quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Um Cometa

- Se até os 30 anos, eu não casar com ninguém, você casa comigo?
- Caso.
Era o ano do Cometa Halley, 1986. Estavam deitados nas dunas de areia, à noite. Olhavam as estrelas. Não estavam sozinhos, vários grupos de pessoas costumavam fazer isso, naquele verão. Iam para a praia, munidos de telescópios, latas de cerveja, e alguns baseados. Postos de observação improvisados.
Não eram namorados, eram apenas bons amigos, os melhores, mas acharam por bem selar aquele trato com um beijo. Foi o primeiro beijo que trocaram, até aquele dia.
- Você lembra, Rodrigo, daquela noite na praia?
E é claro que ele lembrava. Aquela tinha sido uma noite de ficar na memória. Um verão inesquecível. Tinham o quê, 16, 17 anos? Por aí.
E é claro que não se casaram. Ao menos, não um com o outro. Ele casara três vezes, estava separado, contou. Ela, apenas uma. Ainda estava casada.
Naquele mesmo ano, no Carnaval, ele arrumou uma namorada, a Bia. Que engravidou alguns meses depois. Ela não foi ao casamento, pois estava morando fora do país.
- Lembra, Fernanda, você escreveu uma carta, me chamando de burro, para dizer o mínimo?
Ela lembrava. Costumavam trocar cartas toda semana, longas, e divertidas, até a bebê nascer. Depois parecia que ele não tinha mais tempo para falar da vida, e as cartas escassearam. O casamento não durou muito, dois anos ou algo assim. Quando ela voltou para a cidade, ele tinha ido morar na Capital. Fazer faculdade. Passaram tanto tempo sem se ver, que perderam o endereço um do outro. As cartas perderam o sentido. Com exceção de um ou outro encontro, na época das festas de final de ano, e depois, nem isso. Ela se formou, mudou para o Rio. A mãe tinha morrido, era filha única. Ele, parece que acabou voltando para a cidade, já casado novamente, e foi trabalhar no porto. De vez em quando uma amiga contava uma fofoca, falava dele, mas com o tempo, não teve mais notícia. Uma vez encontrou a Bia, no Rio, com a filha deles, já uma menina crescida. Mal se falaram, ela nunca gostara da Bia mesmo, uma metida.
- Você foi um burro, Rodrigo!
Ele olha para ela com aquele olho verde, da cor que não era daquele mar, que tão bem os dois conheciam, e diz:
- Sim, Fernanda, fui burro. De não te esperar.
Ela engasga com o pão de queijo. Estão os dois em um café, em São Paulo. Encontraram-se na rua, por acaso. Estavam muito diferentes, mas reconheceram-se de imediato. Reconheceram-se, apesar dos cabelos brancos dele, dos cabelos vermelhos dela. Reconheceram-se porque se reconheceriam sempre.
- Ah, fala sério, Rodrigo. Depois de todo este tempo.
Ele estava falando sério.
- O tempo é uma ilusão, Fernanda. Não significa nada. Eu nunca esqueci você. Acho que não teve um dia na minha vida em que eu não pensasse, "por quê"?
- Não tem porquê, Rodrigo. Eu viajei, você engravidou a Bia. Assim, simples. Não era para ser.
Ela lembrou da dor que sentira, quando ele escreveu contando. Do quanto chorara, lendo aquela carta. Ele nunca soube, mas foi seu primeiro amor. Foi com ele que ela perdeu a virgindade, dentro do carro. Rolou naquela noite, na praia. Foi só uma vez. Eram amigos, continuaram sendo. Ela viajou alguns dias depois, apaixonada. Pensara em dizer a ele, mas nunca o fez. Demorou para passar, como demora para passar a dor de um primeiro amor. Como demora para passar toda dor de um amor interrompido. Nada é mais duradouro do que um caso mal resolvido. Mas passara.Tudo passa, um dia. Ficou muito tempo fora, viajou de mochila nas costas, conheceu muita coisa. Mudou muito.
- Sabe, Fernanda, eu acho que era para ser, sim. Só que a gente não sabia. Tem coisas que a gente não sabe na hora, só muito tempo depois.
- E tem coisas que a gente cria, na nossa cabeça, muito tempo depois. Inventa. Aumenta.
Ele queria dizer para ela que não era invenção. Que pensara nela todos os dias desde aquela noite. Que tinha ficado muito triste quando ela viajou, que a Bia tinha sido um erro, coisa de adolescente, inconsequente. Quando se é muito jovem, você tem um mundo de escolhas à sua frente. Mas não sabe escolher. Que merda de ironia, grande paradoxo da vida. Você segue o fluxo dos acontecimentos, e vai se enredando, sem perceber. Fora assim, todas as vezes. Com todas as mulheres que tivera. E que sempre comparava com ela. Quis dizer que a tinha procurado nestas outras mulheres. Que a tinha buscado sempre, em sonhos, nos guias telefônicos, nas redes sociais. Em vão.
Quis dizer, mas não disse.
- Você é feliz, Fernanda?
Ela olhou bem dentro dos olhos dele, e quando seus olhos encontraram os dela, ele soube a resposta. Ela não precisou falar nada. Teve desejo de beijá-la, então. Mas não beijou.
- Preciso ir, Rodrigo- ela suspirou.
Roçou de leve os lábios na sua testa, e se foi. Ele teve o ímpeto de segurá-la, mas não segurou.
-Fica, mais um instante, sussurrou. Ela não escutou.
Saiu porta afora, sem deixar telefone, endereço ou sobrenome.
Ele pensou em correr atrás, mas não saiu do lugar. Paralisou.
Ainda podia sentir seu perfume. Pagou a conta, esperou. Ela não voltou.
Você é um burro, Rodrigo, sempre foi.
Ela teve vontade de chorar, mas não chorou.


