segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Vai, dezembro


E dezembro termina escaldante e concreto, a cidade esvaziada não dá trégua para quem fica, o forno ligado na temperatura máxima, ovo frito no asfalto, nenhum meme dá conta. Não há lugar mais quente do que Porto Alegre no verão.
Fazia anos que não passava a virada longe da praia. Muito tempo, mesmo. Eu, que sou feita de exílio do mar, vou pular as sete ondas em sonho, por motivos diversos e importantes.
Na quietude da casa deserta, sem queixas, sem fogos de artifício, sem artifícios. Com muita coisa para arrumar, dentro e fora.
Termino o ano trabalhando, e agradecida por isso. Eu, e outra tanta gente que tem esta sorte. Hoje foram muitos exames admissionais, a maioria, o que me deixa bem contente. Presente de ano-novo, uma mulher me disse. Todos os pacientes saindo com um sorriso no rosto. Feliz 2020, doutora. Que seja um ano bom. Que seja, para todos.
Não sei de estatísticas oficiais, não quero falar de política, quero só acreditar na amostra particular por um dia, e desejar que, no ano que vem mais pessoas ganhem este presente, a felicidade de uma ocupação digna, com os direitos assegurados e um salário justo, pagamento em dia e férias remuneradas, mais a sorte imensa de um amor tranquilo e algum dinheiro para dar garantia.
Desejo ainda um mundo de outras coisas, saúde, leveza de espírito, respeito, tesão, muita vida, muita arte, muita música, muita celebração, muita poesia.
Que não falte nada daquilo que nos eleva e nos faz esquecer um pouco das mazelas de um ano sufocante, tão sufocante e inóspito quanto o calor desta Porto Alegre cansada.
Aqui ou lá, longe ou perto, que não nos falte o mar- com seus encantos, sua simbologia e seus mistérios- de forma real ou figurada, no 2020 que vai nascer.
E nem trabalho, e nem ar condicionado, amém.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Cadê?

Cadê o gatinho?
Atrás da porta, embaixo da cama, na caminha do cachorro, escalando os livros, dentro da caixa, sob meus pés, ao pé da poltrona, no tapete peludo, aprontando alguma...

 Cadê o gatinho?
A resposta que vem e não me consola é que o tempo de amar é sempre emprestado.
Mas o tempo de amar estas quatro patinhas foi absurdo de tão curto, tão intenso, e tão injusto.

A casa está mais vazia agora, e muito, muito menor.

sábado, 21 de dezembro de 2019

Tua passagem

Este sopro frágil a que chamamos vida.
O amor não se mede em permanências. Nem em tempo.
Toda alegria é também uma dor, por breve que somos, e a tal eternidade é um balsámo- mas só para quem acredita.
Eu te amei à primeira vista, e a cada dia mais. Foram dois breves meses e um infinito de emoções.
Se houver um céu de gatinhos, tenho certeza de que tu estás lá, com tua alegria, tua fome, tua resistência. Tua personalidade forte, e teu ronronar macio. Os olhos de mel e areia.
Falhamos, mas não foi por falta de luta. Menos ainda, por falta de amor e dedicação.
E se existe algum consolo, é que tu sabia disso: eu era completamente apaixonada por ti.


sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Réquiem para dezembro



Olhos que não enxergam, ouvidos que não escutam, bocas que não beijam.
Palavras sem sentido.
No correr de dezembro, nada faz sentido.
E ainda o barulho, as buzinas, os pensamentos.
Todos os arrependimentos e a corrida insana contra o tempo.
A insistência. Um quê de desespero.
Desencontros embrulhados para presente.
O verde e o vermelho, a ilusão da neve fria, o asfalto quente. O desastre da árvore, as luzinhas escassas, a estrela solitária.
O trânsito, a pressa, a desatenção.
Os flamboyants em fogo.
A batida na esquina de casa, o estrondo, o susto. O pulo do cachorro, o descaso do gato.
Os plantões, os boletos, os desenganos. As lembranças e a saudade. Meia dúzia.
Em sacolas.
Inutilidades caras, algum afeto, nenhuma garantia.
Dezembros e abandonos.
Boas intenções e panetones secos, frutas cristalizadas, aquela desgraça.
Os cheiros e os gostos de outros Natais. Quando alguma coisa ainda fazia algum sentido, a salada de maionese era com e sem maçã e o molho tinha nome estrangeiro.
Os ruídos, o tumulto, a multidão. A farofa.
O peru, as nozes, os nós. As passas famigeradas e os brindes inesperados.
O calor exasperante.
A esperança agendada.
Um mar e a areia.
E depois, janeiro.
O respiro.

