sábado, 27 de dezembro de 2014

Novo Ano Novo


Um dia ele não mais virá.
Mas enquanto ele vem, aproveite.
Chore até secar, ria até a barriga doer, dance até o amanhecer.
Respire. Inspire, inspire-se.
Bote para fora, da casa e da vida, tudo o que não te faz vibrar.
Silencie e grite.
Tudo o que te faz doer.
Abrace, se afaste, ame muito, faça muito amor.
Faça amor, por favor.
Acredite e duvide, sempre e ao mesmo tempo.
Não tenha certezas, são as dúvidas que nos comovem.
Peça, despeça-se, deseje.
São os desejos que nos movem.
Deixa sempre uma chama acesa, por menor que seja.
Encha de beijos quem você ama. Aceite, deleite-se.
Corra riscos, em nome do amor.
Procura tua paz, seja onde for.
Distribua sorrisos, palavras doces ao vento, diga sempre obrigada.
Para as surpresas, boas e ruins.
Para tudo que vem.
Exercite seu corpo, e sua tolerância.
Curta as longas tardes de verão, as noites curtas de sonhos.
Receba, de braços abertos, a benção imensa que é poder sentir muito.
E sentir tanto. E sentir tudo.
Pule sete ondas, e faça uma prece.
Agradece, agradece muito. Agradecer te engrandece.
Enquanto ele ainda vem. E quando ele vem.
Na alegria, e na tristeza. Na saúde, e na doença.
Até que a morte nos separe, ou impeça.
É sempre outra chance.
Na pele nova de um ano novo.
Celebra tua vida.
Essa esperança meio boba, que sempre se renova.
E sempre, invariavelmente, te amanhece.

Dani Altmayer


quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Viva a impermanência




Se a vida fosse mesmo um quebra cabeças gigante, seria um presente que ganhamos sem a caixa.
Não vem com o modelo, nem com as regras para copiar.
E, ou não vem com todas as peças, ou é a gente que as perde com o tempo, sei lá.
O meu, a minha, é cheia de buracos, está sempre faltando pedaços, sobrando saudades, desejos, vontades.
Talvez porque eu não saiba guardar, ou cuidar.
Quando completo uma parte, vem sempre alguém ou um vento, e espalha tudo, desfaz o trabalho, e é de novo a hora de reconstruir.
Quando a gente pensa, ufa, está pronto, não, nunca está.
Se a vida fosse um castelo, minha casa seria de areia, e não de tijolos.
Tijolos constroem muros, prisões, e aparam os ventos, mas não furacões.
A areia se pode moldar.
Mesmo se uma criança destruir, ou uma onda levar.
Deixa, isso é poesia… a criança a sorrir.
A maré a subir… a baixar.
É a vida, que leva e traz, infinita enquanto durar.
Nada fica para sempre, não mesmo.
Nenhuma certeza, nenhuma garantia.
Difícil é o que ela exige de mim, todo dia, esse constante desapegar.
Porque é tudo quase uma brincadeira. Mesmo que não se queira.
É tudo feito de surpresas, que às vezes são boas, tantas vezes são más.
Pode ser feia ou bonita, essa vida bendita.
Tanto faz. É feia e bonita, e boa, e má.
Mas nunca maldita.
Independe de sorte ou azar.
É só essa coisa que não se consegue controlar, menos ainda definir.
Se a vida fosse um jogo, seria jogo de paciência e verdade.
E é do jogo, a alternância. Perder e ganhar.
Mesmo faltando ( ou sobrando ) peças, é da vida, esse eterno desmanchar.
Para depois, mais uma vez, e(ternamente) recomeçar.


Dani Altmayer

sábado, 13 de dezembro de 2014

O mundo de Pietro

Pietro nasceu com um defeito na asa esquerda. Quando era bem pequeno, e ainda não tinha penas, ninguém percebera. Nem mesmo sua mãe.

Eles eram cinco irmãozinhos, famintos e gritões, e ela estava muito ocupada em buscar comida o tempo todo para alimentar aquelas bocas escancaradas.



Eles haviam nascido na primavera e moravam em uma árvore florida e cheirosa. Divertiam-se a observar os passantes na rua calma de um bairro de Porto Alegre.

