domingo, 12 de dezembro de 2021

Reflexões


 

Encostados à porta do tempo
resistimos
a força é inútil
tentativas em vão
podem atrasar adiar
mas não há
o que dê jeito

o poeta já cantava
o tempo não para
ninguém ou
nada impedirá
que ele passe

talvez seja essa
a beleza afinal

abrir a porta
deixar o tempo
passar
deixar o tempo dizer

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Caubói

Ana está radiante. Cercada de amigos e admiradores, a noite transcorre suave como a música do piano ao fundo. As taças de vinho branco, os canapés, o vestido de alças finas deixa à mostra os ombros bem torneados, a cabeça baixa esconde um sorriso, enquanto assina mais uma vez o nome no livro recém lançado. Ao longo da galeria, suas fotos em preto e branco enfeitam o cenário e contrastam com o colorido das flores recebidas. A fotografia premiada, em destaque, é alvo de todos os olhares, enquanto as filhas ajudam a mãe a organizar os autógrafos. Jorge se afasta um pouco, admirando a esposa em seu habitat, satisfeito porém entediado com as conversas amenas de artistas e intelectuais. O prefeito acaba de sair, com a namorada. A nata da sociedade comparece, em peso, como era de se esperar.

- As meninas estão lindas, meu chapa.

Essa voz. Jorge se volta para o homem de casaco de couro, barba mal feita, cabelos grisalhos e olhos verdes feito o diabo. 

- Que idade elas estão? 

As gêmeas acabaram de completar quinze anos, a festa que deram saiu na coluna social por uma semana, grande evento na pacata cidade serrana.

- Quinze... quinze... a idade da Neca... Lembra disso, Caubói?

- Fernandinho. Achei que você estava preso. Ou morto.

- Era o que tu queria, né Caubói? Dedo duro do caralho. 

O homem está visivelmente embriagado. 

- Fala aí, meu chapa. Tua mulher sabe quem tu é ? Ana, o nome dela, né? Comprei essa bosta de livro aqui só pra poder chegar perto. Vou lá pedir um autógrafo para a madame, que tu acha da gente bater um papinho, nós dois ao pé do ouvido? Eu e a Ana bacana?

Os olhos verdes faíscam. Jorge não responde, paralisado pelas lembranças há muito domesticadas.

- A Neca tinha quinze anos, seu puto. Igual àquelas duas bonecas ali, só que não. Só que não! Tu lembra, Caubói? Me diz.

- Você ainda fuma, Fernandinho? Vamos na rua um pouco. Vamos conversar.

Os dois saem para a varanda, acendem os cigarros.

- Tu ainda cheira?

- Não. 

- Claro que não, virou importante. Ouvi dizer que tu vai concorrer pra prefeito ano que vem, cansou de ser vice, tá metido nessa merda de política. Quem diria, Caubói.

Ô bonita, tu conhece o Caubói? Me dá mais um pouco desse vinho aí.

A garçonete enche a taça e se afasta.

Jorge pensa em chamar o segurança, mas desiste. Está quase na hora do discurso. 

- Essa porcaria de livro aqui, ó. Sabe pra que eu vou usar, pra limpar a bunda. Lá no inferno que tu me enfiou esse papel daqui é luxo.

- O que você veio fazer aqui, Fernandinho. O que você quer? Dinheiro?

- Era bonitinha a Neca, gostosinha, né seu filho da puta. Qual é meu preço? Quanto tu acha que vale o meu silêncio?

- Vamos nos encontrar amanhã, para negociar. Você me diz quanto quer, dinheiro não é problema. Te encontro no posto de gasolina da entrada, antes do pórtico. 

Fernandinho entorna o resto do vinho, tira a jaqueta. Os braços tatuados ainda são  musculosos. Dá um abraço em Jorge, e ri.

- Caubói, meu chapa. Em nome dos velhos tempos. Fica frio, não vou estragar a festinha da tua mulher. Tu engordou, meu parça. Tá com cara de rico, mesmo. Rico que não come mais ninguém, haha. Nos vemos amanhã, então. Leva a carteira, seu puto.

Caminha cambaleante em direção à saída. Jorge está suando. Acende outro cigarro. Amanhã vai resolver tudo, basta uma ligação e está feito. 

Ana chega na varanda.

- Vem, amor.

É  hora de agradecerem a presença de todos e falarem da festa beneficente de Natal. Chamam as meninas para perto, ficam os quatro no palco improvisado em frente à fotografia.

Começa a chover forte, a luz pisca e volta.

Jorge pega o microfone com as mãos trêmulas, um raio ilumina a porta de entrada da galeria.

Fernandinho está parado, com uma arma apontada para o segurança. Dispara um tiro à queima roupa, os convidados se deitam no chão. 

Ele se aproxima da família, os olhos verdes muito escuros. 

- Bonitona a patroa, meu velho. Tá explicado a genética das gurias.

Dá um tiro na Ana, que cai amparada pelo marido. O sangue espirra na foto premiada da parede. 

As gêmeas gritam. Ele agarra uma delas pelo cabelo, desce a mão no decote, rasga o vestido de crepe. Pega o microfone do chão, e fala, a voz embargada:

- Mudei de ideia, Caubói. Olha pra mim. Isso. Vamos animar esta festa, companheiro. Vai ser uma, depois a outra.

Exercício para a oficina de escrita: o personagem agente do caos.