domingo, 10 de novembro de 2019

As lembranças mais antigas







memórias e fotografias
se confundem
um triciclo e a irmã 
na garupa
as pernas da mãe e do pai
nas mãos o cigarro aceso
o pátio de cimento e grama
um urso chamado Teddy
o cão de nome Tupa
Lili a tartaruga
Juca o canário belga
os patos e coelhos sem nome
seu Nenê plantando mudas
 conversas sem sentido
a escola Criança Feliz
os balanços pneus de borracha
os sonhos da padaria Gaúcha
os macacos da Tamandaré
aquele cheiro
o engasgagato da Ozinha
para mim bife especial
a copa do mundo a cores
na casa do vô e da vó
os primos amigos os tios
o irmão implicante
a boneca toda riscada
o clube as velas piscina
o vô ensinando a nadar
a velha figueira ao longe
os cômoros de areia que hoje
chamariam dunas
as estradas de chão
aos domingos
o futebol no rádio
 o pai dirigindo
 a mãe no violão
as canções do Chico
o escritório mágico
repleto de livros proibidos
e os quatro olhos que
ainda
não sabiam ler

Um domingo de chuva e um tema para a oficina, mexer em álbuns dá nisso, uma viagem à terra estranha da infância, onde o que foi nunca mais será, mas onde as fotos são moldura para as lembranças mais antigas.










domingo, 13 de outubro de 2019

Eu e o Chico



Arrumar armário só é suportável porque existe o Chico. Faz tempo, já.
Porque um dia ele escreveu Apesar de você. 
Entre tantas outras. Tanto sentimento. Todo. Tanta genialidade.  Toda.
Mas Apesar de você é a música de hoje. Para este meu agora.
Aumenta o volume e canta bem alto, deixa a gaveta das meias para outro dia.
Porque faz calor, e é preciso fazer poesia. Ou escutar poesia. Ou ler. Um livro. Ver um filme. 
Fazer amor, afim de não deixar a gente se perder da gente. Resistir, em sambas e versos. Em letras e música.
À espera de um tempo da delicadeza. De colocar tudo de volta no corpo, outra vez.
E de volta ao armário, agora.
Amanhã vai ser outro día
Amanhã vai ser outro día
Amanhã vai ser outro día
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não
A minha gente hoje anda
Falando de lado e olhando pro chão
Viu?
Você que inventou esse Estado
Inventou de inventar
Toda escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar o perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Eu pergunto a você onde vai se esconder
Da enorme euforia?
Como vai proibir
Quando o galo insistir em cantar?
Água nova brotando
E a gente se amando sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros. Juro!
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Esse samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora tenha a fineza
De "desinventar"
Você vai pagar, e é dobrado
Cada lágrima… 

domingo, 6 de outubro de 2019

Exílios




Três poemas e a melancolia acentuada pela economia das palavras
Todos os poemas têm um traço de dor, uma pitada de tristeza, não seriam poemas se o poeta não fosse, em alguma instância, alguém que capta o sofrimento do mundo, qualquer mundo, pequeno ou grande, particular ou não, não fosse o poeta ele mesmo um sofredor, ou apenas alguém que finge a dor como ninguém. Portanto, uma poeta, eu, quanta pretensão, é também uma fingidora. Sou. 
Se no zodíaco houvesse uma representação para a poesia, ela seria de câncer- ou de peixes- por seu jeito de olhar, pelo drama, pela lua. Jamais seria de leão, se fosse seria aquela poesia exibida e cheia de si, toda alegre e vaidosa, que cansa já no segundo verso, de capricórnio também não, ainda que haja beleza na concretude, ai de quem disser o contrário, uma pedra no caminho nunca será uma pedra no caminho de quem sabe usar as palavras e ressignificá-las. Uma pedra vai ser sempre outra coisa nas mãos da poesia. Mas nunca para um capricorniano.
Três poemas tristes.
Leio que a melancolia é um estado mais grave que a tristeza, um vazio que não pode ser preenchido, um abandono de si mesmo. Outro dia, por causa de um conto no livro novo, me perguntaram se eu era melancólica. Não sou, quase nunca, só quando escrevo. Aí sou, então. Quase todo o tempo.
Três poemas.
O saldo do domingo, para a segunda. O tema: exílio, estranhamento, desapego.
Meu jeito de ver as coisas: aceitar a tristeza que se esconde em cada alegria. Se na minha escrita tem dor, mágoa não há.
Um dia já falei que escrever era meu jeito de chorar, de botar para fora. Não deixando que a melancolia tome a forma do meu corpo, e nem que tome conta de mim, ela se transforma nas palavras que eu verto, na sempre complexa tentativa de traduzir alguma coisa- e entender.


Daniela Altmayer




domingo, 29 de setembro de 2019

Gracias a la vida




O café e o pão quentinhos, a manteiga derretida, a manhã lenta, a brisa fresca na ida, o vento a favor na volta, o pedal leve, deslizando na avenida, todas as rodas e todas as formas, o céu muito azul, nenhuma nuvem sobre o rio, nenhuma lágrima sob meus olhos, ao longe os veleiros e suas brancas velas dançando no horizonte do primeiro domingo da nova primavera e esse calorzinho bem vindo, ainda gentil e doce, acalentando a tarde ensolarada, tua voz nos meus ouvidos, a nossa cantiga, e esta poesia: este livro, este sofá, este meu lugar.
Em dias assim, perfeitos, a paz parece até uma coisa simples, a felicidade é totalmente possível, e a palavra que brota de meus lábios, feito prece, é gratidão.

