segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Crônica de fim de ano





Chegando a Floripa de ônibus, os outdoors se alternam na beira da rodovia. Cartazes anunciam sexo, shows de fim de ano- descubro com alguma surpresa que o Belo não é mais loiro e não está mais preso- anúncios de sapatos, restaurantes de fruto do mar, outro anúncio de uma casa de sexo com nome estranho, e a periferia, com seus casebres de cimento à vista, as roupas penduradas no varal, a periferia pobre, como são quase todas as periferias, um pouco caótica, como é quase tudo nesse país. Faz calor e os homens estão sem camisa, exibindo sem pudor as panças de cerveja, as crianças não brincam na calçada porque não há calçada, as mulheres conversam na soleira da porta, é quase noite, e é tudo um pouco feio, um pouco desorganizado, um tanto sujo, empoeirado, você já está exausta, e então vem o mar e o tempo entra em suspenso.
Vem a ponte, você avista o barco com as velas brancas, desfraldando a promessa de luz, do verão lento com cheiro de bronzeador de coco, e a cidade se abre toda com aquela beleza azul, a cidade brilha ofuscando seus olhos cansados: seja muito bem vinda à ilha da magia.
Penso então que Florianópolis é um microcosmos do Brasil, esse misto de esperança e caos, água cristalina e praias cheias, lixo na areia e lá na capital, tudo parado, tudo se movendo, num esforço lento por um pouco de sol, de gozo, de sal.

Hoje eu e a Bella pulamos sete ondinhas, antecipando a virada e fazendo juntas um pedido para cada onda pulada: 1-amor, 2- saúde, 3- paz, 4- bons amigos, 5-dinheiro, 6- viagens.E sete, pirulitos. (Why not?)

Claro que não dá para ter tudo, o tempo todo. Até porque também nós somos um pouco essa praia paradisíaca, um pouco aquela periferia. Uma bagunça bonita, mas nem sempre. Não temos tudo, não.

Mas que tenhamos muito, ou ao menos, o suficiente. Um bastante de cada. Para enfrentarmos 2019 com a resiliência necessária para as adversidades (que já sabemos) inevitáveis, e desejando que elas sejam breves, provisórias, que a poesia vença o cansaço e a dor na maioria dos dias deste ano difícil que se avizinha.

Que, como no jogo de amarelinha que eu e Bella tanto pulamos nessas férias, tenhamos equilíbrio para pegar a pedra, força para seguir jogando e um céu, ou algo equivalente: quer seja um abraço, um sorriso, um afeto para descansar.
Pode até ser um pirulito, também. De morango.

Feliz ano novo a todos! Que seja doce e transparente, como esse olhar.

Daniela Altmayer

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

"Nolite te bastardes carborundorum"




Apenas um dia qualquer no calendário dessa maluquice que chamamos vida, dia primeiro de janeiro está logo ali, num piscar de luzinhas de Natal, ao epocar das rolhas e dos fogos de artifício, embebido em espumantes, abraços, em laços, alguns desfeitos, outros apertados ou recém descobertos, coberto de uva passa e nozes, alguns nós, fios de ovos e fios de esperança- para alguns, para outros não, o ano se acaba barulhento, como acabam todos os anos, acaba quente, como acabam todos os anos, sujeito a chuvas e trovoadas, acaba rápido um ano longo que pode nunca acabar, onde já não sabemos se a folha dos dias avança ou volta algumas décadas, algumas casas, no jogo de tabuleiro onde somos todas essas peças de plástico, carne e osso, movidas pelos dados que eles jogam lá em cima, eles que manipulam, que blefam, que roubam, todos roubam no jogo dos dados, na roleta, a russa, de arma engatilhada, onde qualquer esquina pode ser a sua, eles mentem faz tempo, a gente finge que nem, e toca uma música, escreve uma coisa, vê um filme, faz amor para distrair da feiúra, da sujeira das ruas, dos buracos no asfalto, nas almas, nas livrarias, queremos que janeiro comece com posse, sem posse, sem pose, promessas, dietas, direitos, mar limpo, mar quente, beijo na boca, mão na mão, mão naquilo, amor de qualquer jeito, não, de qualquer jeito não, amor bom, bons amigos, trabalho, algum dinheiro para dar garantia, uma rede, uma varanda, cinco mil livros, arco-íris, um sonho, muitos, muitas manhãs de domingo, e a certeza de que uma hora a sorte vira, o vento muda, uma roda gira, e que a gente ganha, mesmo tonta, torta, mesmo doída, mesmo distraída, alguém tropeça na alegria, resiste na poesia, existe, apesar de tudo e apesar deles, dos canalhas, o amanhã sempre vem, sempre será outro dia, e os bastardos não conseguem nos derrubar, não irão nos derrotar, somos muitas, somos fortes, nosso segundo nome é utopia e temos uma história para contar.

Daniela Altmayer
Para todas as mulheres incríveis que estiveram de mãos dadas comigo durante esse ano.

domingo, 16 de dezembro de 2018

Mãe fantasma


outra noite você me visitou
lá pelas três horas da madrugada
chovia, uma porta se fechou com força
foi quando vi seu rosto junto ao meu

sorrindo da minha cara de susto
segurou minha mão com delicadeza
sussurrou baixinho no meu ouvido
não é sonho de sonhar acordada

de mãos dadas ficamos por um tempo
quis te dizer tantas coisas mas não
disse nada, nem você perguntou 

há muito tempo que você não vinha
tanto que quase esqueci do seu cheiro
inconfundível de jasmim em flor


Daniela Altmayer
Exercício para a oficina de poesia- Soneto (decassílabo)

sábado, 15 de dezembro de 2018

"Só olhar para ti"





E quando não formos mais que lembrança, ainda restarão teus olhos nos meus e aquele gesto, tuas mãos fazendo moldura para caber toda a existência em uma tarde de sol.

