segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Crônica de instante




- Faz tempo que tu tá esperando?
Olho no relógio e descubro que faz cinco minutos.
Para alguns, pode parecer pouco. Mas chove, e estou cansada.
Respondo: faz muito tempo.
Porque é assim. Em última instância, toda espera é longa.

Dani Altmayer

domingo, 28 de agosto de 2016

Personagem




Vários não sabemos. Muitos de nós não sabem. Talvez a maioria.
Mas eu sei. Eu vim das páginas de um livro sem título e sem capa. Como os que minha mãe me dava. Uma daqueles romances grossos, com heroínas pálidas de vestido longo e suspiros curtos. Tenho certeza de que vim de um romance. Nasci ofegante, cresci meio hesitante. Ruborizo com facilidade. Estou sempre assim, distante, perdida. Em outro plano. Um pouco acima, um pouco abaixo. No lugar errado, no lugar certo na hora errada, adiantada. No mais das vezes, atrasada. Confundo vida real com história. Sexo com amor. Amor, com dor. Com flor. O tempo todo. Eu rimo e nada mais rima comigo. Me divido em capítulos. Me confundo e não me reconheço em palavras passadas. Descubro palavras novas e escrevo. Reescrevo sem parar, me fortaleço. Porque eu vim das páginas de um livro, palavras me fizeram nascer e morrer, de novo e desde sempre, e eu já perco as contas das vidas que vivi e não vivi. Dos enredos que inventei só para o meu prazer (só para me enredar), dos dramas que desenrolei para poder seguir, dos mundos que compartilhei e dos abismos onde me joguei e de onde depois voei. Saí, depois voltei. Perdi as contas das viagens que imaginei e das que viajei. Das comédias, trapalhadas, dos personagens que criei, que criaram em mim, e para mim. Dos sonhos que não sonhei, dos ideais e dos devaneios que me conceberam e que me mantém. Solitária como uma manhã de domingo, e quieta.
Vários não sabemos do que viemos. Muitos não sabemos para onde vamos. E eu ainda não sei quem sou. Eu vim das páginas de um livro e acho que ali continuarei, sem escolha. Escrevendo e lendo até a palavra fim. Tentando descobrir, misturada na névoa imprecisa entre ficção e realidade, presa pelos pés e liberta pelas mãos. Por meus olhos. Deliciada e confusa. Repleta. Assombrada, e estranhamente a salvo.
Com uma única dúvida a me atormentar, se nessa história eu queria mesmo ser eu. Ou uma outra. Se nesse romance, eu não gostaria de ser ela.

Dani Altmayer
( desafio- escrever sobre a foto)

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Depois


Os raios de sol penetram a poeira da janela.
Nada se move no outro lado do mundo.
Estamos suspensos no tempo, instantes.
Somos o instante em que nada se move.
Suspensos no silêncio desse mundo paralelo, inventado.
Dois, e dois de um "tamanho tão certo."
Sem passado sem futuro, sem peso.
Inertes e embriagados, do todo e de nada.
Até uma lágrima escorre repleta, saciada.
Sorri, numa tarde muito azul de sorrisos. 
E eu penso que a felicidade deve ser um pouco isso. 
Um poema assim muito azul.
Feito dois corpos instantes, dançando momentos. 
Como partículas de poeira, suspensas. Entregues ao sol.

DA

domingo, 7 de agosto de 2016

Eu



"Eles olhavam e não a viam. Ela fazia mais sombra do que existia. "
   Clarice Lispector, in Preciosidade

Às vezes nós estamos pobres de palavras. Nesse instante, calamos. Quem está pobre de palavras não deve falar. Calamos para saber ouvir. Para levar um soco... De quem tem na palavra sua maior riqueza.