domingo, 8 de dezembro de 2013

Carta para o Hugo

Faz muito tempo que ele se foi. Quase trinta anos. Quando passa tanto tempo assim, não dá para confiar muito na história. Ela vira memória, e memória é afeto. Edita a história. E esta é a história que vou te contar. São pedaços do meu amor que entraram na história. Algumas coisas são reais. Outras, posso ter inventado. Memória inventa história. Amor também. E tudo bem.
Então, era uma vez um homem chamado Hugo. Como você, ou quase. João Hugo era o seu nome.
Ele tinha um cheiro bom. Cheiro de tabaco e de mar. Fumo de cachimbo, marinheiro que era. Um velho homem do mar. Aquele homem chamado Hugo amava o mar, e as coisas do mar, e da água. Assim como a sua avó, filha dele. Ele era meu avô. Avô do seu pai. Seu bisavô.
Ele me ensinou muitas coisas.
Com ele aprendi a amar o mar e as coisas do mar. A gostar de navegar.
Foi ele quem me ensinou a nadar. A respirar dentro da água. Ele jogava a gente do barco, sem pena. E mandava a gente fazer bolhas. "Fecha o nariz, solta o ar pela boca." E te joga, sem frescura. Ele não tinha muita paciência para frescuras. Ele me ensinou a me jogar, enfrentando o medo.
Foi ele quem me ensinou a comer risoto de frango com bolachinha picada, de água e sal. Faço isso até hoje, e a tradição já passou para a próxima geração. Ele fazia o melhor risoto do mundo, o risoto do barco do vô. Se tem coisa que memória não esquece é gosto, e cheiro, pequeno Hugo. Fico com água na boca só de lembrar.
Ele me ensinou a amar o mar, os ventos, as velas, os céus infinitos, sua imprevisão. A gostar de risoto com bolacha, e outras coisas simples, assim.
Ele tentou me ensinar a jogar tênis. Não teve lá muito sucesso, vou pular esta parte. Mas me ensinou a gostar de esporte. Ele jogava, muito bem. Sua avó também.
Ele nos levava para longos passeios de bicicleta pela cidade de Rio Grande. Íamos a lugares impensados. Um bando de netos, e seu capitão. Hoje, quando pedalo, levo um pouco dele comigo.
Com ele brincávamos de escalar. Ele subia as dunas de areia da Quitéria, com todos os netos amarrados por uma corda. Ele ensinou que a união faz a força. Que a subida é dura, mas  que lá em cima é sempre muito bonito. Toda subida vale a pena. Depois, escorregávamos pelas dunas, rolando, morrendo de rir. E aprendemos que, para baixo, todo santo ajuda.
Ainda na Quitéria, fazíamos trilhas pelo meio do mato, e sempre, todas as vezes, ele perguntava: "vamos complicar?" E  se metia nos lugares mais difíceis, com sua faca, ou canivete, não lembro. Ia desbravando caminhos. Ele me ensinou que a vida  muitas vezes, é a gente que complica. Que há sempre um jeito. Ele mostrou que, se não há uma passagem, a gente inventa. Nossas estradas, a gente é quem abre.
Você tem o nome dele. É uma homenagem bonita. Ele era um homem bonito. Um homem forte, um pouco duro. Como os homens do mar. Mas tinha um coração de manteiga. Você pode achar estranho, é que os homens são assim, na nossa família. É só a casca, eu acho, que é grossa, de tanto suor, sal, e sol.
Ele tinha voz de trovão, e eu tinha um pouco de medo. Mas eu o amava, porque o amor é deste jeito mesmo, às vezes amamos com medo.
Ele tinha um abraço forte, e uma risada rouca. Olhava bem dentro do olho da gente, com aquele olho azul que nunca mais vi igual. Em nenhum dos filhos, netos, e bisnetos, mesmo os de olhos azuis, aquele azul se repetiu. Era turquesa, sabe? Da cor do mar de algum lugar, muito distante. De um lugar que nunca visitei. De um lugar do qual tenho saudade. 
A pior saudade é daquilo que não vivemos, é a que mais dói. Você saberá disso, um dia. Talvez até já saiba. Você já deve saber, eu sei.
Aí, tudo o que a gente tem é a história que nos contam. E tudo bem, também. Não importa o tempo, saudade ainda é memória. E são sempre os pedaços de afeto que inventam as melhores histórias.

Com amor, da tua prima
 Dani Altmayer




10 comentários:

  1. Obrigada Dani por me fazer chorar de saudades daquilo que muito vivi.Com certeza foi um homem inesquecivel para muitos.Nao consigo mais escrever pois nao vejo o teclado.Obrigada mais uma vez.Recebe um beijao meio congelado de amor e gratidao neste frio inverno que estamos vivendo.Em alguns momentos aas lagrimas correm mas congelam como se nao tivessem o direito de escorrer e cair no buraco de nossos coracoes despedacados.Com carinho tia suzy

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  2. Hoje é o dia da minha formatura como fonoaudiologa em Santa Maria RS....ja faz algum tempo e amanha e considerado o dia do Fonoaudiologo.Valeu meu pai pelo incentivo desta minha carreira.suzy

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  3. O lindo quadro foi bordado por minha cunhada Eileen,para o consultorio do DR.Joao Hugo na Conde de Porto Alegre 360.

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  4. Que bonito, como sempre. Fiquei presa no texto, saboreando. Bj

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  5. Que testemunho lindo da união que faz a força dessa família linda. O Hugo já é muito amado, e seu texto vai ajudar a fortalecê-lo quando ele puder entender.

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  6. Quem não se emociona lendo isto?... e quem anda pelo mar sente as lágrimas mais salgadas...

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  7. Eu já não lembrava do "vamos complicar", mas agora que li, é como se estivesse ouvindo ele dizer de novo. Beijão, prima.

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  8. eu também, não lembrava mais,do "vamos complicar" a Dani sempre teve a melhor memória. Mas lembrei na hora que li! Lembro também das longas caminhadas com ele,pela cidade, em que dávamos as mãos para atravessar as ruas e ao chegar do outro lado na calçada todos batíamos as mãos uma na outra, como para limpá-las! Achávamos isso MUITO engraçado...isto a Dani não lembrou!! ;-)

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  9. Eu nem acreditei quando li... mas Graças a Deus pude desfrutar de alguns dos passeios de sabado a tarde... e "vamos complicar"... bjos bjos...

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