Daniela Altmayer

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Vinte e cinco de setembro







Hoje seria teu aniversário de 76 anos. 
A última vez que comemoramos este dia foi em 2007, e acho que ali tu já sabia que era a última vez. Eu te dei de presente uma camisola que tu não chegou a usar, porque não chegaste no verão.
Eu usei, durante muito tempo. Até gastar. Sabe, ainda uso muitas roupas tuas, teus casacos da burma que adoravas estão bem velhinhos, mas são meus pedacinhos de ti, colo de inverno, roupa de ficar em casa- ano após ano.

No último domingo saí para caminhar e sentei num banco na "pracinha do JP". Lembra, que ele dizia " a minha pracinha"? Estava um dia frio de sol, um menino de seus cinco anos brincava na mesma areia suja, sob o olhar de duas mulheres. Ele vestia uma camiseta do grêmio, é engraçado como tem coisas que funcionam como um vórtice, não faz tanto tempo mas já faz uma eternidade, outro menino, outra mãe, outra avó, o mesmo time do coração dos dois.

Mãe, assim como teu neto, as árvores cresceram. Estão mais altas do que ele. Lembra delas, recém-nascidas? A pracinha tem muita sombra agora. Está mais bonita.
É tudo tão mais bonito quando tem árvore.

Hoje olhei tua foto e me dei conta que tu era só um pouco mais velha do que eu sou hoje, e isso é estranho.
A morte congelou teu rosto, enquanto as árvores e as crianças cresciam, e nós envelhecíamos.
Enquanto a gente segue por aqui, para ti vai ser sempre aquele aniversário de 64 anos.
25-09-2007.
Para sempre primavera.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Crônica urbana



Espremida entre um caminhão e um ônibus, a fumaça escura através do vidro entreaberto, a vontade é de não respirar.
Uma antiga música me vem à lembrança: a rua tem cheiro de gasolina e óleo diesel.
No semáforo um homem jovem, vestido de preto, segura um cartaz de papelão onde está escrito:
" saudade dos meus filhos
me ajuda a voltar para casa"
Ele anda por entre os carros na avenida suja e congestionada, diz que veio de Belém do Pará, fala cantando, é para lá que deseja voltar, para a outra ponta desse não país, fugir da tarde cinza em direção ao sol, ao amor, talvez a fome nem seja menor, não deve ser, só mais suportável- e familiar, como ele veio parar aqui?
Em cada sinal uma história triste, quase sempre. Tão longe e tão perto.
"Tudo errado mas tudo bem."

Daniela A

sábado, 14 de setembro de 2019

congestionamento




o relógio avisa que já demoras
meia hora e o segundo café esfria

pela vidraça embaçada o mundo para
e nada mais se move à tua espera

as luzes da rua se acendem
na chuva que não dá uma trégua

as buzinas atrás da vitrine
calam o piano ao fundo do bar

no carro preto um casal se beija
num abraço que já foi nosso



Daniela Altmayer
oficina de poesia

chuva






chuva
esse trânsito parado aí fora
e o café esfriando
tua demora


Daniela
Oficina de poesia

domingo, 25 de agosto de 2019

Gostando de ser




E depois da longa noite, não era de admirar que, no súbito despertar do dia, o excesso de luz a deixasse temporariamente cega.
Levou um tempo para se ajustar à claridade intensa da manhã. 
Manhã que entreviu ao romper o lacre da janela- que não só vedava o sol, mas também impedia qualquer ar de passar. 
Surpreendeu-se com um vento gelado a arrepiar a espinha e a descobrir que o mundo não tinha terminado, pelo contrário.
Acabara de ser reinaugurado.
As lágrimas de alívio tinham o mesmo frescor do orvalho da madrugada, o sabor inconfundível do sal, do sol, da novíssima liberdade.
Na garganta o grito desfez o nó.
Levou um tempo ainda a se acostumar assim, com os dias descortinados em azul, o riso fácil, frouxo, o caminhar descalço e leve, com o gozo forte, múltiplo, intenso.
Demorou a pegar nas mãos o que chama agora de vida.
Até que cada clarão já não era mais apenas um dia, depois de outro dia. 
Passou então a viver de estreias.
De catar poesia e outras infinitas possibilidades.

