terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Como Eu ( Queria)

Filtro de Sonhos- Google Images
De vez em quando eu leio umas coisas que me arrebatam. Coisas que eu gostaria de ter escrito. Quem escreve tem disso. Inveja da escrita alheia.
Queria saber escrever desse jeito, mais visceral.
Queria escrever sem pausas, sem pontos, sem tantas vírgulas.
Gostaria que as minhas frases fossem enormes, dessas que fazem a gente ficar sem fôlego, ao chegar ao final.
Queria ter esta capacidade, de tirar o ar, tirar o chão, de dar um nó.
Porque ler é que nem terapia, ou paixão. Tem que cutucar, incomodar, desacomodar.
Se não inquietar, não funciona. Não serve.
Queria pulsar minha escrita, no ritmo do meu coração atrapalhado, e vulgar.
Queria deixar a emoção transbordar, intacta. Sem máscaras ou enfeites.
Sem medo, como eu (tenho).
Imperfeita e intensa, insana.
Verdadeira e genuína. Como eu (penso).
Dando a cara a tapa, na folha de um papel. Queria escrever em uma folha de papel.
Fazer desenho, num guardanapo usado.
Rascunhado, bagunçado e incongruente. Como eu (estou).
Com a letra feia, trêmula, chorosa. Furiosa ou apaixonada.
Queria que meu grito e minha dor e meu êxtase e meu amor não tivessem filtro, nem temor, nem vergonha, nem pudor.
Que a palavra estivesse nua, e também eu.
Que ela não fosse covarde, como eu (sou)
Queria escrever sem explicar, sem controlar, sem fazer sentido. Porque eu não faço o menor sentido.
Nada faz o menor sentido. Muito menos eu.

Dani Altmayer

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

O Mar


Sonhei que estava no meio do mar, e o mar era verde, como teus olhos. Transparente, dava para enxergar o fundo, mas eu não tinha pé. Estava muito longe da praia, que mal avistava, à distância. Estava sozinha, à deriva. Eu sabia nadar, mas já muito cansada, só me importava em boiar. As ondas, esparsas, e previsíveis, embalavam meu corpo como num berço antigo, de vime e balanço, e eu me deixava levar. Para lá e para cá, ao sabor da corrente. Gentilmente.
Eu olhava para cima, sem teto, um azul sem limites. Duas ou três nuvens brancas, como que desenhadas, perfeitas, quebravam a monotonia do céu de verão. O sol pincelava faíscas no verde das águas, fazia brilhar os peixinhos prateados. E uma ou outra estrela, do mar. Em sonhos existem estrelas, no mar.
Eu sabia que estava vulnerável e perdida, mas, estranhamente, não sentia medo. Não sentia frio, nem fome. Nem vontade de me salvar. Não sentia nada, além do prazer quase sensual, do toque suave e quente da luz no meu corpo, que flutuava como um bote salva vidas sobre as águas verdes. Transparentes, e fundas, como teus olhos. Docemente amortecida, e entregue ao sabor do momento, eu morreria naquele instante, feliz.
Quando acordei, lembrei de um pesadelo recorrente que eu tinha quando criança. Era inverno, eu estava nas dunas, sozinha. Elas eram enormes naquele tempo, e eu era perseguida por um monstro, que era, na verdade, o Lobo Mau. "Quem tem medo do Lobo Mau?" Eu tinha. Muito medo.
Então eu fugia,  subia e descia, corria para o mar, tropeçando na areia, ele quase me alcançava, e depois desistia. O Lobo Mau não sabia nadar, eu sabia, mas o mar era escuro, e assustador, e frio, cheio de ondas traiçoeiras, e eu sempre despertava aos gritos. Pouco antes de me afogar.

