovelo, evita aglomeração. Não faz como aquele lá, sem noção. Faz rima, pobre que seja, como a minha, mas pelo amor, não contamina.)

Talvez eu deva voltar para a aula de poesia. Urgente. E afiar minhas facas, afinal. Porque o apito da melancolia, ele volta amanhã. É batata.

 Daniela Altmayer