sexta-feira, 24 de março de 2017

Crônica urbana



São moradores de rua, estão jogando cartas na calçada ao meio dia, alheios ao vai-vem do centro movimentado, alheios ao fora temer pichado na parede.
Eu os vejo do alto da minha lotação refrigerada e dos meus problemas burgueses, com meu coração pequeno classe média apertado.
Eles moram na rua, se divertem jogando cartas.
Canastra?
Faz muito tempo... 
Faz muito tempo que eu não jogo nada.

Dani Altmayer

domingo, 5 de março de 2017

Solidão com vista pro mar

Foto de Dani Altmayer- Cassino/RS



"... a esperança se prolonga e o charme da ilusão dura o mesmo tempo que a paixão que a causa."

Eu nunca te iludi, ele disse. Ótimo, ninguém quer mesmo ser iludido.
Acontece que a ilusão era o sabão que fazia as bolhas. Era a areia que ela usava para fazer castelos. Castelos que se desmanchavam a todo instante, e eram refeitos com delicadeza e uma dose de esperança, porque como bem disse Rosseau, se a felicidade não vem, a esperança se prolonga e a inquietude é também um tipo de alegria. A brincadeira é um tipo de inquietude, de leveza, prima-irmã da ilusão.
A ilusão nunca nos é dada, ela é criada pela gente.
Ela sabia disso, mas gostava de soprar o canudinho, de sentir a areia escorrendo pelos dedos, construindo torres e bolhas que qualquer onda ou vento mais fortes poderiam desfazer. Escrevendo poemas à beira mar, ela era feliz sem ser, em estar.
Ela, que nunca na vida teve um amor pontual. Ele sempre chegou atrasado. Não lembra mais de um dia ter dito "eu te amo" e ter recebido a resposta no ato. Essa resposta veio, sim. Muitas vezes, muitos anos depois. Os "eu te amo" sempre chegaram tarde demais. Quando já eram desnecessários ou vãos.
"Eu nunca te iludi".
Pode parar de brincar, a areia virou concreto e silêncio. E ela, que não sabe lidar com concreto, massa corrida e pás de cal, pensa que o que a fez amá-lo, é o mesmo que vai fazê-la partir ainda amando. Sua vida, blindada. A falta da ilusão, assim decretada, a deixou sem saída.
Ela vai, porque ele pode não amá-la. Ele não pode amá-la. Mas ela aprendeu a dizer a si mesma o eu te amo que tanto esperou ouvir.
Ela vai, porque precisa, ao menos uma vez ainda, mesmo sem qualquer garantia, ser pontualmente correspondida.

Dani Altmayer

"Onde não puderes amar, não te demores" (Frida Kahlo)





quarta-feira, 1 de março de 2017

Não me diga quem é você


                                                                     Vou beijar-te agora
                                                                     Não me leve a mal
                                                                     Hoje é carnaval


O sol bate em seu rosto, ela abraça o travesseiro colorido pela purpurina e abre os olhos devagar. Já passa das duas da tarde, e a lembrança da noite anterior volta aos poucos, despertando um sorriso sonolento.
Entre marchinhas de carnaval e gritos de"fora Temer", o bloco Cidadão de Bem é Mito percorre as ruas da cidade na noite sem luar, sob o intenso calor de fevereiro. Os dois mascarados se beijam numa esquina, perto da praia. Sem dizer uma palavra, escapam para uma rua transversal.
Encostados à parede, alheios à música abafada e ao cheiro de urina, ele desloca a alça de sua blusinha com os dentes, e começa a beijar seus seios. O corpo dela enrijece, as mãos se agarram às costas dele e ela geme baixinho. Ele morde e chupa seu mamilo com delicadeza, a pele vai se eriçando naquele fogo que começa em todo lugar. Crava as unhas na bunda dele, num primeiro espasmo, enquanto ele desliza sua mão corpo abaixo, afastando o short soltinho, enfiando os dedos naquele poço úmido e doce. Estão colados, quentes. O corpo dela corcoveia, e ele a segura com um pouco de força, sem parar de foder. O braço dele a mantém suspensa no ar. Ela mia mais alto, até jorrar num grito abafado. Ele encharca seus dedos e os traz para a boca, lambendo e beijando, numa mistura melada de gozo, suor e saliva. Ela sorri, sem forças, enquanto ele a segura firme num abraço apertado. Ela quer ficar ali, ele a puxa de volta. Trocam um último olhar por entre as máscaras e se perdem no bloco, anônimos na multidão.
A máscara preta jaz aos pés da cama. Ela boceja, se contorce nos lençóis...Está com a boca seca, o corpo dolorido numa memória feliz.
Ele não tem um nome, mas ela tem quase certeza de que os olhos eram azuis.

Dani Altmayer