Dani Altmayer

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

O Filho do Açougueiro

Tem coisas que acontecem quando a gente é criança, que a gente nunca esquece.
Não lembro que idade eu tinha, uns sete ou oito anos. Estudava em uma pequena escola particular, na minha pequena cidade natal. Era um colégio tradicional. É, porque ele ainda existe. As árvores que cercam hoje a escola, fomos nós quem plantamos, há pelo menos uns trinta anos. Mais.
Ali fui alfabetizada, muito bem, aliás, e ali passei os primeiros anos de minha infância. Recordo como se fosse hoje, das merendas oferecidas. Gelatina com leite condensado. Pãezinhos redondos, recheados de queijo ou patê. Eram os meus favoritos. Lembro do ambiente familiar, acolhedor. O pátio de areia, os balanços feitos de pneus, o piano da aula de música, coisas assim. Era uma escola feliz, mas era também, com certeza, uma bolha social.
Voltando ao início do texto, explico. Tem coisas que marcam a vida da gente, bem cedo. Não lembro direito os detalhes, mas nunca esqueci um episódio que aconteceu neste colégio. Alguém, uma criança, ou várias, por algum motivo, tinha amarrado seu casaco do uniforme na cintura. E, por algum motivo, isto era algo proibido na escola. Não se podia amarrar o casaco na cintura. De jeito nenhum. Fizeram uma reunião com os alunos. A direção considerava este gesto coisa de "classe social inferior". Dito bem assim,  e com o complemento: "Isso é coisa de filho de açougueiro".  Eu nunca esqueci estas palavras, proferidas pela própria diretora, a quem chamávamos de tia. Fiquei indignada, tão despropositadas me soaram na época, como soam agora. Lembro de ter pensado, "por quê? Qual o problema de ser filho do açougueiro? Qual a diferença, o que tem de errado?" E pensei no açougue onde a mãe costumava comprar, e no dono, cujo nome me foge, o pai deve saber, que nos atendia com a maior gentileza deste mundo. Luis Carlos, lembrei. Pensei no filho dele, também.
Isso foi na década de setenta. Faz tempo, muito tempo. Eu nunca esqueci. Mesmo depois de todo este tempo, ainda fico perplexa ao recordar este absurdo.
Desolada e triste, como fico ao ler os jornais, ao assistir na TV, as notícias recentes. Em pleno ano de 2014, cenas de racismo e violência explícita contra as assim chamadas "minorias".
Por que tanto medo do que é diferente, de quem não combina com a cor, ou o sexo, ou a religião da gente?
Onde foi que esquecemos, que somos pó e ao pó voltaremos? Todos, sem exceção. Sem diferença.
O rico, o pobre, o negro, o branco, o índio, o mulato, o gay e o hetero. O homem, a mulher e a criança. O filho do açougueiro, e a própria diretora.
Como bem disse Bukowski: "Todos nós vamos morrer, que circo! Só isso deveria fazer com que amássemos uns aos outros. Mas não faz."
Se não fosse por mais nada, que fosse apenas por isso. Mas, tanto faz. Ainda não faz.
Acredito, preciso acreditar, que hoje, nas escolas, não se ensina mais preconceito, e sim, o contrário. Respeito. Quero muito acreditar que respeito é algo que possa ser ensinado. A todas as crianças e a todos os jovens. Todos os dias. Insistentemente.
Até o dia em que não precise mais ser ensinado. Finalmente.

Dani Altmayer





segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Enfim

Meus sentimentos a todos os antecipados.
A todos os que escolhem a morte em vida, meus pêsames adiantados.
Seu consolo é saber que, depois que a vida findar de verdade, serão lacrados em caixões de ouro.
Talvez de prata, folheados.
Forrados de couro, ou veludo. Dourado.
Dani Altmayer