Daniela Altmayer

domingo, 9 de dezembro de 2018

histórias de consultório




Homem, 62 anos.
- Tenho essa dor na barriga, uma pontada, e meu intestino funciona mal.
- Tem que ver um procto, fazer col...
Me interrompe:
- Já fui duas vezes na dra X.(proctologista)
- Ela não te pediu uma colonoscopia? Depois de uma certa idade...
- Pediu. Eu que não fiz, nem vou fazer. Deve ser gases. Eu só quero saber uma coisa da senhora: não pode ser câncer isso, né? 
Deixa eu consultar as cartas, já te digo

**************************************************************************************************
Minhas pacientes me deixam confusa.
Outro dia, conversando com uma delas (60 anos), explicando algo que acontece depois de uma certa idade, e sempre me incluo, usando frases com o pronome nós. Nós mulheres, nós depois da tal certa idade, nós que somos mãe, nós que trabalhamos, etc.
Aí ela me interrompe e pergunta quantos anos eu tenho. Arredondo para 50, porque né, facilita.
Ela me olha com atenção e um pouco de pena, e diz:
- Ah, é que tu aparenta porque é clarinha.Tenho dez anos mais que tu, mas sou morena. Uma vantagem.
Corta para a paciente de hoje. Oitenta anos de vida. Me chama de tu, depois de senhora, pode me chamar de tu, claro, tu poderia ser minha neta, quantos anos a senh...tu tem? Não arredondo porque, né. Não foi bom da outra vez. Tenho 49. Faz cara de chocada:
- QUARENTA E NOVE???? Mas olha só, a senh... tu pode mentir que tem a metade disso, fácil fácil. Parece uma guriazinha.
Moral da história: não tem.
Cada um ache o que quiser

Daniela Altmayer

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Vista para lugar nenhum ( ou apenas outro poema sem nome)



a porta trancada por fora
uma janela grudada
no muro
o vidro imundo 
opaco

a poeira dos dias
o cinza das manhãs
a fresta de luz na soleira
em outros vãos
nalgum outro lugar
deve haver sol

o sofá de dois lugares
as migalhas na mesa
os pratos sujos na pia
a pilha de coisas 
as contas as desfeitas
a cama desarrumada
estreita

o som agudo da tevê
um cachorro ao longe
tua voz dizendo nadas
e aquela maldita porta 
trancada


Daniela Altmayer
( exercício para a oficina de poesia, "coisificar" um sentimento- não dizer)


domingo, 18 de novembro de 2018

fotografia





o sol rompe as nuvens
inclinando a luz
ao longe um cachorro late
há sempre um cão a latir
uma ponta de agonia

o vento balança os galhos

-há sempre um vento a soprar
nos novembros da feliz cidade-

em verdes salpicados de prata
as folhas dançam à mercê
desse vento sem melodia

e o calor morno da tarde
e o sol tardio e pálido
e a pálida esperança a vã

rompem a janela da sala
invadem inclinados intrusos
o final de mais outro dia

Daniela Altmayer

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

poema sem nome




nunca fotografei teu rosto
na estante da sala
não há porta-retratos
nem elefantes
ou filhos em comum
apenas os livros
alguns não todos
com suas páginas marcadas
dedicatórias cifradas
os livros os silêncios
o sofá
uma ou outra memória
-não a rosa que morreu
nem um cravo na lapela-
mas livros somente eles
são cúmplices
e poderiam denunciar
tua presença tua ausência
na minha.

história.

Daniela Altmayer






quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Fim de tarde





fechado no quarto azul
um menino brinca sozinho
no décimo andar do prédio
monta um forte-apache
índios e soldados lutam

na calçada de casa
não longe dali
outro menino atrás de uma bola
tomba numa bala perdida
de droga de bandido da polícia
o céu tingido de sangue

o menino no quarto azul
empunha a arma imaginária
os malvados índios caem

o tiro pode mais que a flecha
e os soldados sempre vencem
as invencíveis batalhas

Daniela Altmayer
( exercício para oficina de poesia- poema escuro)





terça-feira, 6 de novembro de 2018

Quatro elementos




explicar com
palavras-terra
traduzir em
palavras-fogo
converter em
palavras-ar

segurar na peneira da poesia
toda água que derramo em ti

Daniela Altmayer 

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Dois poemas



certa vez o amor
me esperou
no dia
na hora
na data exata
me esperou com flores
terno gravata
perfume
dias
horas
meses talvez

as flores murcharam
o perfume mudou
o terno encolheu
soltaram o nó
a gravata caiu

maltrapilho e confuso
o amor foi embora
eu nunca cheguei
não fui avisada
a tempo outra vez





a mulher na tela
chora em preto e branco
uma taça de vinho
devolve o sangue
os olhos nublados
a fumaça de charuto
o piano de algum bar
a mulher toca
a música tema
de uma outra história
paralela


