domingo, 30 de agosto de 2020

Quando setembro vier


 


Setembro se avizinha a passos largos, aquele mês tão longe lá em março está batendo à porta, logo é primavera e os ipês estão floridos em Porto Alegre.

O domingo de chuva roubou o sol e o calorzinho do sábado, hoje é um daqueles dias bons de não fazer nada, mas ontem saí para caminhar pelo bairro, precisava arejar meus cansaços, passear as dores que vem se acumulando nos ombros, desde lá, daquele março.

O cheiro inconfundível de jasmim em flor me fez parar para sorver o perfume que todo ano me lembra, este mês seria aniversário dela. Minha mãe libriana, cheirosa. Fotografo o arbusto, presa no instante, guiada pelas memórias olfativas afetivas.

Uma outra mãe está no meu pensamento, desde sexta ecoa dentro de mim o desespero da sua voz, me dizendo as (quase) piores notícias que se pode ouvir em meio à pandemia: o tubo, o tubo, o tubo. No filho.

Esta mãe leonina como eu, leoa. Como todas nós.

Ela, com quem convivo desde lá em março, que me chama de doutora Barbie, que luta comigo e outros tantos as lutas diárias de cuidados, medos, angústias e (des)informações que modificaram nossas rotinas de trabalho e de vida.

Nem posso, ou só posso mesmo, imaginar. O tamanho desta dor, desta agonia.

Só posso desejar que ninguém esqueça do que não dá para esquecer: não passou, não passou, não passou. Se cuidem, e cuidem dos outros. Porque a gente nunca sabe quando, ou como, quão grave vai ser.

O filho desta mãe tem 28 anos.

Que logo a primavera suceda o inverno, com seus dias mais longos e perfumados. Que venha a vacina, e com ela os abraços. Que, muito em breve, a mãe que agora sofre tanto, possa nos dar as boas-novas e ter seu filho de novo, nos braços.

Ela e todos nós, que estamos, desde março, sobrevivendo. Tão precisados e carentes de bons ares, vento na cara, sorrisos visíveis e boas notícias.




terça-feira, 25 de agosto de 2020

Imigrantes

 

         Imigrantes

Atravesso e aporto
teu corpo
em pequenos
precários botes

alhures a terra
desejada esta
terra infértil

adejante promessa
de ninguém
para ninguéns

terra desprometida
onde serei sempre
outra







domingo, 23 de agosto de 2020

Sobre domingos


 

Canta o pássaro como
noutros dias em que não ouves
o sol tem cheiro de café
sem pressa

as manhãs se demoram
nas leituras preguiçosas
as tardes se evaporam
em poesias e bolos formigueiro

a música do vizinho é sempre
aquela
chega a noite e a gata acorda
as roupas estão secas no varal

os que não gostam
são os mesmos
que não suportam

solidões e silêncios





sábado, 22 de agosto de 2020

Uma fotografia

 

         Anos 1980

A mulher agora se espanta
da menina de ombreiras

séria em seus dezesseis
o corte de cabelos a moda
bufante neon

as bochechas de lua
os dentes apertados
nada é feliz nesta foto

a não ser, talvez,
lá no fundo
a menina

na mulher que
em linhas mais finas,
sobreviveu



terça-feira, 18 de agosto de 2020

Vinte anos

 Ele não gosta deste dia, que há 20 anos é o meu dia preferido.

Posso entender, porque eu também sou avessa a comemorar aniversário, talvez seja genético ou pode ser culpa minha, já que a culpa é sempre da mãe.
Mas o fato é que, clichês à parte, o dia em que ele nasceu foi o dia em que eu nasci. Não só como mãe, mas como uma pessoa inteira, complexa, alguém capaz de amar além de qualquer limite, apesar de todas as minhas muitas limitações.
Hoje a gente se despede da nossa adolescência, vão-se os teens, estamos entrando na maravilhosa casa dos vinte, ele na vida, eu como aprendiz deste que foi, é, e sempre será, meu melhor professor.
Tenho muito orgulho do menino de olhos azuis, tão bonito, que cresceu comigo e apesar de mim, que tem um coração enorme, valores sólidos, uma inteligência emocional imbatível.
Eu nem ia escrever nada, só o poema. Mas, como ele mesmo disse outro dia, acho que duas décadas merecem um textão.
Então, vai mais um para a conta dos muitos que tenho escrito ao longo destes anos.
Para ele, que tem sido um baita parceiro de pandemia, com todas as nossas chatices, companheiro de séries, de indignação, de opiniões políticas e sociais, agora também de livros (para orgulho da mamãe).
Para ele que é forte, querido e resiliente de fazer inveja, desejo muita saúde, muito amor, muitas viagens e bons amigos, muito esporte, muitas alegrias, e que ele saiba sempre, como soube até agora, ser a melhor versão de si mesmo.
Sou grata pela tua vida, filho. Sem grandes comemorações, mas vamos celebrar, sim.
Feliz vinte anos!
Te amo para sempre.

