João trabalhava no açougue há pouco mais de um mês. Tivera sorte de conseguir emprego, recém chegado na capital. Vindo da lavoura, no começo teve um pouco de dificuldade para aprender o corte das carnes, mas o açougueiro, um homem grande e generoso, o ensinara todos os macetes com boa vontade.
Era uma manhã de domingo ensolarada, e ele estava moendo um coxão duro para embalar a vácuo e expor na prateleira. Pensava na Rita, a noiva que deixara na roça. Precisava telefonar mais tarde, haviam combinado de ela ir até a casa da vizinha para atender. Na roça não tinha sinal de celular, e o telefone era um daqueles antigos de parede, fazia um chiado horrível, mas era o jeito que tinham de se falar. Ele tinha novidades para a Rita, ontem mesmo a prima falara de uma cliente do salão que queria uma moça do interior para morar e fazer o serviço da casa. Era a chance que estavam esperando para dar jeito na vida, e João sonhava acordado, com saudade dos braços e dos beijos de sua garota, enquanto moía distraído os pedaços que o açougueiro separara na tarde anterior. Foi quando percebeu algo estranho, no meio do bolo de carne, algo esbranquiçado e comprido. Gritou, apavorado.
O açougueiro, que estava no caixa atendendo um cliente que comprava a carne do churrasco, veio correndo.
- Você se cortou, João?
- Não senhor, não...-João mal conseguia falar, pálido de susto- Eu achei isso, aqui no meio da carne.
E mostrou para o dono do açougue um dedo humano.
- Tem unha, e tudo!
- Hum, preciso falar com o fornecedor. Joga isso fora, João, e acaba logo o seu serviço, para me ajudar no balcão.
- Mas...mas...
- Faz o que estou mandando, depois a gente conversa.
João, tremendo, continuou a moer a carne. O resto da manhã transcorreu sem que conseguissem tocar no assunto, pois o movimento aos domingos era grande.
João foi para casa transtornado, e quando ligou para Ritinha, essa percebeu que o noivo estava estranho, mas ele não teve coragem de contar-lhe o ocorrido. Talvez tivesse se enganado, afinal. Combinaram que ela viria dentro de uma semana, para conversar sobre o tal emprego, e isso o deixou um pouco mais animado.
O dia seguinte, segunda feira, era dia de entrega de mercadoria. O açougueiro designou João para moer carne novamente, enquanto ele mesmo cuidava dos cortes mais nobres e sua esposa ficava no balcão e no caixa. Chovia muito, e quase não havia clientes. João, por diversas vezes tentara falar com seu Vanderlei, era esse o nome do patrão, mas o mesmo parecia o estar evitando.
Resignado, começou a separar os pedaços para passar no triturador, quando deparou-se com o que parecia um pé. Não tinha dúvida, era um pé. Colocou dentro de um saco plástico, e chamou Vanderlei para os fundos da loja.
- E isso, agora?
- Olha, João, para trabalhar aqui você precisa fazer de conta que não vê certas coisas. Ou como você acha que consigo fazer esse precinho tão bom no produto?
- Não era melhor chamar a polícia, seu Vanderlei?
- Que nada, João, joga fora. Ou melhor, passa antes no triturador. Depois desinfeta com álcool e pronto. Tudo certo.
- Mas...
Nisso chegou uma cliente, pedindo um pedaço de filé e lagarto, e seu Vanderlei o deixou falando sozinho. João enfiou o saco na sua mochila, e seguiu trabalhando.
Ao final do dia guardou o pé na geladeira da casa que dividia com o primo, junto com o pedaço de dedo, envoltos em papel laminado, com um adesivo de "Não Mexer."
Precisava de tempo para pensar no que fazer. Pensava em pedir demissão, em contar para o primo, em fazer uma denúncia. Estava perdido em seus problemas quando o telefone tocou. Era Ritinha, muito nervosa, e chorando. Fizera um exame na sexta feira, saiu o resultado. Estava grávida. A ligação era muito ruim, e ela atropelava as palavras."Você tem um bom salário no açougue, ainda bem meu amor, meu pai vai me matar, a gente tem que casar logo."
João, aturdido, assegurou à noiva que tudo iria se resolver. Ia ficar tudo bem.
Na manhã do outro dia, contou da gravidez e pediu um bom aumento ao açougueiro, que concordou sem pestanejar.
- O senhor sabe que pode confiar em mim, contar com o meu silêncio.
O tempo passou, a Rita veio da roça, casaram no cartório e alugaram um quarto e sala para morar.
De vez em quando o João chegava com um pacote estranho, e colocava no congelador. Avisava para ela não mexer. A Rita nunca mexeu.
O Júnior devia estar com uns seis meses, e dormia no berço, enquanto João tomava banho e Rita lavava a louça do café, quando ouviram uma batida forte na porta. "Quem será, a essa hora," gritou João, do banheiro. Rita enxugou as mãos na camiseta, e abriu uma fresta, assustada. Deu de cara com um policial armado.
- Abre a porta, por favor. Recebemos uma denúncia. Tenho um mandado de busca e apreensão.
- Fui eu quem ligou, moço. O senhor pode entrar.
Dani Altmayer
Exercício escrita criativa. Tema sugerido pelo professor, açougue e pedaços humanos, que fique bem claro. ;)