Daniela Altmayer
( exercício da oficina de poesia- recurso da enumeração)









quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Para não definhar


não aceita as colheres de ódio
não come a raiva não a engula
não alimenta teu corpo de ira
os copos as panelas
os pratos estão muito cheios
deixa esvaziar dá um tempo
toma bastante água jejua
escolhe frutas vermelhas
amores e sucos verdes
te nutre de amigos
ao leite e chocolate
amargo
lê um livro forte lê dois viaja
escreve poemas de camomila
toca uma música suave
faz amor esquece a guerra
dá um tempo desintoxica
goza rindo desarma
tua alma cansada radical livre
troca dor por afeto
e luz

Daniela Altmayer

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Poeminha



não usa tua régua para
medir minha vida
não existo em linha reta
sou antes curva e desvio
côncava
e complexa

Daniela Altmayer

domingo, 28 de outubro de 2018

O amor que nos mantém



Ele tem quase setenta anos. Ela tem 93.
Mãe e filho, nomes parecidos, consultam todo mês em busca da receita de medicação controlada. Ele tem epilepsia e um retardo mental leve mais um diagnóstico de esquizofrenia. Moram juntos, só os dois.
Ela é magrinha, franzina, tem uma força que nunca vi, é muito lúcida e um pouco surda. Ele é alto, bastante acima do peso, e sempre que os encontro eu lembro daquela personagem do Jô Soares, que dizia: "e pensar que eu saí de dentro dela."
A gente conversa um pouco na consulta, ela gosta de mim e eu dela, eu sempre falo aos gritos, tenho medo que os pacientes na sala de espera achem que estou brigando, ela escuta muito mal, me diz todas as vezes que não é fácil, que é tudo com ela, que se não fosse ela. Eu faço que sim, abraço seu corpo mirrado, aperto a mão dele, são muito gentis.
Todo mês quando eles se vão, meu coração se aperta por aquela mãe tão dedicada, tão sofrida e por aquele filho de cabelos brancos tão grande e indefeso. E se não fosse ela, penso sempre. E quando não for. Um dia não será.
Na última consulta, esta semana, estávamos conversando quando ela olhou para ele e gritou que ele ia convulsionar. Pulei da cadeira e me pus atrás dele, segurando a cabeça enquanto ele se contorcia e esticava, e virava os olhos, e ela repetia, em desespero, meu filho, meu amor, meu filho.
Ela não sabia se ele tinha tomado os remédios, achava que não. Não havia o que fazer ali, no consultório que não é emergência nem hospital. Mantive a calma por nós duas. Durou alguns minutos e passou, ele caiu então num sono sem dor e ela, com dor, se aquietou aos poucos. Quando eles foram embora eu chorei mais uma vez.
Não havia mais nada a fazer, se não esperar e suportar.
Nada a fazer a não ser proteger a cabeça. Tem hora que é isso mesmo.
É segurar nos braços como dá, um corpo em convulsão, para evitar que ele se machuque. Sabendo que tudo passa e que a força do amor é o que nos mantém vivos, apesar de tudo.

Nada a fazer senão esquecer o medo.

Daniela Altmayer



sexta-feira, 26 de outubro de 2018

As coisas do Tobias



Eu conheci o Tobias na oficina de escrita. Ele tinha dezenove anos e uns olhos bonitos, de um castanho cheio de doçura, sentava na minha frente na sala da velha livraria, e sempre que ele lia um conto me causava enorme espanto, pensava como pode, alguém tão jovem escrever desse jeito? Tão forte, tão maduro, com tamanha sensibilidade? Era como se ele entendesse o mundo de uma forma que pouca gente velha consegue, como se fosse uma alma antiga e gorda (e sábia) habitando o corpo de um guri magrinho, com aquela fragilidade aparente, muito enganosa. Eu me apaixonei primeiro pelas histórias que ele contava, que ele lia com aquele jeito tímido e seguro, pelo sorriso fácil, depois eu o amei para sempre, entre cafés, cervejas, filmes, livros e corações partidos e compartilhados.
Ganhei As coisas antes de As coisas ganhar o prêmio SESC de literatura. Comecei a ler antes de saber do resultado, por isso posso me exibir dizendo aquela frase clássica, porém verdadeira: eu já sabia. E disse isso pro Tobias. É um livro forte, emocionante, que te envolve desde a primeira linha.
Quando ele me ligou para contar o resultado, era um dia ruim para mim, mas eu senti uma felicidade tão grande que ela apagou todas as coisas ruins que estavam na minha cabeça, só conseguia pensar no quanto ele mereceu, merece, porque eu conheço bastante gente que escreve, e que escreve muito bem, mas o Tobias, ele tem uma coisa diferente. Acho que ele nasceu escritor, sabe?
As coisas é seu livro de estreia, é um belo livro, o livro que faltava, nas palavras dele, histórias sobre essas relações que existem, um livro necessário.
É sobre o universo homossexual sim, mas é muito além disso, é humano ao extremo, profundo, tocante. Eu arriscaria dizer que é um livro sobre busca, sobre a busca da aceitação e amor, busca essa que é minha, dele, sua, que é universal.
São 25 contos, e juro, um melhor que o o outro.
Cantiga de roda, bah, que conto forte, surpreendente, O pai, dolorido e verdadeiro, Jung, que tem o melhor final que já vi, 99 do qual vou citar aqui um trecho que amei : "as palavras me feriram e me aqueceram, me deixaram com vontade de cobrir ele de socos ou cafunés, ou apenas enfiar minha cabeça mais fundo nos travesseiros.(...) E enquanto pegava o celular para chamar o 99, pensei que não era a primeira vez que terminava as coisas antes de elas começarem."
Difícil escolher um conto preferido, e este é o mérito do livro, do autor, tu vai lendo, e vai se envolvendo com as histórias, sentindo as dores, os gozos, os desenganos, se encontrando e desencontrando a cada tanto, e quando termina tu já quer ler de novo, e sublinhar as partes preferidas, as frases geniais e simples ao mesmo tempo, como a que descreve um cara muito bonito como "o rosto de quem vivia dentro de um Instagram sem fotos ruins."
Termino com o trecho de um dos contos mais tristes e lindos do livro, Água:
"Amar sobrecarrega, nem bom nem ruim, um tudo que compreende o mundo inteiro, corroendo, viciando, impossível que não. Não existe nada que traga tanta destruição, ou que pelo menos, dissolva tanto os outros sentimentos. O ruim e o bom do amor é que ele inunda."
O bom do livro do Tobias é que ele transborda.