Um menino
disse o médico
naquele tempo
as paredes
do quarto
as roupas
os olhos

vinte anos já
um homem
de barba
o susto mas
aqueles olhos
os mesmos
onde habita
ainda

pequenino
e azul
um menino

como só as mães podem ver






















quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Amores peludos

 



Dizem que o cão 
é o melhor 
amigo
uísque
de quatro patas

tenho um cão
e tenho uma gata
ela também tem
quatro patas

ele tem olhos de fome
e um amor escancarado
ama sem modos come
sem moderação

ela é graça e mistério
passeia entre as pernas
ronronando segredos
escolhendo a dedo
ama igual, mas disfarça

para ele estou sempre certa
já ela, me julga amiúde
é daquelas
me sussurra verdades
feito vinho, in vino veritas

nas noites pretas
e longas
no longo inverno
desta pandemia
são eles,
e não o álcool
minha melhor parceria

(exercício para a oficina de poesia)

sábado, 8 de agosto de 2020

Esquizofrenia




O mundo encolheu e está gravemente doente. 

Hoje li sobre a neve eterna que está derretendo, acho neve eterna tão bonito, tão poético, de um jeito concreto, alto, e abstrato, feito este conceito de eternidade que eu nunca escalei. 

Tem coisas que são feitas para durar, os picos e as cumieiras ( cumeeiras ) que nunca alcançamos, alguns poucos amores, dois ou três livros preferidos, a improvável tatuagem, a música e a poesia do Chico, Caetano, Gil. 

As memórias de afeto são como esta neve. O glacê das montanhas, que, podendo ser permanentes, ainda são passíveis de derretimento e degelo, em condições adversas e sob calor excessivo. 

Estou no plantão. Enquanto não chega um paciente, estudo, escrevo, leio sobre o ainda hipotético mundo pós pandemia, percorro as redes e vejo as lutas de sempre, inglórias e justas, na mesma medida. 

Descubro sem surpresa que o racista de camiseta azul, que ontem uniu direita e esquerda em merecidas notas de repúdio e indignação, sofre de uma doença mental. Esquizofrenia. 

Estamos todos, de certa forma, esquizofrênicos. Neste mundo encolhido, confinados entre as quatro paredes das nossas ideologias, lutando com moinhos, ouvindo vozes dissonantes, travando estas brigas tantas vezes inúteis, insanas, que só fazem aumentar temperaturas, derreter geleiras, causar inundações e aumentar a confusão. 

 Enquanto trabalho, estudo, me canso e sigo, desejo mais do que paciência e empatia, lucidez, sangue frio, discernimento. 

 Penso na paciente de ontem, para quem o ar está em falta há 15 dias, já. Eu a ajudei a subir um lance de escadas. " Virei uma velha, doutora. De uma hora para outra." 

 Ela tem 39 anos, e foi discriminada ao realizar um exame de imagem, porque tem o vírus, como se ter o vírus fosse assim, uma escolha. Ela, que trabalha num supermercado e vive numa casa pequena com mais cinco pessoas. 

Ela não foi a primeira. Vejo quem tem o vírus sendo discriminado até por quem fez o juramento de cuidar, curar, consolar. Lembro da descoberta do HIV e da Aids. (Faz tempo, e foi ontem.) 

Desde sempre, o preconceito. O preconceito, filho do medo, estas doenças para as quais ainda não descobrimos vacina nem remédio. Só há paliativos, e não são suficientes para amortizar tanta dor. 

O mundo encolheu na pandemia. Adoeceu. Está derretendo.

Termino esta crônica confusa, pensando no quão urgente precisamos de algo puro como a neve num pico de montanha. Algo que seja imutável, sólido, constante. Que não se dissolva. 

 E lembro do poema. 

 "É urgente o amor. 

 É urgente um barco no mar.

 É urgente destruir certas palavras, ódio, solidão e crueldade, alguns lamentos, muitas espadas.

É urgente inventar alegria, multiplicar os beijos, as searas, é urgente descobrir rosas e rios e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz impura, até doer.

É urgente o amor, é urgente permanecer." (Eugênio de Andrade)

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Uísque sem gelo





O apartamento abaixo
do nível do mar
uma janela com vista
para a calçada
os pés as canelas
os cães os dejetos
e o som de um violão
desafinado

 um homem canta
uma moça de pernas
cruzadas fuma
a música brota do chão
se insinua e sobe rouca
pelas grades de ferro
incenso
de quem não tem horizonte 

Daniela Altmayer