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Detalhes

Foto de Dani Altmayer- Cassino
Ele estava há horas fazendo aquilo. Ela sempre ficava impressionada com a capacidade de concentração dele. Com a habilidade, e principalmente, com a paciência infinita.
O dia estava ventoso, e um pouco frio. Não muito bom para praia, mas resolveram aproveitar para testar a pipa que haviam comprado no outro dia. O filho pequeno estava animadíssimo com a ideia. Ninguém tinha muita prática na arte de empinar pipas, e bastaram alguns minutos para o fio ficar todo enrolado, cheio de nós.
Diante da dificuldade, o menino desistiu do brinquedo, e se pôs a fazer castelos de areia. Haviam esquecido os baldes e pás, e ela o ensinou a fazer aqueles castelos de pingos, que se faz com a areia muito molhada,  escorrendo por entre os dedos, e  que resultam em um estilo meio gótico de arquitetura.
Ela sentou perto, na cadeira de praia, de casaquinho, para tomar seu chimarrão. Perdeu-se a olhar o mar escuro e revolto. O céu estava cheio de nuvens, carregado, mas não parecia que ia chover.
Ele, um pouco afastado do mar e dos dois, sentara no chão, para desenrolar os fios. Não era tarefa fácil, estava tudo muito emaranhado. Meticuloso, era o trabalho perfeito para ele, ela pensou. Gostava de consertar coisas, sempre gostara. Também gostava de ser deixado em paz, quando estava assim compenetrado. Precisava de silêncio para trabalhar, era o que dizia. O filho era igual.
Ela não, não tinha a menor paciência para estas coisas manuais, que exigiam atenção e concentração. Lembrava de quando suas correntes se emaranhavam, na caixinha de jóias. Nunca conseguia desfazer os nós. Sempre acabava pedindo ajuda, ou desistindo. Mesma coisa com os novelos de lã. Achava mais fácil cortar o nó, fazer um remendo, e seguir adiante. Não que levasse muito jeito para o tricô.
Engraçado é que uma pessoa sem paciência precisaria ter o dobro de cuidado. E ela não tinha. Nunca tivera.
Usava, e depois guardava ou jogava as coisas, de qualquer jeito, sem se preocupar com o jeito certo. Resultado, nós, sempre. Ou pontas lascadas, partes perdidas, peças faltando. tampas que não fechavam. Quebra cabeças que não se encaixavam.
De alguma forma, aplicava a lei do menor esforço em quase tudo o que fazia. Seu lema era: "ou é fácil, ou não é para ser. " Desculpas de gente preguiçosa, ou descuidada, ele dizia. Ela até concordava.
Nunca fora boa também para decifrar enigmas, percorrer labirintos, menos ainda para colar com super bonder. Ela sempre acabava colando os dedos. Em algum momento da sua vida, perdera, se é que algum dia tivera, a capacidade de acreditar em consertos e desafios. Terminava deixando para lá. Ao contrário dele.  Ele nunca desistia.
Pensar nisso a deixou um pouco triste. Lembrou de todas aquelas gavetas com etiquetas, nas pastas meticulosamente arrumadas, na cafeteira que já fora consertada pelo menos três vezes. Pensou no empenho que ele fazia para manter tudo em ordem, e funcionando, apesar dela. Por ela. Ela, que se tivesse opção, já teria comprado uma cafeteira nova, há tempos.
Olhou para ele, sentado naquela areia gelada, os olhos e a boca apertados, alheio a tudo. Totalmente absorto pelo esforço de desembaraçar o emaranhado de fios, e já quase conseguindo. A pipa, barata, comprada de um vendedor ambulante, na qual ninguém mais estava interessado. Nem ele.
Olhou para o filho, que brincava quieto, ensimesmado em seu papel de pequeno construtor. Fizera um castelo enorme, e cheio de torres, portinhas e janelas, vãos e pontes, que agora enfeitava com conchas minúsculas e exatas. Uma pequena obra prima, tinha que admitir. Perfeccionista, como o pai.
Olhou para o céu, para as nuvens pesadas, que o sol insistia em atravessar, dando um efeito estranho e surreal. Parecia que Deus queria passar por ali, ela pensou, que nem passa como raios de luz no vitrô de uma igreja. Devido a este filtro, a praia tinha um tom outonal, meio amarelado, de fim de dia. No meio de uma tarde de verão.
Distraiu-se por um momento, perdida em divagações. Teve vontade de rezar, e  fechou os olhos. Quando voltou a olhar, a pipa já estava novamente no ar. Os dois sorriam, orgulhosos. Pai e filho.
Ela suspirou. Gostaria de poder voar, de ser aquela pipa vermelha e amarela, ao sabor da corrente, do vento. Escapar, suavemente, na direção das nuvens. Planar, lá no alto, junto à luz, sobre o mar e as areias douradas. Subir, subir, sumir.
O filho chamou. Riu do seu devaneio, largou o chimarrão e juntou-se a eles.
Já vivia mais no ar do que na terra, fazia tempo. Não tinha como fugir. Ela ia acabar se enroscando toda, caindo, e podia bem se machucar. Era assim que ela era.
E ele, mais uma vez, e com toda sua paciência, acabaria por consertar. Iria desfazer, nó por nó. Fio por fio. Dor por dor. Como sempre fizera. Por ela, e apesar dela. Porque era assim que ele era. Era ele. Ele, quem nunca desistia.
Foto de Dani Altmayer- Cassino

