quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Engrenagem




Na confusão do tempo,se ontem era agora.
A eternidade de um sentimento se demora.
As pernas, entrelaçadas, se reconhecem, antecipam os braços, adivinham o beijo.
Para depois, perderem-se no abraço.
Em bocas, em pelos, cabelos. Sorrisos e cheiros.
Em gosto, no gozo. Agosto.
No encaixe, perfeito. Exato.
Há tanto esperado.
Meu peito em teu peito derramado.
Exposto.
A ponte sobre o abismo.
O tic tac das horas confundem as batidas, e o tempo recria o tempo.
Como um relógio suíço, onde a hora é sempre a certa.
Talvez inventada.
E o tempo parece que para, num infindável instante.
Enquanto por fim, percorres com os dedos meu rosto.
E me decifras inteira, traçando linhas suaves, e ternas.
Enquanto descobres meu corpo, me perco. De novo.
Neste amor imperfeito, eterno.
Na confusão de um tempo, que foi ontem.
Onde tudo se encaixa. Na precisão de um agora.

Dani Altmayer

domingo, 24 de agosto de 2014

Até o Fim

Das vezes em que caminhamos sem saber o que nos espera no final.
( E quando é que a gente sabe?)
Que a vontade de saber não seja menor do que o medo do precipício.
Pois o medo existe, e é legítimo.
Assim como o é, a oposta vontade.
Amor, verdade.
Que a força da vida seja, enquanto vivos, sempre superior à da morte.
Como o pulsar de um coração, que nos mantém até o último instante.
Porque desistir ao meio, é nunca saber.
É morrer, muito antes.

Dani Altmayer




"Foi uma das coisas mais lindas que vi.
Já caminhou em uma praia onde não consegue ver o fim?
Caminha, e caminha, sem saber quanto falta.  
Dez quilômetos, mais dez. E ainda tem a volta.
Você vai até o final, ou retorna?
Se tivesse desistido, não teria estas bolhas nos pés.
Nem as orelhas cortadas pelo frio.
Não teria visto árvores centenárias, arrancadas do solo pela força do vento.
Nem as falésias,  esculpidas no vai e vem do tempo.
Se tivesse desistido, não teria sentido.
Se tivesse desistido, eu nunca teria sabido.
Daquilo que foi uma das coisas mais lindas que vivi."

A. Fischer

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

A Maria

Todo mundo sabia.
Há anos ele fazia o mesmo trajeto, no final da tarde. Saía a pé do escritório, passava na padaria, comprava o pão quentinho, alguns frios, e, de vez em quando, um sonho. Maria amava sonhos. Não podia comer todo dia, desde que descobriram a diabete. Nada de sonhos, Maria, dissera o doutor Carlos, o médico da família.
- Como viver sem sonhos, doutor?
Então, de vez em quando ele comprava um sonho, de doce de leite. Para fazer a vontade da Maria. E todo dia ele tomava um café pingado com o Manuel. 
Depois seguia pelas duas quadras e meia que separavam a padaria de sua casa, cumprimentando um vizinho aqui, outro ali. Não costumava se atrasar. Sabia que Maria o estava esperando, com chimarrão pronto. Para assistirem à novela das 18hs, Céu dos Anjos. Era a única que prestava, não tinha baixaria. Maria detestava baixaria. 
De vez em quando ele comprava umas flores, do menino da esquina, o Tião. Maria gostava de flores. Todas as mulheres gostam de flores. Mas não todo dia, para não acostumar. E flor é caro, também. Maria não gostava de desperdício. Cuidava bem do dinheiro, do orçamento apertado.
- De novo, José? As outras nem murcharam ainda, olha ali. Quarenta anos e não aprende… 
Reclamava com a boca, mas seus olhos sorriam. Porque ninguém vive bem, sem flor e sem sonho. Muito menos a Maria, que tinha alma de artista. 
Fora cantora de baile, décadas atrás. Antes de se casarem, de ela engravidar do primeiro, do segundo, depois dos gêmeos, que trabalhão. E ainda teve a Maria Clara, a rapa do tacho, como se diz por aí. Hoje mora na França, quem diria. Paris. Para tristeza da Maria, que tem a foto da filha e da torre, na sala, em um porta retrato enorme. Do lado do vaso de flores. Os outros filhos reclamavam, com ciúme. Por que só dela?
- Filho longe é assim, vocês vão ver quando os meninos crescerem- explicava Maria, sufocando a saudade.
Todo mundo sabia. 
Há anos ele fazia o mesmo trajeto. Saía a pé do escritório, passava na padaria, comprava flor do Tião, ou não. Há anos ele demorava o mesmo tempo, via as mesmas pessoas, e chegava em casa no mesmo horário, faltando cinco minutos para as seis da tarde. Para ver a novela, e tomar chimarrão. Com a Maria.
Então, ninguém estranhou hoje, quando, já passado da hora, o viram sentado no banco da praça. 
Segurava, nas mãos trêmulas e murchas, um ramo de flores enrugadas. E uma sacola de papel. Vazia.

