domingo, 30 de outubro de 2016

Tempo de acasalamento



É como houvesse uma roda girando no sentido oposto ao que ando.
Uma imensa roda cuja força não me atrevo a medir, desvio. 
Ando cansada, os passos nem sempre me alcançam.
Um simples tropeço eu caio. 
No centro desta roda, não há nada além de vazio. 
Na escuridão da ausência, nem pensamento nem dor.
Como haveria um céu inverso de ser.
Um esquecimento morno quase apagando seu rosto. 
Que nome agora te darei?
Em algum lugar o sol brilha, há uma árvore que não vejo.
Pois há ali um pássaro que ouço.
Ele canta alto um canto bonito e triste, chamando a fêmea no cio.
Triste também ela vem.
A cumprir seu destino de ser sem saber.
É primavera fora do centro.
E a roda gira, roda forte.
Para um lado sempre contrário ao meu.

Dani Altmayer

(Porque hoje um beija-flor apareceu na minha janela, perdido. Como eu.)

domingo, 23 de outubro de 2016

Coragem (desde que não voe)



Eu tenho pavor de barata, rato e lesma.
Há muito tempo, eu ainda era casada, morava em um apartamento térreo com uma área onde tinha um pequeno jardim. Uma noite eu estava sozinha, sentada na rua e vi uma lesma subindo a parede. Ela ia em direção à janela da cozinha. Entrei em pânico e liguei para o meu então marido que jantava com o irmão, e eles riram muito. Riram muito, mas eu não. O assunto era sério. Então eles pararam de rir e me disseram que se jogasse sal no molusco, ele desidrataria e morreria.
Peguei o sal, mas como não tinha coragem de me aproximar, comecei a jogar de longe. 
Foi uma cena ridícula, desnecessário dizer. A lesma foi perdendo pedaços, mas não morreu. Acho que não consegui acertar seu coração mole, e ela continuou subindo a parede, deixando um traço gosmento e asqueroso pelo caminho. Entrei em casa e fechei a janela e as portas. No outro dia fui ao mercado, e comprei um veneno.
Tempos depois, já morando sozinha com meu filho, uma barata apareceu no banheiro. Ele devia ter uns oito anos e tentei explicar a importância de se saber matar uma barata para o futuro amoroso dele. Ele não me deu ouvidos, e eu resolvi jogar álcool de longe, sempre de longe (ela estava no balcão da pia, horror dos horrores). Acho que ficou bêbada, mas não morreu. Caiu no chão meio tonta, e não teve jeito. Precisei pegar o chinelo e matá-la sozinha. Depois ainda tive que me livrar do corpo. Desde então tenho sempre um inseticida à mão, e não deixo as iscas vencerem, por garantia. Como se garantia houvesse.
Não sei porque lembrei desses fatos hoje, talvez porque no dia da chuvarada tenha aparecido uma barata morta na cozinha e eu não tenha gritado, nem pedido socorro. Fiquei muito calma, e agi como deveria. O fato de ela estar morta ajudou, não posso negar. Peguei um papel toalha e dei fim ao cadáver com uma naturalidade surpreendente.
Enfim, e daí, né?
Bom, tenho a estranha e irritante mania de achar moral nas histórias que voltam à minha cabeça, assim, do nada. Então vamos lá. Só posso concluir duas coisas óbvias. 
Uma, que a dor ensina a gemer. Traduzindo: se só tem tu, vai tu mesmo.
A outra é que se tem que se matar algo, e às vezes é preciso, que se mate direito. Respira fundo e mete o peito, mesmo com medo. Para não sobrar restos nojentos, partes pegajosas, pedaços disformes. Nada de matar aos poucos, lentamente. 
Por compaixão por quem vai, também, e por precisão de quem fica para limpar a sujeira, depois.
Nada mais digno do que uma morte digna, afinal.