Daniela Altmayer
Trilha sonora sugerida: As vitrines do Chico Buarque

domingo, 28 de julho de 2019

Um conto na madrugada



Desabou de whisky e trepar.
Um sono de bruços, pesado, absoluto, um nada.
Ardia em chamas e líquido.
O lençol ondula com os movimentos dele, mas ela já sonhava.
Pode sentir nas coxas a areia áspera, o mar de ondas calmas acariciando os corpos, o formigamento entre as pernas- abertas feito conchas sob o sol.
Os sonhos se confundem com o sexo de antes, dois animais de línguas ávidas, o torpor interrompido por uma mão gelada e úmida, a dor súbita, e depois outra onda, e outra mais forte, que os engole, afogando o grito da madrugada.
Ela se mexe sem despertar, geme, se acomoda, e goza baixinho, de olhos fechados.
Acorda horas depois, ainda tonta, sorrindo de um ardor inconfundível. 
Será?
Olha para o lado.
Ele dorme, serenamente nu.


Daniela Altmayer
(uma tradução)

domingo, 21 de julho de 2019

a palavra amor não faz falta










no prédio ao  lado um garoto acaba de ganhar uma bateria mas 
não importa
nesta sala é tudo música silêncio e poesia

a luz que entra através das frestas faz dançar a poeira do assoalho
o poente tinge de vermelho tua pele e a minha
na boca de café sabores quentes se provocam

buscas com a língua o que só para ti eu guardo
aquele fio delicado que escorre entre os dedos 
o suor imperceptível da minha nuca
a saliva espessa de açúcar e sal

nossos sussurros são gritos na penumbra
e o sorriso despertado é de quem sabe
que a felicidade mora no exato instante 
dessa hora 

vem a noite nos teus braços o sol 
se deita 
e o mundo cala


Daniela Altmayer






sábado, 13 de julho de 2019

Ghazal


na soma dos dias finda o ano
à subtração do nosso amor, desengano

teu sotaque falso
teu beijo gasto de cotidiano

tua voz teu olhar
tua tez teu corpo de piano

tua fuga covarde
os passos lentos de bichano

nas sombras é que o amor finda
engolido por outro ser tirano

e na solidão sou eu quem resta
praia deserta de um verão insano


Daniela Altmayer

exercício para a oficina de poesia
 O Ghazal



sexta-feira, 12 de julho de 2019

Sete, a carta para Isabella de número 8


      De repente, sete.

sete é número de sorte.
um número que pula alto
sete ondinhas sete anjos
sete é um número mágico
sete vidas tem o gato 

sete é um número bonito
sete as cores do arco-íris
sete pétalas da bela rosa
sete dias da semana
sete notas musicais

sete é número especial
não é redondinho, como oito
mas vem antes
é pontudo e forte 
nas sete pontas da estrela

e é assim, bem de repente:
sete voltas ao redor do sol
sete graus de perfeição
sete anos de puro amor


Já começo a pedir para o tempo ir mais devagar, Bella, quero ele se prolongue na doçura da tua infância que hoje completa um ciclo importante, o ciclo dos primeiros sete.
Quero que ele se demore na fantasia desses primeiros anos, em fadas, duendes, bruxinhas, histórias sem pé nem cabeça, mágicas e maravilhosas como só tua imaginação de menina com asas sabe inventar.
Por falar em asas, desejo que os unicórnios continuem reais por muito e muito tempo ainda, e que o mundo real entre (só porque tem que entrar) devagarinho pela tua porta, descalço e pisando leve, na maior gentileza possível, deixando a janela do sonho sempre aberta.
Minha guriazinha inteligente e linda, artista, cientista, cantora e feiticeira de coração gigante, que tu siga dona da tua razão e sensibilidade, e que tu seja sempre, sempre, muito dona de si. 
Te amo, estrelinha. Princesa, pirata, mulher-maravilha. 
To the moon and back. And to the moon and back, again. And again, infinito.
Feliz aniversário!
    ti Dani

PS: See you soon.


domingo, 7 de julho de 2019

Perdão





Perdoa minha falta de tato, minha falta de jeito, meu olhar assustado.
Perdoa meu julgamento apressado, esse meu jeito de ver o teu mundo, distorcido pela ótica do meu.
Desculpa esse lugar de estranheza, esse altar de onde te observo e não te posso alcançar, desculpa as minhas fronteiras, limites, trincheiras.
Perdoa meu medo do estrangeiro de ti, do estrangeiro em mim, do estranho em nós.
Perdoa se me falta a delicadeza de te ouvir na língua que não compreendo, a tua, se nem tento entender teu país.
Desculpa não atender teus apelos, não respeitar teus quereres, perdoa minha soberba, minha vaidade exposta e a escondida, vaidade em pele de cordeiro.
Perdoa as certezas erradas, encrustadas, perdoa a razão que eu gosto de ter.
Desculpa se me falta a fineza de não te inventar, se minhas lentes embaçam tua cor, se meus desejos te moldam, me revelam e nos deformam.
Desculpa minha hipocrisia, minha falta de empatia, a empáfia que não me permite te enxergar.
Perdoa todas as vezes que penso em ser teu vigia, perdoa a dureza que visto no peito, as palavras que profiro sem te escutar.
Desculpa as feridas que sangro, as cascas que arranco, as oportunidades perdidas -de ficar calada para somente te ouvir.
Perdoa essa falta de silêncio e sol.
Desculpa o desequilíbrio, a ausência de abrigo, as brigas sem fim. A falta de abraço, de toque, o cansaço.
Desculpa esse meu egoísmo de te pensar igual e não outro, espelho quebrado, perdoa a indiferença, as doenças que matam. A raiva, a dor, o medo. Perdoa.
Me perdoa toda injustiça desses tempos de condenações antecipadas, as crenças, preconceitos e prejulgamentos- mais rápidos que a luz, me desculpa se sou teu juiz.
Perdoa as bandeiras vermelhas, as amarelas e as verdes, desculpa todas as bandeiras que nos separam,  dividem e não te incluem. Bandeira branca, amor. Te quero paz.
Perdoa a minha cegueira. É que a trave no meu olho é a única que não enxergo, ou não quero enxergar.