É só o começo, mas uma baita estreia.

Daniela Altmayer



terça-feira, 23 de outubro de 2018

Dolores



de um tempo onde
ainda
se escolhiam feijões

ela assava aqueles bolos fofos
que hoje chamam
mármore
enrolava brigadeiros
na manteiga
inventava aniversários
de cachorro e de boneca

de um tempo em que as tardes
ainda
eram lentas

a cozinha cheirava a histórias
da infância na roça
dos namoros de menina
as fofocas da família
dos vizinhos dos artistas
conversa jogada fora

de um tempo onde
ainda
se batiam os bifes

a risada dela ecoava
com a fumaça do cigarro
o aroma da pipoca na panela
o café na caneca lascada
um afago distraído numa torta

de um tempo em que
a mesa
estava sempre posta

ela ligava o rádio
o Benito o Erasmo
o Roberto o Emílio
a música sabíamos de cor
naquele tempo
em que as canções de amor
ainda não eram bregas

antes do sol se por
o fogão brilhava
  não entra agora menina
  não me molha essa pia
  o chão está molhado
  espera o chão secar

de um tempo em que
ainda se cultivavam afetos
e vasos de samambaia

a mão dela na minha
áspera firme gentil
cheirando a cebola e a cloro
ainda segura com força
a fome da minha infância

Daniela Altmayer
(exercício para a oficina de poesia. Era para ser sem desvio lírico, mas...)







domingo, 21 de outubro de 2018

a uma nova cidade



a uma cidade nova
se deve chegar em dias claros
para conhecê-la fresca

nas manhãs
de banhos tomados
de caras lavadas
café e roupas passados

na nova cidade
de ruas recém acordadas
o riso da mulher
o canto de uma criança
algum pássaro inocente


o som dos passos
despertando as vitrines
as cortinas abertas
escancarando o azul

não se deve chegar
quando anoitece
hora dos maiores enganos
a uma cidade nova

sua gente apressada
as caras amassadas
os carros cansados

as calçadas vazias

algumas luzes acesas
as janelas cerrando
a ilusão de sombras
cores sonhos
artificiais

o crepúsculo tem o véu
místico da cigana
com suas brumas
seus becos escuros
evocam mistérios
de uísque 
e melancolia


Daniela Altmayer
( texto para oficina de poesia- desvio lírico)

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Clarice






a mãe sifilítica

concebida na esperança
da cura que nunca veio
a menina se culpa

resistem as feridas
dessas que não fecham
uma vida inteira

são heranças malditas
de onde se foge mas
não existem refúgios


a estrangeira

os olhos oblíquos
castanhos
verdes azuis

vive aqui mas
não

parte dela
está sempre além
além mar
além si


 fogo no Leme

a máquina de escrever
mais uma folha arrancada

o dia nublado e quente
anuncia chuvas de verão
abre a janela para fumar

a maresia invade a sala
chega ao quarto
deita na cama desfeita


o cigarro escapa aceso
da mão, do cinzeiro
abarrotado
de baganas e manchas
de batom

uma ponta vermelha
indecente
cai num silêncio lento
sobre o tapete branco

lá fora
o mar agita-se
estão de ressaca
ela e o mar

Daniela Altmayer


Tema para a oficina de poesia, escrever três poemas sobre uma personalidade.
( Profético- não consegui, transcendental e terreno)
Nota 2/3










terça-feira, 2 de outubro de 2018

a mulher da madrugada





ao pé da escada
no escuro
uma mulher espera

embriagada

a mulher sou eu
o homem
tem nome

mas nao é um homem

vadia puta piranha
esse vestido
cabelo unha
essa cor

mulher que bebe
fuma chora
não presta

essa mulher
que fala
não serve

passos distantes
duros indiferentes
às lagrimas e
ao concreto frio

às pernas abertas

a porta fechada
não a primeira
nem a última

Daniela Altmayer
(tema para a oficina de poesia: pensar numa situação de abandono)





