segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

O poema que você escreveu



Teu poema

Calado te ausculto
atento a cada sinal
a cada batida mais
fundo mais sinto

te ouço vindo
na agonia que precede
os espasmos
o silêncio e o grito

pressinto a avalanche
o gozo em labaredas
na borda de cair
me desprendo

mergulho livre no abismo
calor de sangue e atrito
fogo, interminável jorro
lastro de correr rio 

domingo, 10 de fevereiro de 2019

Masculinidade tóxica




Nossos meninos não estão seguros. 
A masculinidade tóxica é uma doença a ser prevenida, antes de mais nada. 
Desde os primeiros dias, no embalo do colo, no tom de voz carinhoso e macio, no acolher de qualquer choro, seja por um joelho ralado ou um coração partido, nos limites claros e precisos, no respeito ao corpo -próprio, e alheio, na brincadeira que não compete, não humilha, só diverte, diverge, na participação, na divisão justa, na rotina, no lavar uma louça, arrumar um armário, segurar uma mão, no dizer eu te amo, não ensinando vergonhas, nem orgulhos, na não violência, no exemplo do bem, na firmeza do afeto, no pertencimento ao mundo, não como superior, não mais forte, um igual com características próprias, nem homem, nem mulher, apenas um alguém, nenhum papel pré-moldado, nenhuma agressão a ser aceita, revidada ou deferida, ninguém nasce um macho escroto que não se conforma com fim de namoro, que se acha dono do corpo do outro e da outra, que ataca e agride por coisa nenhuma, que quebra o nariz de um menino, que desfacela, desmancha, fratura o rosto de outro, que chuta, arrebenta, bate, covarde e insistentemente num garoto caído, que acaba com uma festa, um sonho, uma família em minutos, segundos, ninguém nasce assim, não, ninguém, mas se aprende a ser isso ou coisa pior, e hoje eu não quero falar que as meninas estão em risco, sabemos que estão- e muito, pelo mesmo motivo torpe e vil. 
Hoje eu quero falar como mãe de menino, para outras mães ( e pais) de menino, para esses pequenos que ainda não foram envenenados, que ainda podem tomar pequenas doses de antídoto diárias, que ainda podem aprender que a força está na delicadeza, na sensibilidade, no respeito, não no murro, na faca, na arma, no músculo, para que elas, as mães - e eles, os pais- não precisem, daqui a alguns anos, chorar ao lado de uma cama de hospital, acalmar pesadelos, acompanhar numa delegacia ou, ainda pior, ver seus filhos serem mortos pela droga da masculinidade tóxica que alguns ainda insistem em negar que exista.
Combater, sim, mas antes de tudo, prevenir. Prevenir antes do que remediar, sempre. É essa a parte que nos cabe, e não me cabe calar.
Porque sim, porque ela fere, ela mata, e ela dói. 
Está doendo muito.

domingo, 3 de fevereiro de 2019

Vestido azul



Acordei de um sonho, era madrugada ainda e pensei que o sonho daria uma boa crônica. Para não deixar passar, como tantas vezes acontece, peguei o celular, anotei, dormi de novo.
Agora, abro o bloco de notas e duas palavras me olham, confusas e enigmáticas: vestido azul. 
Tenho a vaga lembrança de que sonhei com meu aniversário de dois anos, aniversário do qual me recordo não por uma memória prodigiosa ou algo do tipo, mas porque existem fotos, e existiu um fato. 
Eu caí no bolo, na hora do parabéns a você. 
Talvez venha daí minha fama de estabanada, coisa que fui- e foram alimentando ao longo dos anos, fama de forma alguma injusta, apesar de que hoje, do alto da minha maturidade, tendo a culpar os adultos que não seguraram a pequena eu de vestidinho azul.
Sonhei com o aniversário, com a minha mãe, tenho sonhado muito com ela nos últimos tempos, e acordei no meio da madrugada com uma ideia genial de crônica que envolvia, de forma misteriosa, o vestido azul, duas palavras que foram devidamente anotadas, e que agora não fazem sentido algum enquanto abro a tela do computador e tento escrever. Deveria ter acrescentado mais detalhes, como não o fiz, me deixo levar.
Um ano antes da mãe morrer, ela e o pai reuniram a vida de cada um dos filhos em um livro-álbum, espécie de retrospectiva fotográfica que vai desde o nascimento até o (já) longíquo ano de 2006. Nele estão todas as datas importantes, nascimentos, casamento, festas, batizados, natais, formatura, e tantos outros momentos também importantes, viagens, acampamentos, amizades, brincadeiras no jardim, banhos de chuva e de mangueira, a piscina de plástico, o cachorro chamado Cyborg, o outro de nome Chopp. 
Pego o livro para encontrar o aniversário fatídico, vejo agora que não tem nenhum adulto na mesa do bolo, só crianças, desculpo então os adultos. O bolo era branco, em forma de cisne, ainda lembro das irmãs doceiras que faziam os bolos temáticos, pequenas obras de arte, e os deliciosos docinhos de banana açucarados, enrolados em papel crepom, que se desmanchavam na boca. 
Em uma das fotos estou olhando minhas mãos lambuzadas de merengue, e o vestido azul celeste manchado, minha mãe nunca me vestiu de rosa, cor que detestava, desculpa aí, ministra, os poucos cabelos loiros presos em duas maria-chiquinhas, a cara de espanto, os convidados sorrindo. Tenho a impressão de reviver aquele instante, hoje.
Escrevo agora, as palavras percorrem a tela, continuo não sabendo porque achei que poderia interessar meu vestido azul e uma festa de aniversário no século passado, tampouco a queda no bolo, que pode ter sido engraçada, só isso, ou talvez tenha determinado meu futuro, quem saberá, o mais provável é que nada faça mesmo muito sentido nessa crônica- e na vida, a não ser contar a beleza de se ter um registro feito pelos olhos amorosos daqueles que nos botaram no mundo. Daqueles que seguraram nossas mãos, amparando os primeiros passos, e que, se não impediram os tombos e as lambanças, sempre estiveram ali para socorrer, para limpar, para ajudar a levantar. 
Os sonhos quase sempre se evaporam ao amanhecer.
Mas algumas coisas conseguimos reter no bloco de notas da memória- ou no álbum da vida: um vestido azul, algumas saudades, a certeza do afeto, o imenso privilégio de uma infância bem cuidada.

Daniela Altmayer