Daniela Altmayer

quinta-feira, 6 de junho de 2019

Dor






ainda que venha aos poucos
pressentida e lenta
sua dor é senpre súbita
surda
estridente
como a campainha daquele telefone
frio
interrompendo a madrugada

Daniela Altmayer 

Oficina de poesia
(sobre a noite mais triste até agora)

domingo, 26 de maio de 2019

sexo na piscina

-oficina de poesia-

bar do colégio





a fila era sempre grande e
os folhados acabavam primeiro
as espinhas no rosto e os óculos de garrafa
o garoto preferido a preferir as pernas
sob a minissaia da menina bonita
a melhor amiga e a sirene
engolindo balas de papel crepom
a agonia inútil de ser invisível

as balas e as coisas todas de plástico
os canudos e o pó
os cabelos grisalhos da menina bonita
a melhor amiga e o marido barrigudo
o garoto preferido a vida prevista
e a incrível alegria
de ser invisível

Daniela Altmayer
(oficina de poesia)

Rodízio de pizzas




você calabresa e peperoni
eu, brócolis e milho verde
você cerveja e coca-cola
eu, vinho e água mineral
não fosse a de quatro queijos
o espumante e teus olhos de fome
nosso romance não sairia
vivo dessa mesa


Daniela Altmayer
(oficina de poesia)

domingo, 12 de maio de 2019

Maternidade em linha torta







e eu, tantas vezes cansada, tantas vezes chata, tantas vezes má
eu, tantas vezes irresponsavelmente egoísta,
indescupavelmente mulher

eu, que tantas vezes não tive paciência de sentar no chão
e brincar, tantas vezes séria
irrespondivelmente ocupada,
eu, que mal vi o tempo passar

eu, que tantas vezes fui e sou louca, absurda
eu, que sou essa pessoa confusa que grita
e se descabela e logo perdoa, esquece
e te acolhe nos braços já curtos para
tua enormidade

eu que tantas noites acordei e acordo com teu murmúrio,
com teu choro, tua febre, teu vômito
tua chave no buraco da fechadura

eu, que sou ridícula, que rio na hora errada,
que digo palavrão o tempo todo
que me emociono toda e choro à toa

eu, que falo de coisas sem nexo,
que te ligo para lembrar que existo
e também encher teu saco
para não perder tão cedo tua conexão

eu, que não sei fazer bolo, que não prego um botão,
eu, que só cozinho o que quero,
e quando
que tenho na pipoca minha melhor opção

eu, que sou modelo de nada,
abnegada de nada
exemplo de coisa alguma

em resposta ao poeta, confesso
não o pecado mas a infâmia
de amar tanto e tão profundamente
e ainda assim ser tão descuidada

o que me consola são os teus olhos
tua altura
o teu amor implicante, inequívoco
nosso afeto disfarçado de cotidiano

na perfeição que não existe
nos reconhecemos, os dois

o que me consola em ser tão falha
é saber, diferente do poeta,
que eu não ando só

tenho em mim todas as mães (e as mulheres)
do mundo

Daniela Altmayer

Para todas as que vieram antes, as que vieram junto e as que ainda virão
Para todas que tem outro coração batendo fora do peito e não entendem nada
e se atrapalham também
Que sejam revogadas, desde o princípio, todas as culpas.

sábado, 11 de maio de 2019

O nome do silêncio



cai a tarde em teus braços 
na calma que prenuncia tempestade 

tu esperas um vento 
qualquer gota de chuva

buscas em volta um ruído 
que te embale o sono 
pequena cantiga que diga
a palavra que não pronuncias

o vazio da tua voz
vagalumes ao redor da lua,
buracos de estrelas mortas
há muito

que nome tens, infinito?