Dani Altmayer







segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Quase Um Segundo

Ela reconheceu a voz dele no instante em que ele disse "alô." Como se não houvesse passado mais de quinze anos desde a última vez que falara com ele.
Conheceram-se no tempo da faculdade. Ele viera de fora, para estudar na cidade dela. Acabara há pouco um relacionamento, e estava muito machucado. Ela, namorava há anos um outro estudante, um pouco mais velho.
Encontraram-se em uma festa, no final daquele primeiro ano. Os dois estavam sozinhos, e acho que foi a primeira vez em que realmente se enxergaram. Naquela noite, algo aconteceu. Uma faísca, uma atração, um tesão maluco. Uma coisa meio sem explicação. Ficaram juntos, escondido de todo mundo. E se apaixonaram.
Logo depois, as aulas acabaram. Vieram as férias, e a separação. Trocaram algumas cartas, naquele verão. Ela esperava, impaciente, o carteiro chegar. Precisava ser a primeira a pegar a correspondência, para ninguém notar. Ele escrevia bonito, mandava letra de música."Quais são as cores, e as coisas pra te prender..." Parecia que gostava dela. Ela gostava dele. Mas tinham medo. Ele, muito desconfiado. Ela, tinha o namorado.
Escondia as cartas, e lia no banheiro. As pernas tremiam. Mas não admitia.
Quando o semestre recomeçou, e ele voltou, botou pressão, ela decidiu. Terminou com o namorado, mas não contou. Queria fazer uma surpresa para ele.
Uns dias depois, teve uma festa de outro curso. Ele estava lá. Ela também. Olharam-se de longe, mas nenhum teve coragem de se aproximar. Até que aconteceu. Um terceiro cara chegou, e  foi com este que ela ficou. Beijou, na frente do outro. Dele. Que não acreditou. Ela nunca esqueceria a dor daquele olhar, naquele momento. Mas estava feito.
Poderia ter terminado por ali, mas não terminou. Ele discutiu feio com ela.  Ela voltou para o namorado. E continuou a ficar com ele, volta e meia, em festas. Pegavam fogo, os dois, juntos.
Estudavam no mesmo curso. Faziam trabalhos em grupo. Brigavam feito cão e gato. Perseguiam-se como gato e rato. Não concordavam com quase nada. Ela queria ter sempre razão, e ele era muito teimoso. Além disso, nunca a perdoou por aquela noite. E ela nunca soube explicar o que acontecera. Nem para ela mesma. Não sabia porquê, talvez não existisse um porquê. Coisas acontecem.
Ela morria de ciúme dele, quando o via com outras garotas. Ficava com saudade quando ele sumia. Mas não assumia. Eram os dois imaturos, e jovens Combinação explosiva. Repeliam-se e atraíam-se, na mesma proporção. Numa mesma e perigosa intensidade. Brigavam, e beijavam-se, com a mesma paixão. Queriam, e não queriam. "Às vezes te odeio por quase um segundo, depois te amo mais..."
Passaram anos assim, todo o tempo do curso, até a formatura. Inclusive na formatura.
Quando ela finalmente encerrou o namoro, ele estava envolvido em um relacionamento sério com outra pessoa.
Mudaram os dois de cidade, casaram-se, tiveram filhos e perderam o contato. Ela nunca esqueceu, e também nunca entendeu. Nunca soube do que teve tanto medo.
E, porque nunca esqueceu, reconheceu, imediatamente. E não estranhou. Achou natural. Um telefonema vindo do nada, já tarde da noite, depois de tantos anos. Ficaram mais de uma hora conversando, e foi como se o tempo não existisse. Não havia abismos naquela conversa. Falaram de tudo, e, principalmente, deles mesmos.
Como o tempo modifica a memória, já não lembravam mais das brigas. Do beijo no outro cara sim, este ele não perdoou. Teve que mencionar, de novo. Mas falou também outras coisas, doces e belas, de como se sentia ao lado dela, de como era bom quando estavam junto. Lembraram histórias e amigos. Deram risada. Contaram da vida, um pouco de cada lado.Um papo bom, e tranquilo. Emocionado, maduro. Combinaram de se ver, talvez. Encontro que nunca chegou a acontecer.
Não soube mais dele, e já se foram um par de anos. Mas nada é por acaso. Tem algo que ele não sabe, nem imagina. Aquele telefonema, tarde da noite, inesperado e único, mudou a vida dela. Foi naquele dia que ela percebeu tudo.Aquela ligação foi como um raio, fulminante, cheio de luz.
Foi naquele clarão que decidiu terminar uma relação de anos, doentia, truncada, e já sem razão. Naquele exato instante. Às vezes, basta uma breve visita ao passado, para alguém se resgatar.Ao recordar-se de quem fora, do que sentira e vivera, ela se reconheceu. Ao ver-se, tão lindamente retratada pelos olhos dele, ela lembrou. De quem ela era. De que era possível, sim, amar, e ser muito amada. Muito,e sempre, nunca menos do que muito, e nunca menos do que sempre.
Pode, finalmente, libertar-se do medo que a continha. E soube, então, o que era.
Era medo de acreditar.
E não existe prisão mais cruel do que o medo de amar.

