domingo, 29 de março de 2015

Hoje caiu uma lágrima



Tem dias que são saudade.
Domingo cinza é dia assim.
Aí a gente senta sozinha na beira do rio que é lago, e olha para o horizonte, e se pergunta, onde ele está ?
Não tem contraste, a água se confunde com o ar, está tudo tão igual que fica fácil chorar.
Mas na saudade também existe uma coisa boa.
A gente fica triste porque já foi feliz um dia.
E todo mundo sabe da tristeza que se esconde em cada doce alegria.

Dani Altmayer

quinta-feira, 26 de março de 2015

Fruto maduro


É por essa e outras que eu vou morrer acreditando no amor. Nem queiram me chamar de boba ou me convencer que ele não existe. 
Eu sei que existe.
Não tem idade.
Pode demorar uma vida.
Mas nunca falha.
Essa história  eu conheci no consultório. Ela veio consultar por uma dorzinha no cotovelo.
Conversa vai, conversa vem...



Ela tem 60 anos de idade.
Ele tem sete a menos.
Estão namorando há 6 meses.
Ela é a caçula de cinco irmãos. Teve uma educação muito repressora, e foi a única que não casou. Teve um outro namorado aos vinte anos, mas não deu certo, porque ele não era "sério". Foi descartado, só queria aquilo que todos querem.
O pai não aprovou.
A mãe, menos ainda. Sempre falou que os homens não prestavam, nenhum.
Ela acreditou na mãe. A gente sempre acredita nas mães, por um tempo.
Às vezes, por tempo demais.
Ela é professora, adora o que faz. Diz que sua grande paixão é alfabetizar. Trabalha há anos em uma escola estadual.
Viveu e cuidou dos pais até eles morrerem. Primeiro o pai, dois anos depois a mãe. Ficou sozinha na casa enorme, e teve depressão. A vida tinha ficado muito vazia, de repente.
O trabalho a salvou, começou a fazer academia. Demorou, mas se recuperou.
Há seis meses ela conheceu ele, num churrasco na casa da irmã.
Ela achou ele interessante.
Ele achou ela bonita.
Ela era virgem. Ele teve muito cuidado e muito carinho. Os dois trocaram carícias por um mês, até que aconteceu
Ele foi muito paciente com ela.
Estão juntos há seis meses, e ele traz flores toda semana. Sempre um buquê diferente.
Viajaram juntos para a praia em fevereiro.
Ela gosta dos filhos dele. Ele gosta do gato dela.
Eles dois gostam de ir ao cinema.
Ele é um homem bom.
O sexo é bom. É ótimo, até. Ela gosta muito. Nunca pensou que fosse gostar tanto.
Está amando.
Apaixonada, pela primeira vez na vida. Aos sessenta.
Ela tem 60 anos, e seus olhos, o brilho e o sorriso dos quinze.
No final, nem eu nem ela lembramos mais do motivo da consulta.



Dani Altmayer

A Fada

       


