quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Poeminha



não usa tua régua para
medir minha vida
não existo em linha reta
sou antes curva e desvio
côncava
e complexa

Daniela Altmayer

domingo, 28 de outubro de 2018

O amor que nos mantém



Ele tem quase setenta anos. Ela tem 93.
Mãe e filho, nomes parecidos, consultam todo mês em busca da receita de medicação controlada. Ele tem epilepsia e um retardo mental leve mais um diagnóstico de esquizofrenia. Moram juntos, só os dois.
Ela é magrinha, franzina, tem uma força que nunca vi, é muito lúcida e um pouco surda. Ele é alto, bastante acima do peso, e sempre que os encontro eu lembro daquela personagem do Jô Soares, que dizia: "e pensar que eu saí de dentro dela."
A gente conversa um pouco na consulta, ela gosta de mim e eu dela, eu sempre falo aos gritos, tenho medo que os pacientes na sala de espera achem que estou brigando, ela escuta muito mal, me diz todas as vezes que não é fácil, que é tudo com ela, que se não fosse ela. Eu faço que sim, abraço seu corpo mirrado, aperto a mão dele, são muito gentis.
Todo mês quando eles se vão, meu coração se aperta por aquela mãe tão dedicada, tão sofrida e por aquele filho de cabelos brancos tão grande e indefeso. E se não fosse ela, penso sempre. E quando não for. Um dia não será.
Na última consulta, esta semana, estávamos conversando quando ela olhou para ele e gritou que ele ia convulsionar. Pulei da cadeira e me pus atrás dele, segurando a cabeça enquanto ele se contorcia e esticava, e virava os olhos, e ela repetia, em desespero, meu filho, meu amor, meu filho.
Ela não sabia se ele tinha tomado os remédios, achava que não. Não havia o que fazer ali, no consultório que não é emergência nem hospital. Mantive a calma por nós duas. Durou alguns minutos e passou, ele caiu então num sono sem dor e ela, com dor, se aquietou aos poucos. Quando eles foram embora eu chorei mais uma vez.
Não havia mais nada a fazer, se não esperar e suportar.
Nada a fazer a não ser proteger a cabeça. Tem hora que é isso mesmo.
É segurar nos braços como dá, um corpo em convulsão, para evitar que ele se machuque. Sabendo que tudo passa e que a força do amor é o que nos mantém vivos, apesar de tudo.

Nada a fazer senão esquecer o medo.

Daniela Altmayer



sexta-feira, 26 de outubro de 2018

As coisas do Tobias



Eu conheci o Tobias na oficina de escrita. Ele tinha dezenove anos e uns olhos bonitos, de um castanho cheio de doçura, sentava na minha frente na sala da velha livraria, e sempre que ele lia um conto me causava enorme espanto, pensava como pode, alguém tão jovem escrever desse jeito? Tão forte, tão maduro, com tamanha sensibilidade? Era como se ele entendesse o mundo de uma forma que pouca gente velha consegue, como se fosse uma alma antiga e gorda (e sábia) habitando o corpo de um guri magrinho, com aquela fragilidade aparente, muito enganosa. Eu me apaixonei primeiro pelas histórias que ele contava, que ele lia com aquele jeito tímido e seguro, pelo sorriso fácil, depois eu o amei para sempre, entre cafés, cervejas, filmes, livros e corações partidos e compartilhados.
Ganhei As coisas antes de As coisas ganhar o prêmio SESC de literatura. Comecei a ler antes de saber do resultado, por isso posso me exibir dizendo aquela frase clássica, porém verdadeira: eu já sabia. E disse isso pro Tobias. É um livro forte, emocionante, que te envolve desde a primeira linha.
Quando ele me ligou para contar o resultado, era um dia ruim para mim, mas eu senti uma felicidade tão grande que ela apagou todas as coisas ruins que estavam na minha cabeça, só conseguia pensar no quanto ele mereceu, merece, porque eu conheço bastante gente que escreve, e que escreve muito bem, mas o Tobias, ele tem uma coisa diferente. Acho que ele nasceu escritor, sabe?
As coisas é seu livro de estreia, é um belo livro, o livro que faltava, nas palavras dele, histórias sobre essas relações que existem, um livro necessário.
É sobre o universo homossexual sim, mas é muito além disso, é humano ao extremo, profundo, tocante. Eu arriscaria dizer que é um livro sobre busca, sobre a busca da aceitação e amor, busca essa que é minha, dele, sua, que é universal.
São 25 contos, e juro, um melhor que o o outro.
Cantiga de roda, bah, que conto forte, surpreendente, O pai, dolorido e verdadeiro, Jung, que tem o melhor final que já vi, 99 do qual vou citar aqui um trecho que amei : "as palavras me feriram e me aqueceram, me deixaram com vontade de cobrir ele de socos ou cafunés, ou apenas enfiar minha cabeça mais fundo nos travesseiros.(...) E enquanto pegava o celular para chamar o 99, pensei que não era a primeira vez que terminava as coisas antes de elas começarem."
Difícil escolher um conto preferido, e este é o mérito do livro, do autor, tu vai lendo, e vai se envolvendo com as histórias, sentindo as dores, os gozos, os desenganos, se encontrando e desencontrando a cada tanto, e quando termina tu já quer ler de novo, e sublinhar as partes preferidas, as frases geniais e simples ao mesmo tempo, como a que descreve um cara muito bonito como "o rosto de quem vivia dentro de um Instagram sem fotos ruins."
Termino com o trecho de um dos contos mais tristes e lindos do livro, Água:
"Amar sobrecarrega, nem bom nem ruim, um tudo que compreende o mundo inteiro, corroendo, viciando, impossível que não. Não existe nada que traga tanta destruição, ou que pelo menos, dissolva tanto os outros sentimentos. O ruim e o bom do amor é que ele inunda."
O bom do livro do Tobias é que ele transborda.