"Será que você ainda pensa?"
                    FIM

Dani Altmayer

O Amor Bate na Porta

Para entrar em uma casa estranha, você precisa primeiro bater na porta. Receber autorização.
Tem vezes que não vão te deixar, por uma ou outra razão. Ou não vão atender. Porque não tem ninguém em casa. Porque estão ocupados. Estão no banheiro, no chuveiro. A casa está uma bagunça. Porque mal te conhecem. Ou porque não querem visita mesmo. Estão de pijama, na cama, na boa. Sozinhos.
Não interessa o motivo, a verdade é que não é sempre que dá para entrar. Não dá para, simplesmente, chegar. 
É  bom telefonar antes, avisar, checar. Não custa perguntar. E não adianta insistir, se ninguém responder.
Quando a gente conhece uma pessoa, devia ser assim, também. Antes de arrombar o portão, era bom saber porque ele estava tão bem trancado. E ir devagar, cuidado com o cachorro. 
Conversar, ouvir a resposta, conhecer. Avaliar, entender.
Todo mundo tem uma história, uma vida, uma pia cheia de louça. 
Um quarto bagunçado, um coração desarrumado. Um segredo bem guardado. Cada um tem um ritmo, um jeito, um quadrado. Uma verdade.
Nem todo mundo está pronto, com o cabelo penteado, o jantar preparado, a cama perfumada.
Aí tem que saber esperar. Aguardar. A casa por arrumar, o banho por tomar. A porta ser aberta, de livre vontade. Se quiser, se puder. Ou não.
Respeitar o espaço, e não sufocar no abraço. Não ganhar no cansaço. 
Tem flor que morre com excesso de água. O coelho do meu filho morreu por excesso de comida. 
Nem sempre muito é suficiente. Muitas vezes, muito é demais.
Amor rima com educação. E não com presunção. Muito menos com afobação.
Amar é também pedir licença. E ser amado é receber permissão.