Dani Altmayer

Exercício da Oficina de Escrita Criativa-  Escrever um texto de amor.
           

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Ah!





Demorou, mas caiu a ficha.
Não foi nada que ela disse, não. Ou que não disse.
Porque não, ela nunca disse que me amava. Só eu. Eu falava "te amo", ela respondia "aham".
Mas, né, tem gente que tem dificuldade de falar estas coisas, eu mesmo, antes de conhecer a Lúcia naquela fila de banco, acho que nunca tinha me apaixonado de verdade. Pelo menos nunca tinha falado para ninguém.
Não foi isso, até porque amor não se mede em palavras. Qualquer um pode dizer, e diz. Então tudo bem ela falar "aham".
Mas porra, hoje eu vi ela olhando para o cachorrinho dela. O Tchuco.
(Para quem, aliás, ela diz " eu te amo" a toda hora).
E eu vi. A ternura.
Eu vi o olho dela brilhando.
De amor, sabe?


Dani Altmayer


Exercício da Oficina de Escrita Criativa- Módulo Avançado. Os Tipos de amor.
Amor não correspondido.

O doloroso momento da revelação. Quando a gente percebe que está remando sozinho.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Por Onde Andamos?

                                                            Oú êtes tu?
        "Onde esteve?
        Onde estás ?
        Andei sem destino, esta corrente leve e mansa me levou a lugares insólitos.
        Aprisionado à tua imagem.
        Hoje estou aqui no meio do nada.
        Sem força para continuar.
        Sequer uma brisa para me levar
        E onde andas que não vem,
        minha corrente doce, imaginaria, me envolver com tua força e me buscar?
        O inverno levou meu vigor para remar.
        Onde estás? 
        Olho para o alto e não a vejo.
        Não vejo nem um sinal, não sinto.
        Nem um sopro suave em meu rosto a me acariciar.
        Não a vejo.
        Oú êtes tu!"
      
       A. Fischer

Onde ando eu, você pergunta.
Por muito tempo eu fui a brisa, e o vento, e a força dos teus braços, e a vela, e o barco, e as águas nem sempre calmas por onde navegaste. Fui o sol que acariciou teu rosto, a chuva que molhou teu corpo, o porto e o cais. Fui a cachaça que bebeste, e as mulheres que amaste, e o calafrio da febre, e o choro de dor, e o filho que tiveste.
Fui tudo isso, porém não fui nada.
Estava em toda a parte, em cada fresta, em cada vão.
Porém não estava em canto algum. Além.
Onde ando eu agora, se já em lugar nenhum.
Se já não em ti.



Você levanta o rosto, marcado e triste, e busca o céu, a me procurar.
Mas não pode enxergar, tão alto.
Muito tempo passou. E o tempo, entre outras coisas, desbota os olhos.
Pergunta baixinho, quanto o tempo nos roubou. Eu devolvo, em silêncio, quanto ele trouxe?
Há muitos anos, eu salvei você de mim.
Te libertei e deixei à mercê. Da tua doce corrente, da tua imaginária prisão.
Foi cumprir rotas e fins. Capitão do seu destino.
Mas não.


A água não está parada, olha bem. Faz redemoinhos. Faz círculos.
Como a vida, faz voltas.
Onde ando eu?
Escuta, meu bem. Ouve o murmúrio, suave como uma carícia.
É o sussurro de um vento, começando.
Soprando de mansinho uma resposta.
Fecha os olhos para ouvir. A gente ouve melhor de olhos fechados.
Depois abre, com cuidado. E veja.
Não estou acima. Estou aqui.


