quinta-feira, 22 de junho de 2023

O homem do lobo


 

Gosta que a chamem assim: baronesa. Dizem que descende de alguma nobreza europeia, provavelmente falida. Mas eu não acredito nisso, porque conheço a outra história. Ainda é bonita, por debaixo das rugas finas e dos sulcos que cobrem seu rosto de malares altos e nariz comprido. O nome é Ingrid, mas gosta que a chamem de baronesa. É viúva de um fazendeiro, plantavam arroz, tiveram dois filhos, ambos já falecidos. Vive com a antiga ama seca dos meninos, uma preta miúda e ligeira, numa casa grande que transformaram em pousada. Dizem que elas têm um caso,  mas não há provas. O acesso à ala onde moram é proibido, até para a criadagem da hospedaria. Só o velho gato cinzento circula livremente por toda a propriedade. Foi ela, a baronesa,  quem me contou essa história, numa de nossas passagens por lá.
Meu pai foi quem primeiro falou da estância. Havia passado uma noite, da qual chegou envolto em mistérios e mais silencioso que de hábito. Depois que ele faleceu, quisemos conhecer o local.
A pousada é afastada da cidade, fica em meio a um bosque, não é raro que falte luz. Mas não falta lenha para o fogão e a lareira na enorme sala de estar, e algumas tantas vezes nos reunimos ao redor do fogo para ouvir a velha senhora, com seu sotaque indefinido, a contar causos.
Era uma noite chuvosa, o marido e os filhos ainda estavam vivos, mas dormiam no andar de cima. Ela havia acordado com um trovão, logo em seguida ouviu o barulho de uma porta batendo, desceu para fazer um chá e encontrou na cozinha um homem muito loiro, cabelos longos encaracolados, todo vestido de preto, junto ao fogão à lenha. Aos pés dele havia um lobo.
O jovem sorriu ao me ver e, numa lingua estrangeira, talvez alemão, talvez austríaco, eu nunca soube dizer, era uma língua ao mesmo tempo estranha e familiar, pois eu o entendia perfeitamente, me chamou de baronesa e contou que vinha de muito longe com um recado do meu pai.
Acontece que a nossa baronesa nunca conheceu o pai, diziam ser nascida de um estupro, a mãe veio grávida para cá, trabalhou como empregada na casa dos pais do agora marido, assim se conheceram e casaram, contra a vontade dos sogros, a filha da empregada com o filho do fazendeiro.
 
O jovem, que nunca disse seu nome, me entregou uma carta e um saco onde havia uma carteira com bastante dinheiro, duas abotoaduras de ouro e uma foto desbotada de um homem de fraque e bigode. O barão, disse o jovem. Seu pai, baronesa. Ainda tentei fazer perguntas, mas ao contrário de mim, o jovem não  compreendia o que eu falava. A tempestade havia passado, e uma lua cheia inundava a cozinha. O lobo uivou, subitamente inquieto, e o jovem se despediu com uma mesura, saindo sem fazer alarde pela porta dos fundos.
Algum tempo depois, o marido e os filhos morreram. Ela vendeu parte da fazenda, e transformou a antiga casa de pedra nesta pousada onde meu pai pernoitou na juventude e para onde acabávamos sempre voltando. O dinheiro, me disse, não valeu de nada. Mas nas noites de luar, é possível ouvir os uivos do lobo, para muito além das planícies.

domingo, 18 de junho de 2023

Bolo de chocolate


 Sábado à tarde, cinzento e frio.

