sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Sabe como é?

1971

Ela estava ao telefone, impaciente. Falava com a mãe naquele tom que os filhos falam com as mães, quase sempre. Entre irritação e tédio: Sim, mãe, não mãe. Que saco, mãe. Não sei, mãe. Tá mãe.
Sentada a meu lado na lotação, ela encerra a conversa e se vira para mim, como pedindo desculpas, revirando os olhos: Mães! Sabe como é...
Eu sei.
Ela é que não sabe que eu perdi a minha há uma semana. Que, desde então, tenho olhado para todas as mulheres que ainda falam com suas mães com um misto de inveja e preocupação. Que eu as vejo juntas na calçada, a mãe e a filha, essa tantas vezes com pressa, sem saber a falta que irá sentir quando não mais precisar retardar o seu passo para acompanhar o dela: quando estiver caminhando sozinha.
Ela não sabe que eu choro na ida e na volta do trabalho, choro agarrada ao travesseiro, que eu tenho uma blusa que ainda conserva o cheiro dela e a visto à noite, todo dia. E que todo dia a vida continua, e não espera minha dor passar, parece que essa dor nunca vai.
Ela não sabe que eu fico tentando entender a morte, essa coisa tão definitiva que leva com ela todas as segundas chances. Todas as oportunidades perdidas, os eu te amo não ditos, os sinto muito esquecidos. As brigas bobas e sem importância. Eu fico tentando entender todas as importâncias. Ela não sabe que a morte muda tudo de lugar.
Ela me conta que a mãe toma conta do seu menino e ela se mete na vida deles demais, não é que ela seja ingrata ou coisa parecida. E eu lembro da longa noite que passei acordada, esperando meu filho de sete anos despertar, e lembro dele vindo pelo corredor, os olhos cheios de sono, ainda alheio à notícia que o esperava na sala: sua melhor amiga havia partido, virado estrela na madrugada. Nenhum abraço foi mais doloroso que aquele.
Ela não vê minhas lágrimas por trás dos meus óculos escuros, e eu tenho vontade de dizer a ela, e a tantas outras que encontro pelas ruas, que elas não sabem a sorte que ainda tem. Elas não sabem, ainda. Quero gritar para não serem tão descuidadas, que é tudo tão provisório, mas ninguém sabe nada, muito menos eu: a gente sempre acha que mãe é eterna.

Ela segue falando, muda de assunto. O tempo mudou. Parece que vai chover, e a próxima parada é a minha.

 Daniela Altmayer
Crônica episódica sobre luto, que está no livro da Santa Sede, safra 2017
 ( Dez anos de saudade, hoje)

2 comentários:

  1. Lindo texto, Dani.
    Sempre que leio, me vejo. Como beta, como filha, como mãe... Emociona demais.��

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  2. Comovente. Uma linda homenagem à mãe. Sentir saudades é uma forma de gratidão.❤️🌹

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