Tinha o seu João, o afiador de facas. Ele se anunciava com um apito longo e agudo, que os filhotes tentavam em vão imitar.



Tinha a Tita e a Tata, as gêmeas que jogavam amarelinha na calçada. Desenhavam, com o giz, um céu lindo de sol e passarinhos.



Tinha a dona Cândida, uma velha mal humorada, e seu cachorro caolho, o Ogro. Ele sempre rosnava para a gurizada que jogava bola no meio fio.


E tinha o Bernardo, o Bê, que passava as tardes rodeado de livros, lendo à sombra da velha árvore. 



Era uma vida boa no ninho. Comiam, dormiam e contavam histórias para se inventar. 
Inventavam histórias para quando pudessem voar.

Quando suas penas começaram a crescer, Pietro percebeu que tinha uma asa torta. Mostrou para a mamãe, sempre ocupada.
- Não é nada, vai passar.

Mas não passou, e o problema só piorou. Seus irmãos começavam a dar os primeiros voos, bem curtos, de um galho ao outro. E ele sem sair do lugar.



A mamãe chamou o doutor Sabiá, que decretou:
- Esse daí nunca vai voar.
Pietro chorou.



Seus irmãos iam longe já, e voltavam cheios de aventuras e presentes. 
Uma minhoca diferente, uma flor, um galho macio. Eram legais com ele.
Mas ia chegar o dia em que não voltariam, e Pietro sabia.

Ele tinha as pernas fortes, de tanto saltar. De vez em quando tentava um pulo para o galho ao lado.
Com medo de que caísse, mamãe não deixava ele se arriscar.
Ele tinha o coração triste, por não sair do lugar.

Estava ficando muito grande para o ninho, agora. Sentia -se apertado. 
Já não achava graça de olhar a rua, nem de inventar histórias sem pé nem cabeça.
Queria vivê-las.
Adivinhava o mundo, mas não sabia. Nunca saberia.


Com o tempo, foi se acostumando a ficar.
Os dias eram sempre iguais para Pietro no ninho.
Uma tarde, no fim do verão, ele viu um menino subindo na árvore. 
Era o Bê, o garotinho solitário amigo dos livros.

Pietro ficou assustado, a mãe não estava por perto, ele estava sozinho.
Cantou alto, desesperado.
O menino subiu até onde ficava o ninho, e pegou o passarinho com cuidado.
- Coitadinho, tem a asa quebrada!


Bê então, devolveu Pietro ao ninho e desceu. Foi correndo para casa.
A pequena, da porta amarela.
Voltou instantes depois, com um livro e uma maleta na mão.
_ Vou consertar sua asa.

Olhando com atenção as gravuras do livro que para Pietro parecia mágico, Bê fez uma tala, com um pedaço de madeira. 
Esticou a asinha estragada.
No começo doeu um pouco, mas depois ele se acostumou. Agora Pietro podia abrir as duas asas e bater, de leve.
- Você pode voar! Tenta!

Ainda com medo, Pietro tentou. Um voo desajeitado, pousou meio de lado, dois ou três galhos mais abaixo.
Encorajado pelo novo amigo, voou e voou, devagarinho e ressabiado.
De lá para cá, e de cá para lá.
De galho em galho até o outro lado.
O sol se punha quando a mamãe chegou, e se assustou com a novidade. Mas ficou feliz.
Pietro estava muito feliz.

Sabia que nunca poderia voar alto. Nem longe.
Não se importava.
Dava pequenos passeios pela árvore, e de vez em quando descia para ouvir o Bê contando as histórias de seus livros de aventura. 
Pousava no ombro do menino e olhava as figuras, sua imaginação viajava.

Pietro descobriu muitos mundos assim. 
Nos livros.
Mesmo sem voar longe, nem alto.
E conheceu, assim, algumas das coisas mais importantes da vida.
A esperança, o amor e a coragem.

Porque, quase tanto como água e comida, a gente precisa de amigos.
A gente precisa que acreditem na gente, para a gente também acreditar.
E é só quando se acredita que se conquista.
As coisas todas, e a maior de todas as coisas, nossa pequena liberdade infinita.