Caro Francesco,
o tempo dentro de um convento parece obedecer a um ritmo diferente, como o amigo bem pode calcular.
Faz apenas três semanas que estou aqui e soa como uma eternidade. O dia começa muito cedo, antes mesmo do alvorecer. Às quatro da manhã acordo com o toque de despertar, um monge percorre os corredores estreitos tocando uma sineta, chamando a todos para o culto matinal.
Eu, como hóspede, estaria dispensado, mas não quero parecer demasiado preguiçoso ou indiferente, então compareço à capela para as orações todos os dias, o que me entedia deveras.
Após o culto, tomamos o desjejum no refeitório, e este consiste de mingau de aveia e ovos, acompanhado de um chá de ervas que tem um sabor pavoroso. As refeições são todas frugais, claro, com exceção dos domingos,  quando é permitido comer carne, em geral de coelho. Na maioria dos dias, servem pães, batatas e cenouras cozidas, e a infusão amarga de ervas digestivas.
O vinho, meu caro, só é permitido na missa, ou na cela do abade, mas nem por isso sinto falta. Você não iria acreditar, mas tenho caminhado muito, logo cedo, pela floresta. O verão nessa região da Alemanha é um engodo, bem diferente dos dias escaldantes em Roma. Aqui a temperatura é amena e faz frio à noite. O clima está fazendo muito bem para os meus pulmões, e a tosse quase cessou. Foi justamente em uma dessas caminhadas que aconteceu algo muito interessante, uma descoberta que me facilitou em demasia o trabalho que estou realizando.
É por isso que te escrevo agora, meu amigo, porque estou para lhe enviar uma preciosidade. O amigo bem sabe do meu faro para encontrar relíquias. A biblioteca desse pequeno mosteiro lhe encantaria, estou seguro, como a mim encantou desde o primeiro instante. Apesar de úmida e mal cuidada, e de muitos pergaminhos e manuscritos estarem em péssimo estado de conservação, o acervo é grandioso e raro, um deleite para almas eruditas como as nossas.
O irmão que cuida da biblioteca é um homem velho que está quase cego, mas vigia seu território como fosse um cão feroz. E, apesar de minhas credenciais, a princípio não me foi dada autorização para fazer cópias ou retirar qualquer um dos livros ali constantes.
Acontece que acabei por encontrar o exemplar de um manuscrito em latim, dividido em seis livros. A obra é um poema original, que imagino ser único, e estou fascinado com esse livro, meu caro, um verdadeiro achado.
Mas, como ia lhe dizendo, cópias não são permitidas, e o roubo me pareceu sempre uma perfídia além do que meu caráter humanista permitiria, mesmo que alguns possam pensar o contrário. Portanto, aqui entra o que preciso lhe contar, em segredo, para explicar o que acontece no momento, e porque você deve, em breve, e apesar disso, receber um volumoso e valioso envelope.
Em uma dessas belas manhã de sol, caminhando pela floresta, perdido que estava em meus pensamentos a respeito do dito manuscrito, ouvi um riso de criança.  Surpreso, pois o mosteiro está distante a milhas da aldeia mais próxima, me escondi atrás de um pinheiro para observar. Foi então que a vi, uma menina, de cerca de doze anos. Uma fada loira,  de cabelos quase brancos e olhos escuros como as noites de lua nova,  se banhava no riacho ao amanhecer. Parecia vir de outro mundo, o som daquela risada cristalina e pura, e não pude deixar de ficar fascinado com a beleza da cena. No entanto, aqueles olhos me incomodavam, era como se já os tivesse visto antes. Depois de alguns instantes, a criatura saiu das águas e vestiu-se com uma túnica branca, tinha os pés descalços e os cabelos presos numa trança grossa. Sem perceber a minha presença, correu em direção a uma pequena clareira, que até então eu não tinha notado. Segui a jovem, não pude evitar uma certa curiosidade. Seria ela um duende, ou uma ninfa? Qual não foi meu espanto quando, ao chegar à clareira, encontrei um pequeno chalé de pedra, em cuja porta estava uma senhora muito gorda, vestida de preto, e parecendo zangada com a criança.
Nenhuma das duas percebeu minha presença. Os olhos da mulher mais velha eram azuis e frios como o céu de outono. Tinha os cabelos loiros envoltos em um trança ao redor da cabeça, e era bonita também. Havia uma vaca pastando mais adiante, e algumas galinhas, além de um cachorro manco. Não sei quanto tempo se passou, fiquei como que hipnotizado pela domesticidade da cena, até ouvir o barulho de cascos se aproximando. Por instinto, percebi que deveria me esconder novamente.
- Papai!
O anjo gritou, para o velho abade que apeava do cavalo, e abria os braços para ela. Ele trazia nas mãos um cesto de frutas e pães, que a mulher se apressou em recolher.
Foi quando descobri de onde conhecia aqueles olhos negros e profundos.
E foi quando consegui, como você já deve ter deduzido, a permissão velada para fazer a cópia do poema encontrado.
Espero que não comente, e não passe adiante essa informação em Roma. Conto com sua total discrição. Apesar de eu duvidar que possa interessar a alguém a vida sexual de um monge em um mosteiro perdido, incrustado na Floresta Negra, pretendo cumprir a palavra dada ao abade. Meu silêncio em troca da cópia dessa preciosidade, uma verdadeira jóia, como você verá.
Tenho trabalhado incessantemente nisso, e de maneira discreta, sem que o padre cego perceba o que estou copiando. Apenas o abade compartilha nosso segredo. Enquanto a claridade e meus olhos cansados permitem, passo os dias na biblioteca,  e creio que em mais dois ou três meses poderei lhe enviar a remessa completa dos livros. Não a levarei pessoalmente, pois minha viagem ainda não terá terminado.
Como bem sabe o amigo, a minha busca nunca tem fim.
Sem mais, subscrevo-me, atenciosamente,
 Poggio

Dani Altmayer

Tema da aula de escrita criativa, a respeito de Poggio Bracciolini, um humanista italiano que caçava  "tesouros" perdidos.
Afe!