Dani Altmayer


sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O Buraco da Gente




Todo mundo tem um buraco por dentro. Uma cratera, um abismo.
Um buraco no estômago, de fome, de alguma coisa que a gente não sabe de quê.
Um buraco no peito, da falta do que a gente não sabe o quê.
E a gente passa a vida tentando encher o tal buraco, sem nem procurar saber.
Com comida demais, com sexo demais. Com vinho ou cigarro, demais. 
Com droga. Viagem. Trabalho. Barulhos, demais. 
Com bolsa, sapato, carro. 
Com coisas, demais.
Com o outro, que, pensamos, tem a forma perfeita para o buraco que temos. Tem que ter.
Aí a gente inventa amor, e junta  buracos. E eles não se encaixam. 
São buracos. Não fecham, só aumentam, atravessam.
Então a gente bebe mais, come mais, fuma mais, compra mais, viaja mais. Inventa, demais.
Liga, as luzes, a TV, o PC.  Fala sem parar.
A gente tem medo do buraco, medo de escutar. Tem medo deste escuro. 
Deste nada, do vácuo.
A gente tem medo de não sentir, e de deixar de ser.
De não ter. E  mesmo de ser. Só um buraco.
Não dá para fugir, de verdade. Das duas, uma.
Ou a gente acredita que vai preencher o vazio, algum dia.
Escapar do buraco negro. 
(E tem como?)
Ou  a gente convive com ele. 
Sendo o que é. Espaço, em branco.
Arrisca, se entrega. 
Começa a entender, e quem sabe, a amar.
O silêncio das estrelas. A fome, eterna. A solidão infinita. 
O barulho do universo. E o som, deste ar.

Dani Altmayer

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Seus Olhos

Google Images
Você me olha, e sorri. É raro ver você sorrir. E é tão doce o teu sorriso, que eu amo.
 Eu beijo sua boca, a sorrir. Me iludo, por instantes eternos.
Quando olho de volta, eu vejo. Os seus olhos claros não mentem. Eles não riem como poderiam rir.
São como água, cristalina. Transparente, e profunda.
Refletem uma aparente calmaria de lago.
Mas é preciso olhar bem dentro, para encontrar. Lá no fundo, o segredo, o monstro.
O apelo, o pedido.
Há nestes olhos claros de água, um ponto. Um poço, um abismo.
Onde a luz não chega. Nem o riso.
Um lugar escuro, onde mora o desejo, e a dor. Onde você está perdido.
Nos seus olhos de homem,  enxergo um menino, há tanto esquecido.
Que desaprendeu de chorar.
(Quem não sabe mais chorar, não consegue rir como poderia, eu acho).
Um menino, prisioneiro de sua confusão. Tão bem escondido.
Nos seus olhos de abismo, enxergo tua solidão.
Leio e releio a sua confissão.
Vejo o homem que esconde o menino. E amo, os dois.
O homem e o menino.
E beijo seus olhos claros, para que eles chorem e sorriam. Como poderiam sorrir, e chorar.
Poderiam.
Se beijo fosse cura. Ou o amar.

Dani Altmayer


terça-feira, 7 de janeiro de 2014

O Dion

O nome dele era Dion. Dion Leno. Estava no documento, eu vi.
Também estava tatuado no antebraço direito dele. Eu sempre me pergunto por que as pessoas tatuam os próprios nomes no corpo. O nome do pai, da mãe, de um filho, vá lá. Da namorada ou namorado, bom, pergunta para a Debora Secco, se é uma boa ideia, ou não. Abstenho-me de dar opinião. Agora, o próprio nome, fico filosofando que deve ser para não se perder de si mesmo. Só pode ser.
Pergunto ao Dion, para matar minha curiosidade. "Você tem medo de esquecer que é você?"
- Não, doutora, que isso... é que eu acho bonito.
Ok, é só isso. Tão simples.
Tem vinte anos, moreno e  magro, um sorriso escrachado. Está de bermudas, chinelo e camiseta de grife.
Pergunto a ele o que faz da vida. Ele me conta que é "rastilheiro".
Escrevo no prontuário, depois vou pesquisar. No Google.
Não acho, a palavra certa é rasteleiro. Significa pedreiro de asfalto, aquele que faz o acabamento manual , com ferramenta, na aplicação do mesmo.
Vivendo e aprendendo.
Hoje fez quase 40 graus em Porto Alegre, na sombra. Um calor dos infernos. Nem tive coragem de ir na academia (climatizada).
Penso no Dion, sob o sol escaldante, sobre o asfalto quente, em alguma rua desta cidade, talvez na estrada. Não sei se trabalha sorrindo, cantando, ou resmunga. Com certeza deve suar um bocado. Desejo que tenha usado bastante filtro solar, e que tenha tomado litros de água.
Devaneio que ele poderia ser jogador de futebol, com este nome. Que poderia se tornar famoso e rico, que este é o jeito mais fácil, por estas bandas de cá. Ou quem sabe, poderia até ser um músico de sucesso, como o seu quase homônimo, das bandas de lá.
Não é. Trabalha na rua, ganhando um salário mínimo, não imagino em quais condições. Literalmente, de sol a sol.
Completamente anônimo, não fosse o nome tatuado no antebraço.
O que talvez não tenha sido, então, uma má ideia, afinal.