Dani Altmayer

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Lado A



Eu sempre olho para ver se está arranhado. Não estava, tenho certeza.
Eu gasto toda a minha mesada com discos. Este eu tinha encomendado há três meses, e foi bem caro porque era importado. Minha mãe fica louca comigo porque passo horas no quarto ouvindo música e comendo bolacha recheada com coca- cola, ela queria que eu lesse um livro ou fizesse algum esporte mas sou meio cansado para isso. E muito magro. Ninguém nunca me quer em nenhum time de qualquer jeito. Ótimo, gosto mesmo é de ficar no escuro do quarto, olhando o teto cheio daquelas estrelinhas idiotas que a minha irmã colou quando ainda morava aqui.
Não estava arranhado, tenho certeza, e eu não tinha fumado nem nada, o pai e a mãe estavam em casa até. Era cedo, também, mas chovia muito e o dia tinha escurecido rápido. Não foi um sonho, porque meus sonhos não são esquisitos nem assustadores, são sempre os mesmos, pelo menos até onde eu lembro deles. Sonho com a Tina, ou algo a ver com a escola, às vezes com meu pai.
Aquele disco era uma raridade, custou duas mesadas e meia, não que eu tenha juntado esse dinheiro, sou ruim de juntar grana, mas ganhei da vó de aniversário. O Juca mandou buscar três, um para ele, outro para aquele tiozão que está sempre na loja de disco, e outro para mim. Eu converso muito sobre música com o Juca, ele sabe tudo do que está rolando lá fora, lê aquela revistas todas, já morou na Inglaterra. O Juca é um pouco hippie, ainda. Bem legal. Como meu pai era antes de casar, usava umas blusas curtinhas e aquelas calças estranhas e o cabelo comprido, eu tenho certeza que meu pai fumava maconha só que nunca vai confessar. O Juca fuma direto, mas nunca me deu, nem adiantava eu pedir, diz que eu sou muito criança ainda. Ele nem sabe que eu já fumei umas três vezes com uns caras do último ano que tem uma banda de rock pesado. Eles eram meio punks antes e eu achava a banda bem boa. Problema é que agora eles só tocam Legião e Paralamas (eca), que é o que as gurias pedem e eles querem que as gurias peçam, ficou um saco.
Bom, mas naquele dia eu não tinha fumado, nem bebido, nem sonhado. O disco não estava arranhado, nem nada. Eu só sei que foi muito estranho, muito, na hora parecia que uma estrela daquelas ia cair na minha cabeça, acho que eu gritei alto porque o pai veio correndo, acendendo a luz. Não falei nada para ele, só fiquei olhando. O disco se desligou sozinho, ou o quê, e eu não conseguia me mexer, fiquei olhando para ele, ele olhando para mim. Passei uns dias sem conseguir falar, de olhos arregalados, tive febre, me levaram no hospital. Os médicos fizeram um monte de exame de sangue, não deu nada. Depois de uma semana, sei lá, a voz voltou, do nada, e consegui fechar o olho.
Não contei para o Juca, podia ter perguntado para ele, mas fiquei com medo que ele dissesse que eu estava louco, e o tio da loja que tinha o outro, parece que se mudou para a Califórnia, e eu não conheço mais ninguém que tenha o álbum. Acho que nem lançaram no Brasil, não duvido.
Não tive coragem de quebrar, ia jogar fora, mas o disco sumiu. Perguntei para todo mundo em casa, ninguém sabia de disco nenhum com aquela capa. Nunca ouvi o lado B. Parei de ouvir música por um tempo. Também não fico mais de luz apagada sozinho e pedi para a mãe pintar o forro do quarto, tirar aquela babaquice de lá.
De vez em quando toca uma música deles no rádio, outro dia deu um clip no Fantástico, mas nunca é aquela. Tento não pensar muito nisso, só que fico pensando quase o tempo todo. Na estrela, no som. Se alguém mais ouviu. E se ouviu, se mais alguém sabe o que eu sei.
Hoje vou no cinema com a Tina pela primeira vez, vamos ver Sexta-feira 13 número mil, um saco. Eu acho. Mas ela ama. Adora filme de terror.
Eu não. Eu vivo em um.

Dani Altmayer

(exercício para a oficina de escrita, adolescente de 14 anos compra um disco de sua banda preferida, e tem uma surpresa, algo inesperado acontece em uma das faixas, que não pode ser contado).

