domingo, 22 de abril de 2018

Os nós invisíveis



Em todos os olhos existe um ponto cego onde a luz não consegue entrar.
Eu temo a cegueira total, mais ainda do que essa ausência de lágrimas que me corrói.
Eu, que já quase não sei chorar.
A poeira dos anos embaça meu olhar, embora a dor do mundo encontre cada vez mais espaço no meu peito, na dor que é também a minha.
Em cada ser eu me reconheço, mendiga.
Meus olhos estão secos, mas de olhos fechados ainda consigo ver o homem sentado na calçada, cão sem dono.
A solidão tem quatro patas e uma cor suja indefinida, um rabo que balança em vão, uma pergunta sem resposta.
Até onde se pode enxergar, a vista que a vida não alcança?
Somos todos esse homem ao relento. Eu sou.
O cachorro fiel abandonado que sequer ousa sonhar com a carne
Para quem um osso apenas bastaria.
Quiçá um olhar mais demorado.
Ainda que turvo e embotado pela poeira acumulada, pelo desengano lento.
Pelo cansaço extremo destes dias.

Daniela Altmayer



domingo, 8 de abril de 2018

apartamento 401



É para molhar as plantas também. Dar comida para os gatos, limpar a caixa de areia e molhar as plantas. Espero que não sejam muitas, nunca fui boa nessa coisa de cuidar de bicho ou de planta.
- Estou no lugar da Cristine- digo para o homem sonolento na portaria. 
É sábado e cai uma chuva fina na Porto Alegre deserta de fevereiro. A televisão pequena mostra os melhores momentos do desfile de São Paulo. Vi ontem, no hospital. Estou com saudade da minha cidade, da minha casa.
O elevador tem espelho por todos os lados, aquela luz branca que não mente. O reflexo me devolve uma mulher cansada, virada em olheira, cabelos sem cor. A mãe não gostou muito de ficar sozinha, mas no fim é bom ter uma desculpa para sair do hospital, além da grana extra. Não imaginava que minha amiga ganhasse tão bem com este serviço. Ela cuida dos gatos quando os donos viajam. Das plantas, quando precisam. Passeia com cachorros, essas coisas. Não daria para fazer isso em São Paulo, eu acho.
Entro no apartamento, a sala está na penumbra, vou direto para a sacada onde fica a caixa de areia. A sacada dá vista para uma praça meio suja. Todas as praças estão sujas em Porto Alegre. 
Nem sinal dos gatos, a caixa tem cocô e um cheiro forte de urina. Troco a areia, encho os potes com comida, água não precisa- tem uma fonte no canto. 
Vou até a cozinha buscar a chaleira para molhar as plantas, são muitas. O apartamento é grande, acolhedor. No aparador perto da porta, vários porta-retratos e um gato preto que me olha desconfiado. Ele derruba uma das fotos no chão, pego para botar de volta. O vidro está lascado. Examino os retratos das viagens, o casal abraçado, sorridente. A família, os amigos. Os filhos. A neta, bebê. Os quinze anos da menina. (Já faz tanto tempo?) 
O gato preto se enrosca nas minhas pernas, nem sinal do outro. Espio os livros nas estantes, pego um ao acaso, cheiro e devolvo. Procuro na bolsa o caderninho com as anotações, meus dedos tremem.
"Apartamento 401- dois gatos, algumas plantas. Viúva, mora sozinha."
O quarto é pequeno, perfumado. O gato branco dorme na cama de casal. Na mesa de cabeceira, sua fotografia em tamanho ampliado. Não mudou nada, o mesmo olhar de homem sério, o mesmo sorriso de menino inquieto, o cabelo macio.
Meu celular vibra, preciso voltar para o hospital. 
Preciso voltar para casa.
Dou uma última olhada nos retratos, a vida de lembranças emolduradas. A mulher é bonita, vocês todos são. Eram. Felizes.

Algum tempo depois, ajudando minha mãe com a sopa, lembro que não molhei as flores. Nunca fui boa, mesmo. Com essa coisa de cuidar de bicho e de planta.
Ou de gente.

Daniela Altmayer


domingo, 1 de abril de 2018

Por aí




Domingo de Páscoa. Estou na calçada sozinha, olhando a chuva perdida em meus pensamentos. 
Ela vem toda magrinha, de vestido roxo, quase não tem cabelo, dentes tem poucos. Se apresenta como a moradora de rua mais bonita e educada da Cidade Baixa, diz seu nome: Luísa?
Estende a mão cheia de anéis para apertar a minha, fala que dorme embaixo do viaduto, tem 43 anos e está grávida do primeiro filho. Acaricia com orgulho a barriga pequena.
Pede dinheiro para comprar um sorvete, abriu uma sorveteria nova ali perto e ela sabe que grávida tem desejos que não podem ser negados.
" Olha, só de falar minha boca enche de água ".
Dou o dinheiro a ela, que agradece com um sorriso luminoso sem falhas. 
Se despede dizendo que meus olhos são bonitos, que eu sou bonita. 
Digo que quem é bonita é ela.
Mas isso ela já sabe: é bonita e muito bem educada.

Dani


💜