domingo, 23 de setembro de 2018

Desajustada


É só andar na linha e tudo bem. Eles dizem.
Quem?
Eu não ando na linha.
Já tentei, mas sou muito descordenada.
Naquela brincadeira de criança em que não pode pisar na linha da calçada: eu sou a que sempre pisa. Não pode pisar na pedra branca, eu piso.
Não pode queimar na amarelinha, eu queimo.
(Sempre tão difícil de chegar no céu.)
Tenho problemas de visão. Eu não enxergo a linha e não me importo.
Já tentei, mas a linha me deu um nó.
Pensava, ingênua, que a linha traçava uma reta entre dois pontos.
Nascimento e morte, linha da vida.
Era só seguir adiante, sem erro.
Como eles, dizem. Caminho do meio, terra plana.
Mas não funcionou nem poderia. O mundo é redondo, e gira.
Quando eu estava chegando, tive que voltar. E vice-versa.
Mais de uma vez.
Confundi a linha de largada com o destino final.
Me enrosquei em novelos sem achar a ponta
Cometi erros. Alguns graves, alguns bobos.
Todos meus.
Conheci pessoas. Pessoas nos fazem voar.
Não todas. Algumas.
Levei sustos. Tantos.
Vivi alegrias e dores, tive surpresas.
Li livros, inúmeros.
Livros nos fazem mudar.
Mudei de ideia. Muitas vezes.
Foram tantas reviravoltas que perdi a linha.
(De quem?) Quem quer saber?
Danem-se os eles.
Mesmo que não fique tudo bem, prefiro andar assim.
Só sei andar assim:
Desalinhada.

Daniela Altmayer




quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Sem palavras

imagem Frida Castelli

teu grito
no meu ouvido

quebra barreiras
rompe represas

dá vazão
a tudo

que não é dito



"O som mais bonito do universo, neste momento?
A tua voz."


Daniela Altmayer

Poeminha




Amor narciso

gosto do que vejo
quando busco
o espelho
dos teus olhos.

Daniela Altmayer

Desvestida



imagem Frida Castelli


Abre as portas de um armário
Indecisa solidão
A previsão fala em sol
O humor sopra o contrário

Um vestido sem amor
As botas de salto agulha
Meias finas fio de pérolas
A elegância furta a cor

Um café outro cigarro
Olheiras e pó de arroz
Batom cor de boca, não
Vermelho carmim bizarro

Bolsa carteira um maço
Lenço de seda casaco
A pressa sempre vestida

Brinco esquecido, cansaço


Daniela Altmayer
Estudante
( oficina de poesia, exercício de métrica: fazer uma redondilha maior, com 4 versos e 4 estrofes)

domingo, 9 de setembro de 2018

Setembros




  carne na grelha
  fumaça 
  bandeiras
  azuis
  mais vermelhas

 bravatas
 bombachas
 revoltas
 maltrapilhas

 não me comovem

 de gaúcha mesmo
 só tenho
 o endereço
 o chimarrão
 e a empáfia

Daniela Altmayer

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Na primeira vez


desenho de Frida Castelli

não beber mais que uma taça                        
não falar de política
não mencionar a Marina
nem a Manu
nem o Fernando
muito menos o Jair
não comer alface
nem couve
rúcula
azedinha
ou brócolis
nem massa
com molho
de tomate
cebola
alho
pimenta

não beber mais que duas taças
não falar de livro
ou filme
francês
turco
dinamarquês
não mencionar casamentos
         passados
         futuros
         presentes
         alheios
não falar de amor
liberdade
ideias
pensamentos
não ainda
não os próprios

falar de viagem segura
de turismo
para fora
para longe
além mar
não dessas viagens para dentro

beijar antes da sobremesa
colocar a mão na coxa
subir pela perna
para ter certeza
não dividir a colher
dividir a conta
mas sem insistir
fazer charme
não pedir café
pedir conhaque
ou coisa mais forte

não beber mais que três taças
ou cinco
de vinho
não sair antes
de pagar
não acabar antes
de começar

Daniela Altmayer

Exercício para a oficina de poesia: escrever um poema em forma de lista como aquelas resoluções de ano novo, em tom jocoso, de forma a dar conta de um possível fracasso.


domingo, 2 de setembro de 2018

O relógio da cozinha





A chuva deu uma trégua. Nada se move na manhã nublada.
Pedalar ou não é a dúvida que divido com a xícara de café preto e quente.
Faz silêncio na rua, no apartamento, na sala, em mim.
O único ruído que escuto é o do velho relógio na parede da cozinha.
Tic-tac, tic-tac.
Sessenta segundos por minuto. Sessenta batimentos por minuto.
O antigo relógio da casa de praia marca o ritmo da cidade nesse domingo sonolento.
No compasso do meu coração, lembranças de outras vidas, outras chuvas, do coaxar dos sapos nas valetas, de ruas lamacentas de uma terra de areia e vento.
Pela janela entra uma saudade com cheiro de perfume e cigarro, o hálito de bala de mel, a lembrança das mãos mais bonitas e longas que às minhas já seguraram.
Olho para os meus dedos, vejo os anéis dela e as unhas pintadas como ela jamais usaria, herança e subversão, é assim que seguimos desde que o mundo existe.
Uma maciez áspera a arranhar a garganta feito gato, se ouvisse sua voz melodiosa e um pouco rouca ainda reconheceria, a bridge over troubled water, numa falta que já não dói na mente agora calma.
É só um vazio que aparece de vez em quando, mais em dias assim, cinzentos e quietos, onde o único ruído é o do fiel relógio herdado, marcando aquilo que é inexorável:
sessenta batimentos por minuto, sessenta segundos por minuto.
Tic-tac. Enquanto houver pilha o tempo não para. 
 