sábado, 21 de março de 2015

Não é nada


Quando saio lá fora, e a noite está estrelada e escura como daquela vez, eu choro. 
Quando vejo a lua distante e fria sorrindo triste para mim, eu choro.
Choro quando pego o livro que levo uma eternidade para ler, e o aperto junto ao peito num abraço, encostando a tua letra bem desenhada no meu seio esquerdo.
Acho que leio apenas uma ou duas páginas por vez, só para me demorar, de propósito, e ter você na minha cabeceira para sempre.
"Olhe, o medo e a alegria não se excluem, como todos sabem. "
Quando ouço uma música e lembro de um dia perfeito, eu choro.
É bobo, eu sei mas não consigo evitar.
Não é que eu esteja triste, não o tempo todo, nem quase todos os dias. 
Mas quase todos os dias eu choro um instante que transborda.  
Não é que a vida não continue, ela continua, e cada vez mais rápida,  e cada vez mais intensa .
Acho que é por isso mesmo, porque a vida não parou para eu poder descer um pouco, que eu choro. Para descansar.
Porque não pude entender, nem parar, nem descer.
Menos ainda, escolher.
Lua, estrela, poema, poeta. O que me fode é esse romantismo idiota.
Às vezes nem é nada, o que me faz chorar.
Quase nunca, ou quase sempre, é nada.  
Talvez nem mesmo tenha sido, nunca, nada.
Então, é só uma saudade absurda do nada.
É só você, e eu, o que menos importa.
Ah, o amor não correspondido... É uma merda.
Parece tão injusto, e todo dia eu penso, é tão injusto.  Mas todo dia um eco me devolve:
- Esquece, o mundo não é justo.
E é por isso que eu choro, quase todos os dias.
Porque o mundo não é justo.
Como esquecer?


Dani Altmayer


quarta-feira, 18 de março de 2015

Dois de março de um ano qualquer




Teria sido apenas mais um dia, não tivesse sido aquele o dia de sua morte.
Dois de março de um ano qualquer.
Ela desistiu, escolheu não.
Ele não mais insistiu.
Sem um adeus, entrou no carro, e partiu.
Naquele dia, depois, ela soube que morreu, e do quê.
Ela morreu do medo que tinha de viver.
Mas viveu. Mais trinta longos anos, ainda.
Ela viveu sem medo de morrer, então.
Porque só se morre uma vez, assim.
Porque só se vive, assim, uma vez.
Dani Altmayer

segunda-feira, 9 de março de 2015

Azuis ( Blues)



Já faz algum tempo que ela acorda assim, com um gosto ruim na boca, com o estômago embrulhado, não adianta nem escovar os dentes até quase a gengiva sangrar. Só passa mesmo quando mistura um pouco de vodka no suco de laranja. Come metade de uma torrada com mel, e toma uma xícara de café sem açúcar. Tem que espantar o sonho. Toda noite tem o mesmo sonho ruim, todo dia o mesmo gosto ruim na boca, e o enjoo.
Não sabe quando começou a beber pela manhã, deve fazer uns dois meses, bem pouquinho, um dedinho de vodka num copo grande de suco de laranja. Nada de exageros. Só o suficiente para amortecer um pouco a náusea, e ajudar a encarar o dia corrido na escola.
Escova os dentes de novo, e se olha no espelho oval do banheiro. Pensa em passar um batom, mas desiste. A boca está grande demais para o rosto encovado. Coloca os brincos pequenos. O cabelo precisa de um corte, decide que vai cortar bem curtinho, mais fácil de manter.
Vestida com uma camiseta branca e um jeans surrado, olha para o armário bagunçado, e despreza os vestidos que antes adorava usar. Precisa fazer uma arrumação, tem que se desfazer de tanta coisa mais. Contempla as prateleiras e cabides meio vazios no canto esquerdo, onde uma gravata azul e algumas camisetas de time de futebol, também azuis, ainda resistem, aguardando a coragem que parece não ter pressa em chegar.
Tem tempo. Liga o computador, e lê o horóscopo. “Tome cuidado com os imprevistos.” Abre uma ou duas páginas que curte, em busca de uma resposta, uma imagem, uma frase redentora que seja. Sem alento, verifica a caixa de emails, que está cheia de propagandas e vírus, e um aviso do contador. Reunião às 14 horas. Suspira.
Vai no quarto ao lado, e olha as fotos do mural em cima da escrivaninha. A viagem à Disney, tão sonhada e curtida. Senta na cama de solteiro, e passa a mão na colcha, também azul, com o símbolo do time do coração. Pega um troféu, na coleção, e sorri sem querer. Coloca de volta na prateleira. Ajeita o ursinho em cima do travesseiro, e fica satisfeita. Está tudo no mesmo lugar, como sempre tem que ficar.
Na cozinha, passa uma água na louça e pega a garrafa de suco de laranja. Mais um copinho, não vai fazer mal. Aumenta a dose de vodka. Na porta da geladeira, o imã de papel desbeiçado com a foto 3×4 que ganhou no dia das mães, tantos anos atrás.
Na sala escura e silenciosa, afunda na poltrona e tira as sapatilhas. O pé direito ainda dói um pouco.
Fica olhando para o telefone por alguns minutos, até decidir.
Liga para a escola, e avisa que não vai poder trabalhar hoje. Não está se sentindo bem. De novo, é a segunda vez só nessa semana, mas tudo bem. A diretora entende.
Todo mundo entende. Menos ela.