Daniela Altmayer

domingo, 5 de maio de 2019

O nevoeiro de domingo




Sento na pedra do Iberê sob o sol do veranico, o rio- lago reflete o azul do dia em pontos prateados, ao longe uma neblina encobre o centro e turva o perfil histórico dos edifícios.
São as brumas de Porto Alegre- acho linda essa palavra-que brotam da água e do calor e ficam suspensas no ar, feito um véu sobre a cidade nua.
Paro ali para abastecer os meus olhos de lágrimas, sou de uma terra líquida onde o doce e o sal se confundem, cresci entre velas e vento, preciso de oceanos para prosseguir. Me contento com o rio, na falta do mar. Lago.
Há tantos corpos que suam. O meu também.
Pedalo de volta devagar, porque domingo não é dia de se andar apressada, e porque está quente, que diabo de outono esse, é maio mas ainda não chegaram as frentes que trazem o frio e a sopa ( já fiz, mas foi por teimosia). Estão atrasadas esse ano.
Nas esquinas das ruas eu paro, escuto, eu olho. Lembro dos trilhos de trem, nas encruzilhadas da minha infância.
Nem tudo consigo ver, e, mesmo quando vejo, não consigo entender muito bem o que vejo e porquê.
Minha cabeça se enche então de nuvens. São as brumas.
As brumas de Porto Alegre, nas esquinas da minha rua.

Passa o dia e vem a chuva, do tipo que faz tremer a menina da poesia, só que rápida, depois dela vem o silêncio sem frio, sem frente, a noite antecipa a chegada e abro um livro, sempre ele. Sempre ela, a Clarice, para me salvar dessa minha melancolia
Com a sua.

Daniela Altmayer

quarta-feira, 1 de maio de 2019

poema raivosamente simples






como são bobos os homens
não todos -não todos, eu sei
mas tantos
com seus brinquedos caros
as armas, as rodas
os troféus, suas bolas
orgulhos, penduricalhos

com suas lutas insensatas
as guerras infinitas
os joguinhos de poder
o futebol de quinta-feira
o seu sexo meia boca
a sedução infalível

na indefectível altivez
eternamente deslumbrados
consigo, com seus iguais
e com seus brinquedos

entre eles, nós

Daniela Altmayer
( oficina de poesia)




domingo, 28 de abril de 2019

Josefina

   

leu a carta na cama
abraçada ao amante
amassou o papel
- que se dane
chamou a criada
ordenou um banho 
quente com ervas 
e flores e mel
- ele está chegando
amanhã


     


sábado, 27 de abril de 2019

Amores continuados



veste-se como quem vai embora
acende um charuto e olha devagar
a menina que dorme insolente
na cama recém desfeita 

as pás do ventilador giram lentas
o sol entra pelas frestas da cortina
o calor envolve a nudez quase pura
ela abre os olhos e um sorriso sonolento
murmura seu nome sem resposta

ele sabe que é última vez mas não diz
não tem pesar em seus passos trêmulos
quando abre a porta da rua nós também
sabemos
que ali se cumpre uma espera

despede-se hoje dos amores terrenos
que viu passar como a água do rio
amores de carne e de lua
impregnados de ausência

ela o aguarda tardia
a única mulher que ele amou
(da cintura para cima)
por toda e para o resto
da vida

Retrato de Florentino Ariza

Daniela Altmayer
(oficina de poesia)






domingo, 21 de abril de 2019

Naufrágio de linho


   

foi o silêncio que vi primeiro
então foram os dedos longos
só depois soube o nome
e que os olhos eram claros

um céu alto de nuvens baixas
um homem que descortina palavras
na voz serena de quem sabe
ouvir sorrisos de sol

só depois descobri
nos teus braços a força
a fúria a paz da tormenta
o cheiro de terra molhada

e agora trago na boca sedenta
a enchente eterna
o gosto secreto
da chuva

Daniela Altmayer
(retrato para a oficina de poesia)








sábado, 20 de abril de 2019

AutoRRetrato



os anos da minha vida
já não cabem nos meus dedos
o que talvez não seja justo
é essa zombaria de deixar intacta
a coisa que vai por dentro

aquela que chamamos
imune e resistente àquilo
arde como ardia antes
quando os anos ainda cabiam
completos nos meus dedos

Daniela Altmayer

(Oficina de poesia)

sábado, 13 de abril de 2019

The Orchard

     
               


                 1
a igreja de pedra na curva do rio
o sino toca a sinfonia do domingo
é verão ainda mas é tarde
uma brisa levanta a saia
da cor de alfazema das flores
as mesmas que adornam o caminho
as flores que Virginia viu

                 2
a ponte também ela pedra
contempla o largo do rio onde
uma família de patos nada em silêncio
flutuam nas águas escuras pétalas e
folhas amarelas prenúncio de outono

                  3
em algum lugar mais adiante nesse mesmo rio
jovens barulhentos tomam vinho
e deslizam com a vara num barco 
na infeliz tradução de punting

                  4
as casas mesmo elas são de pedra
sem cor tem janelas brancas
e floreiras
que se debruçam nas calçadas estreitas

                  5
chego ao portão de ferro onde
bicicletas de cestos coloridos esperam
na confiança silente de sombras ancestrais