O tempo que não se decide, nem eu.

Daniela Altmayer

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Na fímbria da noite


te escolho todas as vezes
em silêncio

não há vento

a solidão se encontra no cais
onde não me esperas
errante vigia

o último pesqueiro
a motor
te levou faz um tempo

agora faz frio
o último
súbito clarão
é da cor do meu vestido
de noiva
de puta
de mulher

é da cor do meu sangue
ancorado
sob este céu imóvel
que te deixou partir

Daniela Altmayer

domingo, 29 de julho de 2018

As vitrines



Dos pequenos luxos, como lavar roupa.
E escrever sobre nadas...
Vai chegando ao fim o belo domingo de sol, depois de tantos dias de céus tristes, emburrados, da cor de coisa alguma.
Hoje foi um dia para tirar o mofo das paredes, aquecer o frio dos ossos, espantar a umidade de dentro.
Duas máquinas de roupas, lavadas e quase secas. Uma alma arejada ao sol quieto da manhã. O frio azul e seco lá fora. O vento gelado que dói o ouvido na beira do rio, faz zumbir uma estranha música de aniversário.
A pedalada solitária, necessária, puxada: meditação. O coração batendo forte. Um desafio e uma afronta à metade de século menos um.
Gente!
Duas malas semi-prontas, abarrotadas de excessos a serem editados. Um outro dia. Na bagagem, como na escrita, é preciso cortar sem pena. (Por mais que pareça importante, e tudo parece sempre importante).
O abraço forte do filho, tão apertado que quase dói, como quase doem todas as coisas que a gente ama com tamanha força.
A música ao fundo, o Chico, sempre ele. Tua cantiga me aperta a garganta, todas as vezes e por uma só razão. Eu te amo, eternamente.
Depois do Chico vem o Caetano, a gente não aprende a esquecer, só a não querer, um dia a gente deixa de querer porque sim e porque tem que ser.
Ele canta a oração ao tempo, esse senhor tão bonito, compositor de destinos, eu adoro essa música, ela é para mim hoje, minha música, amo esse tempo que passa, e me envelhece, mas não amo que ele me envelheça, isso não.
Preparo uma máscara de argila rosa que promete elasticidade e que me deixa por vinte minutos com a cara da cor da doo presidente dos estados unidos, depois me resta a pele macia, ainda com as marcas e os sinais que máscara alguma jamais apagaria, porque não.
Ouço de novo a música, tempo, tempo, tempo, canto junto a oração, faço as pazes com ele.
Já fiz as pazes com ele há alguns anos, desde que me encontrei aqui nesse lugar, nessa mulher. O tempo não me enruga o espírito, pelo contrário, ele o torna cada vez mais flexível, mais forte, mais firme. Inteiro.
Termino o dia numa celebração lenta, taça de vinho, pizza de cebola e gorgonzola, a melhor das companhias.
Chega ao fim outro domingo, começa uma nova semana, inicio mais uma volta ao redor do astro-rei.
(Cada clarão é como um dia, depois de outro dia...)
Que ela venha assim, como hoje. Cheia de sol, porque todos os desejos são de sol, com cheiro de roupa lavada e a certeza de que está tudo bem. 
Tudo em paz.

Daniela Altmayer

Através da parede





 ...sobre amores-fantasma

nas casas em que não entro
me assombra uma pergunta:
eu existo onde não estou?