Dani Altmayer

quarta-feira, 4 de março de 2015

Onde você quer ficar?



"O inferno são os outros." ( Sartre)
Será?
Não acho. O inferno, quando, e se existe, existe dentro de mim.
O outro não tem culpa se entrego a ele a chave para minha tristeza ou felicidade. Ele não tem culpa de não corresponder às minhas expectativas, fantasiosas ou nem tanto.
Ele só não estava afim de dar bom dia, e daí? Vou fechar a cara, e passar o resto do dia de mau humor?
Como é difícil se relacionar, com os outros, consigo mesmo. Acho que é a coisa mais complicada do mundo. Por isso tanta gente desiste, e se isola. Levanta muros que ninguém consegue escalar. Ou ao contrário, passa a vida vulnerável, esperando, chorando, se lamuriando, porque fulano isso, sicrano aquilo, a chuva veio e estragou o piquenique. A culpa é da chuva, ou da previsão do tempo, que dizia “tarde ensolarada e quente”? Ah, dos dois. Minha é que não é.
Um culpado, por favor. Como é bom achar alguém ou algo que alivie a nossa dor, que nos tire o peso da própria escolha. Que tire o foco de dentro, para fora, de preferência para longe, bem longe. Culpa-se a mãe, o pai, o cara da previsão do tempo. E você, que olhou para o céu, e viu a nuvem carregada que se aproximava, e ainda assim, insistiu? Você não é responsável, porque prefere acreditar contra todas as evidências. Você, que não sabe dizer um não, que tem medo de sair da zona de conforto, que é ingênuo sem ser, você, onde fica?
Já me aconteceu muita merda nessa vida, e eu já joguei a culpa em muita gente. Só que, de uns tempos para cá, eu parei. Percebi que a única culpada ( no bom, e no mau sentido da palavra), sou eu mesma. E agora carrego o peso e a leveza comigo, da minha total responsabilidade por erros passados, presentes, futuros. Todos meus.
Quem me atrapalhou, afinal, fui eu.
É mais fácil se escorar em alguém. Mas, e quando esse alguém desmorona, e falta, e te decepciona, onde você fica? Cai junto, reclama, o penitencia, esbraveja. Ou levanta, sacode a poeira, sorri amarelo e agradece o apoio recebido, mesmo que mal construído.
Por que não, então, tocar a vida, e construir seu próprio abrigo? Seguro e secreto, no único lugar onde você vai sempre poder estar.
Você sabe onde fica esse lugar?
Nenhuma pessoa veio ao mundo para ser aquilo que o outro espera dela, o tempo todo.É até falta de respeito isso. Por mais que se esforce, e tem gente que se esforça ( eu me incluindo), para não desagradar nunca, para fazer tudo certo, andar no trilho certo, não se consegue sempre. Quase nunca se consegue. A decepção virá, um dia. Porque não existe trilho algum. Existem trilhas. Caminhos, cheios de atalhos, e desvios, buracos e armadilhas. Também não existem rotas, nem bússolas. Existem momentos. Instantes, passagens.
E mais, existem as pessoas, incertas e imperfeitas e sujeitas a humores diversos.Tão humanas, e maravilhosas, e tão reais e passageiras quanto a gente.
Não existe um único alguém que vá se moldar, do jeito que se imagina que tenha que ser.E nem tem que haver, ainda bem que não há.
Existe essa viagem e ela é, em síntese, solitária. Com alguns bons encontros, outros tantos desencontros. Com alguns bons guarda chuvas, outros tantos campos bem abertos, totalmente descobertos.
Existe a vida, essa louca imprevisível, que chove sem avisar em sonhos quadriculados e bolos recém assados, desmanchando os planos perfeitos do piquenique perfeito de um verão (quase) perfeito.
Chuva ou sol, não importa.
Os dois.
O inferno é meu. O paraíso é meu.
Os dois.
Ainda citando Sartre, o que importa mesmo é o que eu faço daquilo que fazem comigo. Ou melhor, o que eu faço daquilo que eu mesma faço, comigo.
Para dizer a verdade, é libertador. Isso, de ter a chave de casa.