Dani Altmayer


domingo, 5 de janeiro de 2014

Trilha(s)

Parece fácil andar pela vida distraído, como quando se tem certeza de que a estrada está bem asfaltada, e o caminho, sinalizado. Quando se acredita que tudo tem um ponto de início e um ponto final, e que basta seguir as instruções, e tudo dará certo.
Só que não é bem assim. Imprevistos acontecem, quando menos se espera. Pode furar um pneu. Vir um carro na contra mão. Aparecer, de repente, uma bifurcação, sem sinalização. Ou uma vaca, no meio do nada. Pode ser necessário fazer o desvio. Agir com rapidez. Frear, bruscamente. Pode até acontecer um acidente. Porque é assim. Imprevisível. A vida não vem com instrução, não dá para marcar bobeira. Não tem lugar para distração.
Uma vez, falei, brincando, que era mais seguro fazer uma trilha em Itacaré do que andar nas calçadas esburacadas de Porto Alegre, onde é muito maior o risco de torcer o pé. E por quê? 
Pela falta de atenção. Apenas isso. Onde a gente se sente seguro, não cuida, nem toma cuidado. Fica acomodado.
Em uma trilha, estamos atentos a cada passo dado, a cada obstáculo a ser superado, a cada ponto de apoio. Um pé na frente do outro, um de cada vez. Cada avanço, uma conquista. Em uma trilha estamos  equipados, alertas. À beira do penhasco, na ponte sobre o abismo, no riacho que atravessa o mato. Ali somos cautelosos, estamos conscientes.
Não se trata de medo, e sim de prudência. Sobrevivência.
Não dá para esquecer, e é para tudo. Em todo lado. Viver é arriscado. Uma aventura.
O mundo não é um lugar pavimentado, todo bem iluminado e designado. Não é um lugar protegido e projetado. 
A vida surpreende, a todo instante. Te dá uma rasteira, te apresenta o buraco, o chão. Nos convida, e,  por vezes mesmo obriga, a traçar novos rumos, a fazer desvios. Criar novos começos, encarar desafios, refazer o final. Por bem, ou por mal. E temos que estar preparados. Presentes.
Desatentos, ela  pode nos quebrar uma perna, ou coisa bem pior. Pode nos partir o coração.
Prevenidos e atentos, sempre poderemos mudar. Encontrar uma fonte, uma cachoeira, uma estrada menos traiçoeira, um outro lugar. De olhos abertos, saberemos andar.
Escolher, a cada momento, o melhor caminho a trilhar.

Cachoeira do Engenho - no meio de uma trilha em Itacaré
Foto de Dani 


Dani Altmayer



quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Ela, que Amava Bolhas

Parou por um momento, para poder respirar. Estava um pouco sem ar.  Foi então que viu.
Na porta, duas meninas, uma de cada lado, brincavam de fazer bolhas de sabão, muitas delas. Centenas de bolhinhas, coloridas pelo sol da tarde, de calor escaldante, na porta que iria atravessar. 
De todas as brincadeiras de sua infância, muitas já esquecidas pelo tempo, esta era a que mais a encantava. Anos mais tarde, ao brincar com seu filho, divertia-se a soprar e observar os tamanhos, formas e cores que tomavam, os vôos, as quedas, os trajetos. Algumas bolhas até se demoravam, outras logo estouravam. Entre enormes, ou delicadas, umas subiam aos céus, outras simplesmente pousavam no asfalto. Nunca duravam muito tempo, apenas o suficiente para refletir. Formavam, explosões que são, pequenos arco íris e delicados prismas naquele vão. 
Poderia ficar horas perdida a observar o vai e vém, de luz e de cor. Engraçado como pode ser tão bonito algo tão singelo. É que as coisas mais bonitas são sempre as mais simples. E também as mais fugazes. 
As bolhas, elas fazem sua coreografia no ar. A sua dança, em silêncio. Sua música é o vento, maestro imprevisível, efêmero. Ali, o vazio está cheio. E o instante, repleto, é tudo o que há.
Água e sabão. 
Suspirou. Não queria demorar, tinha urgência e sede. Passou pela porta como quem atravessa um portal, e sorriu. Algo mágico estava para acontecer, ela sabia. Aquilo só poderia ser um sinal.
Acertou. Assim foi, naquela tarde quente de verão.
A melhor bolha foi a que veio depois. A que não estourou.


Dani Altmayer