Dani Altmayer

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Ninguém merece

"É quase uma unanimidade: 96% dos jovens brasileiros entre 16 e 24 anos percebem a existência do machismo em nossa sociedade. Mesmo assim, mais da metade dos entrevistados concordam com padrões de comportamento considerados machistas. Por exemplo: 51% deles defendem que a mulher tenha a sua primeira experiência sexual somente em um relacionamento sério; 41% afirmam que a mulher deve ficar com poucos homens; 38% garantem que a mulher que fica com muitos homens não serve para namorar e, difícil de acreditar, 25% dos jovens pensam que, se usar decote e saia curta, a mulher está se oferecendo. Os dados foram revelados hoje no Fórum Fale Sem Medo, promovido pelo Instituto Avon, em São Paulo. (…)
(…) Ainda pior do que constatar o machismo entre os meninos é perceber que o sentimento está disseminado em toda a sociedade. A pesquisa mostra que 80% dos jovens (de ambos os sexos) acha errado que as mulheres fiquem bêbadas na balada ou em bares; 76% acha errado ter vários casinhos ou ficantes; 48% consideram incorreto sair à noite sem a presença do marido ou namorado e 68% acham errado ter relações sexuais no primeiro encontro. Em todos os casos, os homens praticam tudo o que consideram inadequado para as mulheres, com mais frequência."
Fonte: Caderno Donna, Zero Hora ( 07-12-2014)

Nana Queiroz. Fonte: google images


"Duas meninas se beijam em uma festa. Isso é normal. Os meninos curtem, acham até legal.
Dois meninos não se beijam em uma festa. Aí não, né? Coisa de veado."
Mulher pelada é bonito. Homem pelado é feio.
Ela tá pedindo, com uma saia daquele tamanho. Não se dá ao respeito.
Claro que você quer, está só se fazendo. Gostosa!
Depois de me deixar louco desse jeito, não vai me deixar na mão, vai ter que dar.
O que estava fazendo sozinha, àquela hora da noite?
Coisa feia mulher bêbada.
Homens não gostam de mulheres poderosas. De mulher que pensa.
Mulher tem que ser doce, feminina. Submissa, de preferência.
Mulher gosta de ser maltratada.
Se não ficar comigo, não fica com mais ninguém. Eu mato.
Mata mesmo.
Mulher direita é dentro de casa.
Você precisa de um homem para te cuidar. Para te proteger.
Para te possuir.
Anda tão chata, deve ser falta…
Muito feia, não merece a honra de ser estuprada.

O estupro é a forma mais descabida de violência contra as mulheres. Mas é apenas a ponta do iceberg.
E o que a gente não vê?
Está na hora de mergulhos profundos para descobrir o que está submerso, pois é ali a base de tudo o que está aí fora. De toda esta merda.
Eu fico louca quando vejo alguém falar mal de feministas, que, aliás, podem ser mulheres, e também podem ser homens.
Não gosto de rótulos, mas este eu uso com distinção. Sou feminista assumida, de carteirinha e sindicato.
E, sinceramente, estou me lixando para o que possam pensar.
Não admito que depois de tanta luta, ainda estejamos submetidas a uma sociedade que faz pouco caso da gente, que nos paga salários mais baixos, que mutila suas meninas para que não sintam prazer.
Uma sociedade que nos estupra porque merecemos.
Uma sociedade machista formada de homens, e também de mulheres que tem medo do feminino.
Não sou especialista no assunto, apenas leio muito e sou curiosa.
Estudos dizem que os homens estupram as mulheres que eles pensam não ter família.
Quem não tem família?
Vejo mensagens no whatsapp em que enviam fotos de mulheres peladas, uma profusão de bundas e seios e bucetas, misturadas com as fotos de suas filhas bebês e piadinhas infames.
Fico pensando, que mundo essas meninas herdarão?
Vejo reportagens de revistas dirigidas para mulheres que nos tratam como objetos. Mil dicas de como arranjar um marido. Como enlouquecer seu homem na cama. Como ter o corpo dos seus sonhos em trinta dias.
Vejo o machismo explícito, e me assusto muito mais com o implícito. Aquele que é socialmente aceito, por eles, e por elas, por nós.
Você pode me dizer para não levar a sério, que são só brincadeiras. Ou que sempre foi assim, desde que o mundo é mundo.
Me desculpe, mas eu levo a sério sim. Isso não é uma brincadeira, e tem consequências. Graves. Basta ler jornais e ver as estatísticas.
Não consigo me calar. Não é esse o mundo que quero deixar para meu filho. Nem para a minha sobrinha. Nem para minhas irmãs, minhas amigas, e suas filhas, e as filhas de suas filhas.
Não é o que eu quero para mim, este lugar inseguro.
As coisas sempre foram assim, não. Já foram muito piores.
Mas podem ser muito melhores. Podem ser infinitamente melhores.
Se a gente tiver a coragem, todos nós. De dar um mergulho, bem fundo.
Está mais do que na hora, de dizer chega, de dar um basta!

