segunda-feira, 30 de maio de 2022

Afinal




Durmo como há dias, meses, anos não dormia. Nem me sabia capaz de dormir assim, tão fundo, sem sonhos, por exigência mesmo, não por hábito e nem vontade.

O despertador natural me avisa que está na hora de acordar, sempre algo entre 5h30 e 6h da madrugada. A sabedoria do meu corpo resmunga que posso virar para o lado, que vivo num limbo, os últimos e os próximos dias estão zerados, só existem para isso mesmo: repouso e recuperação.
Durmo mais, levanto às 8h, totalizo quase 10 horas de sono total. Sem contar a sesta da tarde.
Descanso sem culpa, todos os compromissos suspensos, cancelados, adiados, o tempo é de convalescença.
Os dias escuros lá fora convidam a estar dentro, e não fosse por uma saudade nova, o isolamento e o silêncio seriam até bem vindos. Naquelas, né, do limão uma limonada.
Depois de dois anos e meio driblando esta doença, ela me chega num momento em que as vacinas funcionam, e salvam vidas, num momento em que o medo já não é dominante, chega num instante em que estou sim, trabalhando muito ( e o tempo todo), mas estou feliz e com esperança, com minha melancolia apaziguada, e assim espero, minha imunidade alta.
Se tivesse que escolher a hora, seria esta. Mas ainda acho que a melhor opção seria não ter. Não adoecer é sempre a melhor opção.
Meus sintomas estão leves agora, mas o cansaço é algo surreal.
Hoje resolvi passar aspirador na sala, quando terminei parecia que tinha corrido uma maratona. Coloquei o oxímetro, frequência cardíaca de 114 ( saturação 99).
Então, não é brincadeira não. Mesmo na forma leve, esse vírus mexe com todo o teu organismo. É mais que uma gripezinha, é sistêmico e imprevisível.
Muito chá, muito própolis, alguns filmes de amor, um amor, música boa e bons afetos.
O carinho e a preocupação dos amigos. Saber-se querida. Cautela, canja de galinha e muito repouso. Um certo tédio, mas olha, para quem viveu no olho do furacão da pandemia, não há do que reclamar. Sei da imensa sorte que tenho. E só agradeço. Por enquanto, tudo certo.
Como diria dona Eileen... so far, so good.




quinta-feira, 12 de maio de 2022

Vestígios



O caminhão está atrasado. Olha as caixas empilhadas, a sala vazia. No vidro da janela, a marca do cartaz, no assoalho a marca do tapete. O sol não perdoa, feito o tempo.

A primeira vez que viu a casa foi aos doze anos de idade, tinha ido com a mãe entregar a roupa lavada e passada. Estava de férias, e gostava de andar com ela pelo bairro dos ricos, ver os jardins bem cuidados, as crianças de roupas bonitas, bicicletas caras e cabelos penteados. Dona Marina atendeu a porta, ofereceu refresco e biscoitos, as convidou para entrar. A sala de móveis escuros a intimidou, mas gostou da cadeira de balanço e do tapete felpudo onde afundavam seus pés, e da limonada doce e azeda que ardia na boca.
Abre a caixa pequena, onde estão os álbuns. Vê a foto do casamento, a mulher de olhos claros, o homem sério a seu lado.
Jorge já era um homem, quando ainda era um menino. Ou talvez fosse o contrário. Os modos de um velho, ela dizia, quando ainda podia dizer. A fotografia, agora sem a moldura, parece menos bonita, a parede também guarda as marcas do que um dia foi. Devolve o álbum para a caixa, sobe as escadas. O quarto maior, a cama de dossel antiga, agora sem a colcha e os lençóis engomados, parece nua.
O cheiro da roupa de cama, lavada e passada nos fundos do casebre, o perfume delicado e as mãos duras e ásperas da mãe a acariciar seu rosto. A queixar-se das dores na coluna, e dos sonhos da menina de olhos claros. Não é para ti, guria. Mas foi, de algum jeito foi.
Abre as portas do armário de mogno. Naftalina.
O menino se escondia no armário, quando o pai chegava, bêbado. Um dia, adormeceu ali, ela o encontrou abraçado a um vestido e ao urso de pelúcia puído que se chamava Teddy. O armário cheirava a rosas, então.
Olha pela janela o jardim de grama crescida, as roseiras sem flores, o gasto banco de ferro. O caminhão está demorando, e seus passos fazem eco no piso de madeira. Entra no quarto do menino. O quarto já não tem qualquer marca, faz tempo que o menino se foi.
O espelho do banheiro reflete o rosto marcado pelo tempo. Os olhos claros estão embaçados pela catarata. A cicatriz no canto da boca ainda dói em dias de chuva.
Todo homem é bom quando não está violento. Jorge era bom quando se casaram. Dona Marina tinha recém falecido e mudaram-se para a velha casa, com os mesmos velhos móveis escuros, ele não queria saber de reformas. Foram felizes até nascer o menino. Até Jorge começar a beber.
Desce as escadas, vai até a cozinha onde manchas de gordura e de sangue marcaram o linóleo xadrez. Uma xícara de porcelana, lascada, descansa sobre a pia. O último café.
Escuta o caminhão estacionando. Abre a porta para os homens que vão levar para longe as caixas, os móveis cheios de cupim, as fotografias e os quadros. Amanhã a casa terá outros donos, as paredes serão pintadas, os pisos renovados e só há de restar aquilo que sempre fica: as marcas invisíveis que a memória não consegue apagar.


Exercício para a oficina de escrita