Daniela Altmayer

domingo, 15 de julho de 2018

Liberdade, igualdade, fraternidade


Hoje pela manhã, enquanto pedalava, ia pensando na minha vida e me veio uma frase aleatória à cabeça: algumas revoluções são silenciosas. Tão silenciosas, que só quando passa um tempo a gente percebe que aconteceram.
Quando acabou a final da copa, eu que ao contrário dos meus vizinhos torcia (sem muito empenho) para a França- por razões bobas como: gosto da língua, amo Paris, uma irmã minha mora na França, ontem foi 14 de julho, um desses motivos que a gente acha para tomar partido, enfim, fim de jogo e de festa, decidi assistir a um talk show que estava na minha lista. Hannah Gadsby- Nanette.
Hannah Gadsby é uma comediante lésbica, nascida na Tasmânia, onde a homossexualidade era crime até 1997. Mas claro que ela é muito mais do que isso, veja por você mesma.
Na primeira meia hora do programa, quando ela fala que vai desistir de fazer comédia, eu parei para fazer um chimarrão e enquanto esperava a chaleira chiar, voltei meu pensamento para a França, não sei porquê. Lembrei de quando aprendi sobre a revolução francesa no colégio, e de como me foi tão mal contada a história que cheguei a ter pena(!) dos monarcas que tiveram suas cabeças decepadas na guilhotina. A meu favor, tenho a dizer que eram tempos de ditadura, filosofia estava longe do meu universo infantil e da minha limitada compreensão humana. 
Só muito tempo depois eu consegui ter um vislumbre diferente de tudo que aconteceu ali, da grandeza daquilo que mudou o curso da nossa história. Ironicamente, ou por aquela coisa chamada sincronicidade, (quem assistiu o programa sabe do que estou falando), pensei na importância da forma como as coisas são contadas, mais ainda, no quanto nos protegemos de pensamentos críticos, por falta de mudar as perspectivas, por preguiça ou medo de pensar por conta própria e assumir o risco.
Fim dos parênteses.
Chimarrão e pipocas na mão, voltei para a Hannah, para entender por que ela queria parar de fazer comédia. Entendi. É que ela quer contar sua história do jeito certo, com princípio, meio e fim, e quando ela fala da infância, e diz a seguinte frase: "Porque o armário só impede que te vejam, não é à prova de vergonha." e continua, falando sobre a criança que foi: "o ódio de si mesma é uma semente que só pode vir de fora", tive que dar uma pausa para deixar o choro rolar solto. 
Quem nunca se encaixou, por um motivo ou outro, pode entender o tamanho dessa dor.
Ela segue dando uma paulada em cima da outra, cheia de sensibilidade, graça, inteligência. Formada em artes, quando fala do Picasso, que ela odeia, diz que ele sofria de um transtorno mental chamado misoginia. E ironiza, dizendo que louco que deve ser odiar o que se deseja.
Fala de sofrimento, força, de resiliência, de feminismo, me diz uma coisa que já aprendi, e que fez parte da minha revolução pessoal, aquela mesma de que falava no início deste texto confuso: a diferença é uma professora.
Uma baita professora, sim. Não só ela, a história também nos ensina.
Eu queria ter nascido pronta, quem não? 
Adoraria ter reconhecido desde cedo a misoginia como um transtorno mental, assim não teria me envolvido em um relacionamento abusivo com um homem doente. Queria ter aceitado de braços abertos desde o primeiro dia quando meu irmão se disse gay, sem qualquer senão ou porém, queria ter sabido antes mesmo de ele precisar dizer. Gostaria ter entendido desde sempre que não ser racista (nunca fui) é muito diferente de ser contra o racismo, conceito esse ainda novo para mim e que tentava explicar para o JP antentem. Me encantaria ter reconhecido antes a sociedade patriarcal, e lutado contra os machismos deles (e nossos) de cada dia. Queria poder dizer que nunca depreciei uma mulher do mesmo jeito que um homem faria, queria ter vindo com o conceito de sororidade tatuado na perna feito minha mancha de nascença. Só que não foi assim. 
(Tanto não é assim, que o meu corretor nem reconhece, troca por sonoridade, ri-se da minha teimosia sublinhando de vermelho essa estranha palavra.) 
Tudo que aprendi veio com o tempo, veio bem tarde (nunca tarde demais), algumas vez por amor, a maioria das vezes. Em outras, veio com muita dor. Não caiu do céu, nada cai, fora avião e chuva. Foi uma construção. Está sendo ainda, e acho que vai ser sempre, essa revolução silenciosa e lenta a que me referia.
Ou seria, evolução?
A Hannah me cativou, me fez rir, chorar, parar para pensar, me deixou emocionada na tarde desse domingo azul.
Ela fala que entender o passado é um dom, e diz que rir não é o melhor remédio. Nem a raiva é a solução, ouçam:
"O que cura são as histórias." 
Eu acredito nisso também. A minha história é a sua, e vice-versa. 
E alguém já disse antes: todas as histórias importam.

Vale muito a pena, nos conhecermos. De verdade.

Daniela Altmayer

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Carta para Isabella 7


Numa terra distante,
numa pequena grande ilha,
entre príncipes e princesas, 
vive uma menina valente.
Ela é muito importante.
Para mim, 
Ela é mais importante que a rainha
da Inglaterra.

O nome dela é Isabella.

Há seis anos ela chegou,
E fez do mundo um lugar mais bonito,
Mais colorido e mais divertido.
Ela chegou e já foi tomando posse,  
Sem a menor cerimônia
Não de um castelo, 
isso até que não.
Ela logo se tornou
foi dona, soberana 
do meu coração.

Dear Bella,
Quando tu fez 4 anos eu escrevi uma carta falando do meu amor cor-de-rosa. Porque essa era a tua cor favorita naquela época. Agora fiquei sabendo que tu gosta muito de cinza, e eu adorei saber disso, porque cinza é minha cor preferida também, junto com azul. Fiquei pensando em como a gente vai mudando com o tempo, e que bom que a gente muda. 
Faz um ano que nós não nos vemos, mas eu sei que esse ano que passamos longe foi muito legal, tu aprendeu um monte de coisas novas, aprendeu a ler, a escrever, fez vários amigos, viajou, cresceu. 
Acompanhei aqui de longe teu primeiro ano na escola, tuas aulas de teatro, macaquinha linda, super talentosa.
Fiquei toda orgulhosa e comovida com os teus boletins que sempre falam da guria inteligente, sensível e corajosa que tu é. Eu já sabia que tu era. Sempre soube.
Ontem eu recebi uma mensagem tua dizendo que queria que eu estivesse contigo no dia do teu aniversário, e meu coração se encheu de amor e de saudade, de vontade de estar aí para te dar muitos beijos, abraços e presentes, festejar contigo esse dia tão especial. 
Mas não fiquei triste, não mesmo, porque logo vamos estar juntas, e vamos nos divertir muito, tenho certeza.
Meu amor por ti é gigante, ainda maior que esse oceano enorme que nos separa. 
E é ele que nos liga e conecta, para sempre. Forever. Em qualquer lugar.
Bom, enquanto não chego, mando o nosso querido amigo senhor esquilo para te dar um abraço de urso, bem grande e apertado, cheio de carinho. 
Mando ainda, um recado por ele: 
Seja feliz, meu anjo.
Minha menina dos olhos azuis de poesia.
Acredita muito em ti, na tua força.
Na tua cabeça e no teu coração.
Acredita nos outros também, se possível.
Ame todas as cores, mude quando precisar.
Seja tudo que tu sonha, tudo que tu quiser: não existe limite para ser.
Menos ainda para sonhar. 
Happy birthday, my love
See you soon
xxxxxxxxxxxx
tiDani
senhor esquilo abraçando a Bella

domingo, 8 de julho de 2018

"A felicidade de ser triste"