                 6
nos jardins da velha casa de chá
há grama alta sob as árvores
macieiras carregadas
cadeiras reclináveis de tecido listrado 
borboletas e vespas zunem ao redor
dos bolos com creme e geleias de frutas vermelhas

                  7
já passa das cinco faz um pouco de frio
no verão tardio de setembro
nesse lugar que parece uma fenda no tempo
quase posso ver Virginia e os outros
com uma manta nos ombros
entre xícaras de chá e licores de maçã

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talvez aqui às margens desse jardim
onde os pássaros cantam baixinho
ela tenha sido feliz algum dia antes 
de pegar aquela pedra e mergulhar
em outro rio

Daniela Altmayer
( exercício da oficina, para Karen e Bella que me  levam a viajar na terra da Vírginia -e da Eileen)


domingo, 7 de abril de 2019

Poema de transporte



chegar é melhor que partir
mas não sempre

dez horas o oceano
duas refeições 
e uma turbulência
nos separam

decolar é melhor que aterrisar
mas não sempre

as rodas rasgam o asfalto
ansiosas se batem 
os cotovelos as bolsas
as bundas 

vinte minutos vem o ônibus
um corredor uma escada que sobe
mais outra que desce
a esteira

malas pretas iguais
giram impacientes
sob olhos impacientes
olhos cansados

nas mãos o peso do alívio
de quem quer acabar logo
de chegar aos poucos

o vidro sujo reflete
alguma gente um cãozinho
poucos abraços 
teu rosto teu sorriso torto
minha cara
a pressa

viajar e voltar
para casa

é melhor
mas nem sempre



Daniela Altmayer
( exercício para oficina de escrita)
















sábado, 30 de março de 2019

dois poemas




O porteiro do cemitério

todos os portões
se fecharam
menos um
o principal
fui demitido

é a crise ele diz
tem dia que não entra
ninguém ou perto disso
sabe como é
esses jovens
eles não querem saber
e os velhos
são eles
que morrem
quase sempre

e é por isso
que no meu túmulo
não haverá lápide



   O caderno

vão para o lixo
um beijo uma lua
duas estrelas
um coração
sem uso

todos esses adesivos
que não são colados
quando ainda há tempo

os mais bonitos
ficam sempre guardados
à espera


Daniela Altmayer








domingo, 24 de março de 2019

A cidade que eu vejo






Hoje estava daqueles dias perfeitos. sol, céu com poucas nuvens, essa luz inclinada, dourada, que o outono traz e derrama sobre a cidade, deixando as fotos e a vida mais bonitas, nenhum vento para ir, para voltar, nenhuma resistência fora a do meu corpo, da bicicleta, dos pensamentos, a cidade acordou cedo, na beira do rio um navio se despedia de Porto Alegre, enquanto a gente daqui amanhecia, correndo, pedalando, patinando, andando, desde que vim morar aqui, já faz quase metade da minha vida que eu sei que o porto-alegrense ama um dia de sol, um parque, um chimarrão, uma corridinha, no começo eu era das bandas do parcão, depois fui farroupilha, feirinha da redenção, hoje sou de lugar algum, um pouco de tudo mas quase nada de moinhos e muito do centro, onde passo a maior parte do meu tempo, entre vendedores de guarda-chuvas e compradores de ouro e cabelo, entre ambulantes e artistas de rua, com suas lojas de gosto duvidoso e edifícios de tirar o fôlego.
Há quase um quarto de século convivo com as delicias e as mazelas de Porto Alegre, comemoro suas conquistas como se fossem minhas, mostro a orla nova para meu pai com orgulho bairrista, me entristeço com o fechamento de livrarias de calçada, com a sujeira das ruas, com o mato que cresce sobre a ciclovia, ciclovia que não tem dez anos, e está encarquilhada, craquelado, enrugada como uma centenária, cada dia mais estreita, mal cuidada, cheia de buracos e sem maquiagem, a ciclovia envelhece mais rápido do que eu, do que essa cidade onde escolhi viver no já distante 1994, cidade onde fiz e faço amigos, amor e amores, essa cidade que está de aniversário, tem tão pouco e tão muito para comemorar.
247 anos de vida.

Daniela Altmayer

segunda-feira, 18 de março de 2019

O golpe do amor (?)