É só o começo, mas uma baita estreia.

Daniela Altmayer



terça-feira, 23 de outubro de 2018

Dolores



de um tempo onde
ainda
se escolhiam feijões

ela assava aqueles bolos fofos
que hoje chamam
mármore
enrolava brigadeiros
na manteiga
inventava aniversários
de cachorro e de boneca

de um tempo em que as tardes
ainda
eram lentas

a cozinha cheirava a histórias
da infância na roça
dos namoros de menina
as fofocas da família
dos vizinhos dos artistas
conversa jogada fora

de um tempo onde
ainda
se batiam os bifes

a risada dela ecoava
com a fumaça do cigarro
o aroma da pipoca na panela
o café na caneca lascada
um afago distraído numa torta

de um tempo em que
a mesa
estava sempre posta

ela ligava o rádio
o Benito o Erasmo
o Roberto o Emílio
a música sabíamos de cor
naquele tempo
em que as canções de amor
ainda não eram bregas

antes do sol se por
o fogão brilhava
  não entra agora menina
  não me molha essa pia
  o chão está molhado
  espera o chão secar

de um tempo em que
ainda se cultivavam afetos
e vasos de samambaia

a mão dela na minha
áspera firme gentil
cheirando a cebola e a cloro
ainda segura com força
a fome da minha infância

Daniela Altmayer
(exercício para a oficina de poesia. Era para ser sem desvio lírico, mas...)







domingo, 21 de outubro de 2018

a uma nova cidade



a uma cidade nova
se deve chegar em dias claros
para conhecê-la fresca

nas manhãs
de banhos tomados
de caras lavadas
café e roupas passados

na nova cidade
de ruas recém acordadas
o riso da mulher
o canto de uma criança
algum pássaro inocente


o som dos passos
despertando as vitrines
as cortinas abertas
escancarando o azul

não se deve chegar
quando anoitece
hora dos maiores enganos
a uma cidade nova

sua gente apressada
as caras amassadas
os carros cansados

as calçadas vazias

algumas luzes acesas
as janelas cerrando
a ilusão de sombras
cores sonhos
artificiais

o crepúsculo tem o véu
místico da cigana
com suas brumas
seus becos escuros
evocam mistérios
de uísque 
e melancolia


Daniela Altmayer
( texto para oficina de poesia- desvio lírico)

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Clarice






a mãe sifilítica

concebida na esperança
da cura que nunca veio
a menina se culpa

resistem as feridas
dessas que não fecham
uma vida inteira

são heranças malditas
de onde se foge mas
não existem refúgios


a estrangeira

os olhos oblíquos
castanhos
verdes azuis

vive aqui mas
não

parte dela
está sempre além
além mar
além si


 fogo no Leme

a máquina de escrever
mais uma folha arrancada

o dia nublado e quente
anuncia chuvas de verão
abre a janela para fumar

a maresia invade a sala
chega ao quarto
deita na cama desfeita


o cigarro escapa aceso
da mão, do cinzeiro
abarrotado
de baganas e manchas
de batom

uma ponta vermelha
indecente
cai num silêncio lento
sobre o tapete branco

lá fora
o mar agita-se
estão de ressaca
ela e o mar

Daniela Altmayer


Tema para a oficina de poesia, escrever três poemas sobre uma personalidade.
( Profético- não consegui, transcendental e terreno)
Nota 2/3










terça-feira, 2 de outubro de 2018

a mulher da madrugada





ao pé da escada
no escuro
uma mulher espera

embriagada

a mulher sou eu
o homem
tem nome

mas nao é um homem

vadia puta piranha
esse vestido
cabelo unha
essa cor

mulher que bebe
fuma chora
não presta

essa mulher
que fala
não serve

passos distantes
duros indiferentes
às lagrimas e
ao concreto frio

às pernas abertas

a porta fechada
não a primeira
nem a última

Daniela Altmayer
(tema para a oficina de poesia: pensar numa situação de abandono)