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Bleu




Ela chegou na minha vida de peruca e turbante, cheia de estilo, de salto altíssimo e pisada forte, estremecendo as vigas da velha escada de madeira da livraria. Por muito mais tempo do que deveria, estivemos separadas por várias cadeiras e um certo estranhamento, quem era essa mulher?, unidas apenas pelas narrativas de nossos textos iniciantes. Ela, sempre atrasada.
Um dia (uma noite), por um desses erros que dão muito certo, nos aproximamos e começamos a conversar. Foi quando nos conhecemos de verdade, para muito além daqueles textos que compartilhamos, e pudemos dividir histórias e dores, amores e alegrias, encontramos um cantinho no coração e na vida uma da outra, cantinho esse que só fez crescer ao longo desses dois anos. Os cabelos dela também cresceram, junto com minha admiração. Ela é meu exemplo de força e delicadeza, ela é pura superação e máxima inteligência e sensibilidade. Meu sinônimo de resiliência. Linda, por dentro e por fora, porém sempre atrasada.
Demorou demais para chegar. Eu acho.
Não somos duas, no entanto, e peço licença para falar pela Fernanda, que já sentava ao meu lado, quando nos tornamos três. Formamos um trio, no melhor ménage à trois sem sexo que pode haver. Entre cafés e sanduíches, vinhos e cervejas fortes ( muito fortes!!!), cinemas e shows, ideias de feminismo e conversas malucas, choros e risadas, tarot e trocadilhos infames, fora inúmeras mensagens de whatsapp, construímos um amor gigante, único, especial. Uma amizade que, aliás, é o melhor tipo de amor que eu conheço. Sem medo de ser piegas, e sendo deveras. São mais duas irmãs que a vida me deu de presente junto com a literatura, embrulhadas no mais brilhante pacote do mundo.
Agora, a que estava sempre atrasada está de malas prontas para partir. Vai voar em busca da mulher que ela (já) é, para viver a vida que ela merece ter. Duas de nós vão ficar. Torcendo muito.
Todo mundo vai chorar, despedida é uma merda. Meu coração está apertado de tanta saudade antecipada. Mas ninguém vai dizer adeus, nem poderia. Não se pode partir de um pedaço da gente. Vamos juntas, e ficamos juntas, tá? Para sempre.
Ela demorou demais para chegar, mesmo, mas chegou forte, arrasando no salto, e se veio, foi porque era para ficar.
E essa história só vai mudar de cenário, não vai acabar.
À bientôt ...
<3 span="">

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Tylenol para dor, Rivotril para humor



Mais uma de consultório:

Não conseguiu consulta com o psiquiatra e veio renovar a receita do Rivotril.
- Pode colocar 3 caixas?
Eu só prescrevo uma, e explico para ela.
- Tudo bem, não tomo muito mesmo. Só quando fico triste, ou me emociono com alguma coisa, tipo uma propaganda bonita, um filme.
- Mas não é bom se emocionar?
- Ah, não, doutora. Essa não sou eu, imagina... Ficar chorando por qualquer coisa.
....
Pausa para reflexão
....
....

Só mais um instantinho.

Dani Altmayer

sábado, 15 de outubro de 2016

Olhar

Na lentidão da tartaruga o sábado se arrasta ao sol. Um bem te vi que não me vê acompanha meu divagar, depois voa e grita.Também eu queria voar. O reflexo no lago mostra um mundo de cabeça para baixo. A árvore busca, como o resto de nós, o céu de azul infinito. Um quero-quero vigia os horizontes que eu já não vejo.
A flor que brota na pedra fala baixinho, que a vida é sempre mais bonita pelo olhar da poesia.
Não é preciso nem ser poeta. Basta andar devagar, vez em quando.

Dani Altmayer (fotos e texto)






segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Sobrevoo





Da lagarta lenta, uma profunda metamorfose.
Frágil beleza de vida curta.
A ela só resta, como bem ao resto de nós,
Voar cada dia.
Todo voo é como fosse o último.
E ao restar assim, o último se demora, infinito.
Agradecida por ser livre, e restante
Ela fecha os olhos para prolongar a ilusão.
Para tão só viver, neste instante derradeiro,
Uma única e verdadeira vez.

Dani Altmayer

domingo, 2 de outubro de 2016

Dois de outubro



O céu muito claro dessa manhã de domingo confirma a primavera que sopra, numa brisa morna quase vento. É dia de eleição. Faz silêncio na avenida à beira do rio. Dá para ouvir as rodas das bicicletas girando, algumas conversas suaves, o motor de uma lancha ao longe. Nenhum carro e pouca gente. Na grama, meia dúzia de jovens montam o que parece vai ser uma festa com som. Dois idosos tomam mate em um banco na frente do museu, um deles tira a camisa. Uma mulher medita na pedra e tem as unhas azuis. Todos oferecem seus rostos ao sol.
Um menino vestido de branco é batizado nas águas sujas do rio por pessoas também vestidas de branco. Pais orgulhosos passam carregando filhos inquietos em seus bagageiros. Muitos caminham, muitos correm. Alguns jogam futebol de várzea, tem quem assiste. Uma senhora bonitona patina, de capacete cor de rosa. Três meninas voam, de skate. Sem capacete. Um homem fuma sozinho contra o muro cinza.
A mulher de unhas azuis fotografa uma ou outra coisa, tentando registrar a crônica dessa manhã silenciosa. Igual a tantas outras, assim diferente. Uma manhã onde a calma se derrama na avenida como um sorriso ensolarado, num daqueles raros momentos em que se estar vivo basta. E não dói.

Dani Altmayer



.