Ele a amava, e nós o amamos por isso, apesar de odiar o que ele fez. Eu o perdoo, porque sei que ele fez o que fez num momento de confusão, mas ainda assim, foi por amor. Eu não duvido disso.
Está sem aspas porque não é a fala exata, mas aproximada, de uma das personagens do seriado a que assisti no final de semana. Uma mãe se referindo ao genro que matou a filha porque ela queria o divórcio e a liberdade.
Maratonei essa série no domingo, coisa que não costumo fazer, porque não gosto de ficar tanto tempo refém da TV, me dói o corpo todo e fico sempre com a impressão de que o tempo entra em suspenso, depois se vai, pufff, para sempre perdido, feito um dia que não aconteceu. Só que, às vezes, viro escrava da trama, do personagem, ou mesmo do tédio de uma tarde de domingo, e acontece, como aconteceu.
A série se chama Dirty John, em português tem o subtítulo desnecessário e entreguista de "o golpe do amor."
É uma trama baseada em fatos reais e é a prova de que a realidade é uma baita de uma ficção.
Não é sobre o assassinato ( feminicídio) que mencionei lá em cima, essa é mais uma história paralela. Tampouco é sobre amor, porque o amor não é nada disso, nada daquilo.
É sobre psicopatia, sim. Mas é sobre mulheres, e é sobre cada uma de nós, em maior ou menor grau. Nossas carências, condicionamentos, vulnerabilidade, sobre essa coisa de confundir tudo, de achar que tem que perdoar sempre, que tem que cuidar sempre. É sobre o véu que ainda cobre nossos olhos e que ainda nos faz culpadas mesmo vítimas, faz com que nos culpem, mesmo sendo vítimas, e isso aparece em muitos momentos na narrativa: na voz dos policiais, na voz do cara chamando a ex de louca ( novidade!), na própria voz, na manipulação sutil e nem tanto. Aparece no relacionamento abusivo disfarçado de gentileza, de cuidado, no controle, na dificuldade de ver as coisas sem o filtro COR-DE-ROSA do romantismo inútil, que só nos ilude e nos faz menores.
É sobre crenças, e é sobre o mal. O mal, vestido de PRÍNCIPE, disfarçado de flor ou café da manhã.
Vale a pena assistir, apesar do nervoso que a gente passa. É um alerta, mas também é uma boa história de suspense policial- e psicológico.
Que seria melhor ainda, se não fosse real.


terça-feira, 5 de março de 2019

Reminiscências



Ainda lembro do cheiro do leite quando fervia, e derramava no fogão. Acontecia muito, naqueles tempos de leite de saquinho, em que era preciso ferver para matar as bactérias, um leite aguado que muito provavelmente era mais saudável do que esse pasteurizado- e adulterado- de hoje, enfim, não era a respeito da qualidade do leite que queria falar, talvez nem do leite derramado em si, sobre o qual não adiantava, e nem adianta, chorar. Se bem que nunca vi ninguém chorando por causa de leite, apenas esbravejando. E limpando. Era muito chato limpar leite derramado, uma sujeira danada, o fogão ainda quente, tinha que tirar as grades, passar o pano, queimava os dedos, mais fácil seria prevenir, sempre é, mas e daí? Não adiantava, não adianta avisar.
Tampouco minha intenção era fazer uma metáfora sobre o inesperado, embora ela caiba aqui e num livro de autoajuda, porque o leite só derramava quando você se distraía, e para isso, bastava um segundo. O segundo de pegar a manteiga na geladeira ou o pó do café no armário. Ou atender o telefone, que, naquele tempo, no tempo do leite de saquinho, era fixo na parede. 
A mãe dizia, "cuida o leite." Você ficava horas, talvez minutos, tudo parecia demorar horas na  infância, olhando aquele líquido branco na leiteira sobre o fogão, líquido do qual você sequer gostava, não gosta até hoje, a televisão da cozinha ligada, o leite sempre derramava aos domingos, na hora do Fantástico, e se você, leitor, leitora, não conhece uma leiteira, tenho certeza de que o Fantástico você conhece. Naquele tempo se chamava o show da vida, não sei se ainda é assim. 
Então, lá estava você, criança, pequena, mas grande o suficiente para cuidar do fogão, esperando horas, talvez minutos, que as borbulhas começassem, era preciso desligar ao primeiro sinal de fervura, hoje ferver o leite poderia bem ser um exercício de atenção plena, uma espécie de mindfullness, por que não? -e você se distraía com algum mágico na TV, o clip do Ney Matogrosso, numa briga com o chato do irmão caçula, ou mesmo com nada, porque distração é dessas, acontece, e pronto.
Um segundo, lambança feita, e aquele cheiro esquisito que me fez escrever essa crônica, sem nenhum significado além da lembrança sem nostalgia de um tempo em que cantávamos o hino na escola, tínhamos aula de moral e cívica, um tempo  em que domingo à noite era só o Fantástico, depois dos Trapalhões e antes da segunda, e o leite vinha em saquinhos, precursor das caixinhas, evolução das garrafas que o leiteiro um dia deixou na porta de nossos avós. De carroça.
Nunca vi ninguém chorando sobre o leite derramado. Mas que dava vontade, dava. Dá.
Ainda que não adiante.

Daniela Altmayer

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

O poema que você escreveu



Teu poema

Calado te ausculto
atento a cada sinal
a cada batida mais
fundo mais sinto

te ouço vindo
na agonia que precede
os espasmos
o silêncio e o grito

pressinto a avalanche
o gozo em labaredas
na borda de cair
me desprendo

mergulho livre no abismo
calor de sangue e atrito
fogo, interminável jorro
lastro de correr rio