Dani Altmayer
*Desafio*





















quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Primeiro Você


Se ele virar para trás, é porque ainda tem jeito. Tudo o que merece uma última olhada é porque ainda tem jeito. Eu acho. Vira, por favor, vira e sorri para mim. Ou não sorri, mas vira, pode ser um pouquinho. Pode ser de leve. Uma viradinha, só isso. Um canto de olhar. Um fiapo. Qualquer coisa.
- Vira, vai.
- Ele não vai virar.
Não virou.
Bendita hora que vim de óculos escuros.
- Óculos escuros, no aeroporto, à noite?
Deixa. Todo mundo usa, qualquer um usa.
- O que que tem?
É que eu estou chorando, porra. Que merda. Chorando rios.
Como na porcaria da música que a mãe dele ama.
- Ele não se virou. Nem uma vez.
Um abraço frouxo, meio empurrado. Um sorriso torto.
- Se cuida. Fica bem.
Como assim, fica bem?
"Se cuida", quem?
-Tchau.
Fila do embarque enorme. Mais de 10 minutos. Muito tempo. Uma eternidade.
Não virou.
"Desliga você. Não, você. Você. Um beijo. Outro. Saudade. Já? Ainda. Sempre. Tchau. Ah, lembrei de uma coisa. Fala. Não quero ir. Não quero que você vá. Preciso. Vai. Um beijo. Outro. Te amo. Mais. Te amo mais. Vou morrer de saudade. Idem. Pensa em mim? O tempo todo. Vou te levar na mala. Mais um beijo. Dois. Sonha comigo. Acordado. Boa noite. dorme bem. Esqueci. O quê? Nada. Tudo. Tá tarde. O tempo voa. Quero parar o tempo. Um beijo. Outro. Onde? Tchau. Tchau. Oi. Já? Ainda. Sempre. Nunca. "
Tchau.
Mesmo? Tchau. Mesmo.
- Hein?
- Vamos embora, Marina.
- Como pode, Ana?  Como pode...
Nem uma vez, sequer.
Então é assim, quando acaba?
- É.
Tchau.
Tchau, e deu.
E basta.

Dani Altmayer


domingo, 3 de agosto de 2014

Vale Quanto Pesa?



        Nem tudo o que é barato é ruim. As melhores coisas na vida são de graça, inclusive.
        O sol. (Ao nascer). O mar. O ar.
        Um olhar. Um amor. Um sorriso. O entardecer.
        Apesar de tudo ter um custo. Absolutamente.
        Tudo vai depender do valor que se dá.
            E valor não é preço, aliás. Valor é peso.
           Um quilo de algodão pesa o mesmo que um quilo de ferro.
           Qualquer criança sabe disso.
           Mas…
        Um minuto de alegria não pesa o mesmo que um minuto de dor.
        Uma mão entrelaçada não pesa o mesmo que um punho fechado.
        Um abraço de partida não pesa o mesmo que um de chegada.
        Uma página em branco não pesa o mesmo que uma preenchida.
        ( De histórias).
        Uma memória, ainda que compartida igualmente por dois, não tem o mesmo peso para os dois.
        ( Nem nunca terá).
        Uma ausência não tem o mesmo peso de uma presença.
        ( Tantas vezes pesa tão mais).
         Nem tudo o que é barato é ruim. Mas às vezes, o barato sai mesmo caro.
        ( Nem tudo que reluz é ouro.)
        Sai caro quando a gente esquece de perguntar o custo, ao invés do preço.
        Quando esquece que o valor está no peso.
        E o peso, nas escolhas.
        ( Haja vista os restaurantes a quilo).
        A pergunta não deveria ser "quanto você está disposto a pagar?"
        Mas sim, "qual o peso que você pode carregar?"
        Porque uma lágrima de tristeza pode até ter o exato peso de uma lágrima de felicidade.
        Mas, e isso eu sei bem, ela arde mais. Muito mais.

Dani Altmayer
     

Foto tirada na calçada da rua onde meu pai mora, em Rio Grande.
Ele manda uma foto, em geral bizarra, e me desafia a escrever sobre. ( já é a terceira )
Eu aceito . Porque adoro um desafio. :)