Dani Altmayer

segunda-feira, 2 de março de 2015

Afinal de contas


Amanhã começa a empregada nova. Tomara que dê certo, dessa vez. Peço a Deus que sim, e ele há de me ouvir, afinal de contas, não nasci para limpar chão de cozinha. E Ele sabe disso. Afinal de contas, vou à igreja todo domingo, com meu marido e meus filhos. Somos uma família do jeito que Ele gosta.
Sim,tenho curso superior,falei da primeira vez. Engenharia, esqueceu? Não trabalho porque não preciso mesmo. O Joaquim paga as contas, e quase não reclama. Só de vez em quando implica com a fatura do cartão de crédito. Nem me importo, peço desculpas,faço um agradinho, e pronto. Resolvido. Eu sei do que ele gosta, tenho meus segredos, foi assim que convenci a me pagar a lipo e o silicone. O Fábio adorou.
Mas, voltando à empregada, não é porque eu não trabalho que vou ficar lavando banheiro. Nada disso. Pago para não me incomodar. A ultima foi um desastre, e olha que eu trato bem. Aí parece que é pior, elas tomam liberdade. Ela até era uma mulata bem bonita. Não é pela cor, afinal de contas. Não sou preconceituosa, meu filho tem um amiguinho negro, adotado, um amor ele. Para mim todo mundo é igual, nem desvio na rua como a Patrícia faz. Só quando eles usam boné, de boné tenho medo. Bom, pode ser um tipo de preconceito, mas não é pela cor. Deus sabe que não. O amigo do meu filho, mesmo. Quem adotou foi um casal de gays. Por mim tudo bem, desde que não fiquem se agarrando na minha frente. Na minha igreja falam que é doença, e tem cura. O Joaquim acha um horror. Mas eu, não. Se Deus não gosta, bom, eles que se entendam com Ele. É o que eu acho. Eu faço a minha parte, na minha família tá tudo certo. Leio muito, sabe, e nas revistas a gente vê de tudo. Abre a cabeça, um pouco. Mas outro dia o Júnior estava brincando de boneca com a irmã, o Joaquim ficou louco. Disse que era minha culpa, por causa das companhias, e tal, falei para ele que nunca iria deixar meu filho ir na casa desse casal homoafetivo. É assim que se fala. Homoafetivo. Na escola, tudo bem. Na pracinha. Em casa, não. Eu sei, o Joaquim é bem rigoroso nesses assuntos. Respeito, afinal de contas é meu marido.
Nas últimas férias, em Cancun, tinha duas moças que andavam de mãos dadas. Joaquim quase enlouqueceu. Tínhamos levado a empregada, a mulata. Que corpo, nossa. Tive que pedir para ela não colocar biquini, acredita? Meu marido é muito puritano. Eu entendo ele, tem coisa que não pega bem. Demiti depois,ela era muito abusada.
Doutor, nem sei porque comecei a falar da empregada, isso não é assunto para terapia.
Não, nunca mais vi o Fábio. Ele não vai mais na igreja também. Melhor assim.
Sabe, eu queria mesmo era falar dos remédios. Parei de tomar todos, estava com a boca muito seca, e me deixavam com mau hálito. Mas preciso de um para dormir. Que dê para tomar com álcool.
Sim, a igreja permite beber. Vinho. Ah, amanhã tem aquele jantar de caridade, em defesa da família, vai até aquele deputado pastor. Eu que estou organizando. Isso tem me tirado o sono. Isso e o Joaquim, que só trabalha, trabalha, chega em casa super tarde. Nem me toca mais, de uns tempos para cá. E o senhor sabe, né, estou com quarenta anos. No auge. Já até conversei com o pastor sobre isso, a gente fala de tudo sim, ele gosta de saber dos detalhes. Não, do Fábio não. Nem faz ideia.
Eu ando muito nervosa, por tudo isso. E mais a empregada começando amanhã. É muita coisa junta. Mas essa, afinal de contas, é uma moça que limpava a igreja, branca, casada e com cinco filhos. Acho que agora vai dar certo. Deus queira.
Preciso de algo forte, doutor. Que não me deixe com a boca seca, Deus me livre.
Já? Passa tão rápido, vinte minutos…Até mês que vem, então. Vou pegar as crianças na escola, depois preciso ver se meu vestido ficou pronto. Mandei ajustar, emagreci muito depois que comecei a academia. Estou ótima,graças a Deus.
Adoro conversar com o senhor, fico bem mais tranquila. Afinal de contas, não é fácil para mim.
Só Deus sabe.
Dani Altmayer