"Melancolia é a felicidade de ser triste."
         Victor Hugo


Amanhece com o coração apertado como quem espera más notícias, como se o vento frio que assobia pelas frestas do velho apartamento fosse o prenúncio de um longo inverno, as mãos geladas abraçam a xícara de café amargo, o cinza desses dias penetra pelos ossos úmidos e, se a solidão tivesse um nome, seria julho e jamais agosto.
Novas dores substituem as antigas, agora é o joelho que falha enquanto desce a escada sem corrimão, cada escorregada é uma falta a favor da bengala, o cabo de madeira entalhado pretensioso demais para ser guardado no fundo de um armário, ainda assim. Teimosa, se escora pela parede até a saída, como cega tateia o caminho, já não confia.
Uma chuva fraca, garoa feito mágoa e molha a calçada, o guarda- chuva vermelho é forte demais para a pouca água, para a pouca cor desse domingo escuro, ele grita, todo exagero é lembrança de outras coisas vermelhas, mais vivas, mais pulsantes, a memória do sangue, a memória da carne. Da dor.
A rua está deserta, exceto por um mendigo descalço e pelo homem que passeia mais adiante com seu lulu de botinhas amarelas, acha um pouco ridículo, ela nunca gostou muito de amarelo, cor do desespero, a mãe dizia, não combina. Que engraçado isso de combinar, passa-se uma vida inteira tentando combinar, de que adianta agora saber que azul -marinho e preto não combinam, é a mesma coisa que melancia com leite, não faz mal, só é ruim. E mesmo ruim, tem quem goste.
A chuva aperta, o vento vira a sombrinha vermelha, uma quadra é muito longe, puxa o capuz sobre a cabeça branca, a capa preta, a meia-calça preta, a saia comprida preta, a blusa cinza, o casaco quente, as botas de sola de borracha, feias, botas de velha, seguras e antiderrapantes, feias e confortáveis, botas de velha, pretas.
Na parada uma menina de cabelos verdes e fones de ouvido balança a cabeça de olhos fechados, cantando uma dessas músicas sem sentido, ela parece esquisita e feliz, pensa no que a mãe diria, cabelos verdes é ainda pior que uma blusa, uma bota amarela, qual o problema de parecer ridícula, ela devia ter vestido a echarpe florida. Ele gostaria disso.
- É da cor dos seus olhos.
Olhos cor de violeta, que ideia, nunca vira, só vira nos livros, as heroínas dos romances que devorava quando ainda podia distinguir as letras. A manta era cor de violeta, quase roxa, combinava com seus olhos, de novo essa coisa de combinar. Macia, de boa qualidade, tantos anos já fazia, tem coisas que são descartáveis e outras que não. Tem coisas feitas para durar.
Sobe no ônibus quase vazio, a menina verde fica na parada, ela senta num dos bancos da frente e encosta a cabeça na janela. Olha, como fazia quando criança, as bolhas de chuva que formam  no vidro estranhos desenhos e caminhos. Toda vez que tenta adivinhar um trajeto, erra quase sempre. As bolhas, como as pessoas, se desfazem. Não são previsíveis. Desenha ela mesma um coração torto no vidro embaçado, e sorri com a lembrança.
Um homem cheirando a cigarro e umidade senta ao lado dela, a cumprimenta, com tanto lugar vago, ela não quer falar, hoje não, quase nunca. A voz sai com dificuldade nesses dias de chuva. Vira o rosto para não sentir a respiração ruidosa e fétida do outro, que fala do tempo, da copa, de política, assuntos que não interessam, velho é como mulher grávida, só que invisível: não se pertence, ninguém respeita. Finalmente ele se vai, "não fica triste vozinha. Amanhã a chuva para. "
Não é tristeza, não é nada, só um vazio que ela não sabe que nome tem, nem se deveria ter nome algum.
Atravessa a cidade aos solavancos, é quase uma viagem sem fim. Olha os muros brancos, as bancas de flores, as flores de plástico, vai comprar uma rosa para celebrar sozinha esse estranho aniversário. Uma rosa de verdade.
Aperta o botão para descer, a chuva deu uma trégua, levanta os olhos para o céu carregado de nuvens pesadas, pensa numa palavra que eles gostavam, não consegue mais lembrar como se diz. Tinha a ver com chumbo.
Dá de ombros. Tanto faz, as palavras vão envelhecendo e morrem também. Ficam cada vez menos palavras, e as que ficam são cada vez mais simples, talvez mais feias, com certeza mais funcionais: como as botas que ela usa para se prevenir, para não derrapar.
E mesmo assim, não previne. Nada previne nunca.
Ela escorrega de novo. E cai.

Daniela Altmayer