Dani Altmayer










domingo, 7 de dezembro de 2014

Ainda ontem


Não são as rugas e os cabelos brancos que denunciam nosso envelhecimento.
Nada marca mais a passagem do tempo do que ver nossas crianças crescerem.
Longe estava o dia em que eu precisaria olhar para cima para falar com meu filho. 
Não faz muitos anos, eu pegava numa pequena mão para atravessar a rua. Hoje, é essa mão, o dobro da minha, que me segura tantas vezes, para atravessar a vida. 
"Mãe, vai ficar tudo bem. Tamo junto."
Às vezes entra no consultório algum menininho saltitante, de chinelos do homem aranha e camiseta do Batman, e o meu coração se aperta de saudade. 
É que passa tão rápido, ainda ontem eu procurava o Nemo e me divertia com o Buzz Lightyear, tinha minha unha do pé quebrada jogando futebol na areia do clube e esperava ansiosa a continuação da Era do Gelo.
Ainda ontem, eu juro.
Daqui a alguns dias meu filho se forma no primeiro grau. Uso o termo errado de propósito, para que ele me chame de velha, como um dia chamei a meu pai. E falo coisas como "no meu tempo…" 
"No meu tempo não tinha essa bobagem de formatura na oitava série, nem no ensino médio. Eu só me formei na faculdade."  Digo isso, mas só uma parte de mim acha bobagem. Outra parte, a que foi por ele proibida de chorar na tal formatura, fica toda orgulhosa. 
Na semana passada, ele foi sozinho buscar o boletim. Notas excelentes, por mérito dele, que se organiza sem que eu precise ficar controlando o tempo todo. Há anos que já não estudo junto. " Não faz mais que a obrigação", e ele sabe disso. Ainda assim, faz, e me faz feliz.
Acompanho, mesmo que à distância e com um pouco de culpa (que mãe não tem?) suas vitórias no esporte que tanto gosta, vejo o suporte de medalhas repleto de suas conquistas, resultado de muito treino, dedicação e suor. 
Olho para este guri enorme, e meu peito se enche de um amor cada vez mais alto. 
Nem tudo são flores e corações na nossa história, lógico.
Sei que estamos ao meio do caminho. 
Em plena era das espinhas, amores e humores imprevisíveis. Na era do sono e da preguiça sem fim. 
Das brigas e negociações e conversas com paredes e muros.
Na fase em que pais passam de heróis a bandidos, é agora que somos muito ridículos e é agora que quase nunca temos razão. Ao menos até doer na pele a prova em contrário. "Eu avisei"…
Ah, a paciência. A preocupação, o orgulho, as dores e as alegrias, tudo junto e misturado. Tudo o que faz parte da grande confusão que se chama vida.
No entanto, uma etapa é agora finalizada com sucesso. E eu mudo de opinião, porque desde que ele nasceu vivo mudando. Batalhas vencidas devem ser sim, celebradas e festejadas.
Prometo ser discreta, e chorar escondida.
E prometo não esquecer que nós dois ainda temos muito o que aprender. 
Eu e ele. 
"Tamo junto".
E é por isso que eu sei… vai mesmo, vai ficar tudo bem.


Dani Altmayer

Na esperança de que um dia, não agora (que é mico), ele leia meus textos, me perdoe, e saiba que isso é amor. E que é dele que vem a minha força maior para continuar, deste " amor errado mais certo do mundo."



quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Domingo de Sol



Laura estava pedalando há umas duas horas, tinha saído da Redenção para a Beira Rio, fora até o Barra, e agora voltava para casa. Atrasada para o almoço na casa da mãe do Beto, já podia imaginar a briga que se seguiria. Por tanto tempo pedira um namorado, e depois que conhecera o Beto tudo fora bem rápido. Na verdade, ele estava quase morando na casa dela. Finalmente tinha alguém para ver filme enrolada no sofá num sábado à noite. O problema é que o cara gostava demais do sofá. Além de não levantar cedo de jeito nenhum, e de tomar coca cola no café da manhã, ficava o dia todo assistindo a programas de esporte na TV da sala.