DaniAltmayer

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Atrasados

De todas as coisas que o tempo rouba da gente, acho que o que mais dói é justamente o tempo, roubado.
O tempo roubado das coisas que são importantes.
A correria, que rouba o momento, de um beijo roubado.
O cronômetro interno que não perdoa, sempre ligado.
Nem bem bem chegamos e já é hora de partir.
Não dá tempo de se deixar ficar, deitar na rede, adormecer. Amanhecer.
Somos como o coelho da Alice, estamos sempre atrasados. Temos pressa.
Olhamos o relógio, já é tarde. Sempre é tarde, às vezes nem é. É até cedo, demais. Só que nunca está bem na hora.
A hora exata não sabemos de quê.
Hora de dormir, acordar, trabalhar, comer, malhar, pedalar, correr, descansar, comprar, arrumar, fazer amor, desfazer. 
Hora de pegar o ônibus, o avião, o filho. Hora de viajar, de voltar, de postar, de cumprir. Hora da reunião, da missa, da meditação. Hora do happy hour. Hora feliz, com as horas contadas.
Temos hora para tudo, e tempo para nada. 
E é deste tempo que sinto falta. Do tempo da semente, que não é o tempo da gente. 
Nosso tempo é inventado, não sabe esperar. Máquina de fazer loucos.
De tudo que a vida me tirou, só queria que ela me devolvesse o tempo que me roubou. 
Um tempo sem hora marcada, sem relógio, sem prazo. 
Um tempo feito férias, feito criança, feito paz. Feito só de presente.
Um tempo devagar, para divagar, para sonhar. Para parar, olhar e escutar.
Tempo para criar, e viver.
Um tempo para pensar, para sentir, apreciar, refletir. 
Para deixar acontecer, deixar rolar, deixar-se estar.
Tempo para sorrir, ser feliz. Mesmo um tempo para chorar, e sofrer.
Um tempo para fluir. Um tempo rio, um tempo mar. O tempo de amar.
Um tempo ar, um tempo terra. Um tempo do fogo, que arde e queima a seu tempo, lentamente. 
Um tempo diferente, que não se mede no ponteiro, que não tem compromisso importante, Não tem pressa de chegar, nem ânsia para acabar.
Que dura, exatamente o instante que tiver que durar. Eternamente.
Hoje, eu só queria saber como recuperar. Ter de volta, o tempo perdido, roubado. Tempo que eu mesma perdi ou roubei.
Este tempo da gente, que também é semente, e precisa de tempo. Para germinar. Florescer. Desfrutar. Amadurecer.
E depois, como tudo tem seu tempo, morrer.

Dani Altmayer




quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Sem Rede


Todo encontro é também despedida, e partimos sem nem acabar de chegar.
Sinto saudade já durante o abraço, e depois, quando meus braços pendem soltos ao lado do corpo, sem ter onde pegar. Sinto dor enquanto sinto prazer, e depois, quando não sinto nada.
Estar com você é um malabarismo. Corda bamba, trapézio.
É como estar em dois lugares ao mesmo tempo.
Uma perna em cada lado. Um lado tão certo, o outro, errado. Nenhum lado, certo, ou errado.
Um meio, perfeito. O ponto exato onde nossos corpos se fundem. Onde o resto desaparece, em segundos. Eternos. Ali é onde sou mais feliz. No silêncio de nossos gemidos.
Depois vem a névoa,  quando a gente fala. As palavras me confundem, não quero ouvir, nem dizer. Só o olhar não esconde, não mente.
Estar  com você  é estar sempre de partida. Repartida, em metades. Metade que está, metade que é. Metade que dá, metade que rouba. Metade que ama, e outra que não.
Você diz que não ama. Eu sou a metade que sim.
Você precisa que eu vá. Eu preciso saber.
Ainda meio inebriada do gozo, eu vou. Saio trocando os passos, cambaleante. Embriagada de você.
É difícil partir, querendo ficar.
Mais um instante. Um desejo.
Eu te esperei por uma vida inteira. E antes.
Queria duvidar do teu não, confiar no teu gosto. Acreditar no teu beijo, sem fim.
Mas, sabe? Acho que não dou conta, sozinha. Metade é pouco, quando é tudo.
É como andar na corda bamba, mas sem a vara.
E eu não sei andar assim. Não me equilibro bem em nada que não tenha amor, no meio.
Porque amor, é isso. Amor é isso.
Centro de gravidade.



Dani Altmayer