No começo, ele até ia junto nas pedaladas, mas não tinha muita disposição para exercícios. E ela bem que preferia, pedalar sozinha. Podia ouvir as músicas de que gostava, deixar a mente vagar, e o corpo suar bastante. Acordava cedo, tomava um belo café, depois saía sem rumo. O chato era aquele compromisso de alemão, rígido, almoço ao meio dia na casa da sogra, sempre maionese e carne assada. Domingo não é dia de ter agenda. Mas dona Vanda não abria mão de ver o único filho, ao menos uma vez na semana.

Laura estava quase chegando em casa quando decidiu virar numa rua antes, para pegar o jornal na banca. Beto queria olhar os classificados de emprego. Ela ainda conversou um pouco com o Chico, dono da banca, que tinha sempre uma fofoca boa da vizinhança. Olhou o celular, estava um pouco atrasada. Enrolou o jornal para caber no cesto, junto com as flores que comprara na feirinha, e quase foi atropelada por um ciclista que vinha pela calçada, carregando, na cadeirinha da frente, uma menina de vestido e capacete cor de rosa. Laura ia gritar "cuidado", mas ao ver o rosto do homem, perdeu a voz. Era o Beto.

Ele não a viu, seguiu na direção do parque numa conversa animada com a garotinha, que devia ter uns três anos e o chamava de papai. Laura foi atrás. Ele pedalava surpreendentemente rápido.

Dirigiu-se a um recanto perto do lago, onde estavam uma mulher, sentada de pernas cruzadas e um bebê, que engatinhava em uma colcha enorme estendida na grama. Um triciclo estava jogado ao lado. Uma bola cor de rosa, e uma boneca sem braços completavam o quadro, mais uma bolsa enorme de carregar fraldas e essas coisas de nenê, e alguns blocos de montar coloridos. A mulher, usando um vestido solto, estava de costas para ela. Beto encostou a bicicleta, pegou a menina no colo, e tirou seu capacete. Cachos dourados explodiram para todos os lados, e a menina gritou para a mulher. "Oi mãe! Tô com fome!"

Laura via o homem com nitidez, a mesma mecha branca nos cabelos escuros, de um lado só, na altura da têmpora direita. Os olhos azuis apertados, por conta do sol e da miopia. Beto detestava usar óculos. Não conseguia ver direito a mulher, que usava um chapéu de abas largas, tinha os cabelos escondidos num coque, e a cabeça inclinada para o bebê que agora mamava no seu peito. Ela lhe pareceu vagamente familiar. O homem pegara na bolsa um potinho com frutas picadas e dava para a menina. Dividiram uma garrafa de água. Ele abraçou a mulher por trás, e a beijou com carinho no pescoço, muitas vezes, antes de iniciar uma partida de futebol com a filha.

Laura sente o telefone vibrar no bolso, mensagem da sogra. "Poderiam trazer maionese e coca cola?" Sem tirar os olhos da cena à sua frente, responde no automático, sim. Vê as horas no celular, passa do meio dia. É domingo, não é dia de hora marcada. Suspira. Monta na bicicleta, dá uma última olhada na família fazendo piquenique. Beto não está mais à vista. A mulher limpa a boca da filha com um lencinho. Laura não consegue ver seu rosto.

Ela resolve ir embora. Pedala de volta para casa, em silêncio. Faz muito calor para agosto. Mal gira a chave na fechadura, ouve um "você está atrasada, para variar. Mamãe já ligou duas vezes".
O ar condicionado está no frio, e a TV mostra as últimas voltas da corrida.
Apesar da pressa, Beto está deitado no sofá, de cabelos molhados, os pés apoiados no encosto branco. Fumando, tranquilamente.


Dani Altmayer

Último exercício do ano para a Oficina de Escrita Criativa ( realidade e fantasia).