Limpando o bloco de notas do celular, dei com uma receita de bolo, fitness, of course. Rapidinho, de micro-ondas. Preciso comprar cacau e fermento para testar a receita, o resto tenho em casa.
Às vezes, prefiro comprar o bolo pronto. Quase sempre. No super aqui, tem um de aipim que é uma delícia. Bolo-raiz. Mas bolo raiz mesmo é aquele de chocolate da infância, a que chamávamos nega-maluca, não pode mais e está tudo bem. Acho mais do que certo. Não sou da turma do "que saudade do meu tempo", ainda que já tenha idade para tanto e seja exatamente dessa turma. E desse tempo. Outro dia, uma amiga de infância me pediu a receita, por sorte eu estava em Porto Alegre, vasculhei um caderno amarelo e encontrei a receita desbotada, ainda legível. O sabor das tantas tardes cassineiras de chuva, dos cafés de chaleira na Quitéria, da forma onde não restava migalha para contar a história, daquele bolo delícia que a Pia fazia, mas a receita era da Amenaide, todas já idas há tantos e tantos anos. É engraçado como restam nas lembranças os cheiros e os gostos, já escrevi que a memória é uma célula olfativa, é uma papila gustativa. O bolo fitness pode até ser gostoso, e ainda vou experimentar, mas o amor de verdade acaba sendo isso, um bolo de chocolate recém saído do forno. Aconchego quentinho, na medida exata, ou mesmo exagerada, de açúcar e afeto. É que sou desse tempo, do doce de verdade. Dos que engordam o corpo, principalmente a alma.

domingo, 11 de junho de 2023

Finalmente


Isso de morrer não estava nos meus planos.

Espero que o caixão esteja fechado, não acho necessidade de caixão aberto, ninguém fica bonito depois de morto, nunca vi alguém falando, estava tão bonita, só falam que estava em paz, que descansou, como se soubessem o que vem depois, ninguém fala da beleza do morto, da morta, mesmo com o capricho dos maquiadores, da funerária, não há beleza que resista ao cessar do fluxo sanguíneo, não há blush que dê conta. Também nunca ouvi dizer que, nossa, parecia triste-atormentada-infeliz-

preocupada, é sempre como se a morte fosse uma espécie de férias eternas, uma praia paradisíaca, uma rede na varanda, descansou, oras, as bobagens que as pessoas inventam para se consolar, viver é cansativo mas quase sempre é a melhor alternativa. Esperam da morte a libertação, uma epifania, e isso me parece superestimado, enquanto que a vida, pelo contrário, é cotidiano, piloto automático e favas contadas. Até não ser.

Tão jovem, 50 anos. Os velhos têm direito e, dependendo da idade, têm quase o dever de morrer. Nossa, viveu muito, dizem. Uma vida plena. Chegou longe. Como se soubessem. Cinquenta anos, cinquenta anos atrás, talvez não fosse o que é hoje, tão jovem. Hoje é sempre muito cedo para se morrer. Eu tenho cinquenta anos e não pretendo ir agora, não está em nenhum dos meus planos. 

Venho como amigo, nem isso, venho de curioso. Valéria. A menina mais bonita da oitava série, meu primeiro beijo, primeira punheta, primeiro coração partido. Anos sem saber dela. Até que teve uma festa, acho que deve fazer uns dez anos, um daqueles encontros marcados pelas redes sociais, todos na casa dos quarenta. 

Ela usava um vestido vermelho, o cabelão preso num rabo de cavalo, o sorriso de dentes agora parelhos e brancos, na época eu ainda estava casado e achei que poderia me apaixonar de novo pela Valéria, por aquele sorriso, aquela nuca, outro dia pensei em mandar mensagem, convidar para um vinho, pensei e não mandei, tinha tempo, sempre temos amanhãs, ontem veio a notícia no grupo do colégio, que a Valéria tinha morrido. Aos cinquenta anos você não espera receber esse tipo de notícia. 

Ficamos, eu e ela, com um vinho em aberto e tudo o que poderia ser, ainda que remotas fossem as chances, agora nunca saberei ao certo. A merda da morte é isso. Não saber.

O caixão está aberto, o corpo esguio, pequeno, coberto de flores miúdas e o rosto pálido maquiado parece o de uma boneca de cera, a cicatriz escondida pela echarpe rosada, a filha, chorando ao lado do corpo, é a cópia da mãe. Ela me diz, a voz rouca sem convicção: descansou.

Quero falar que sua mãe está bonita como sempre foi, e é próximo disso, uma boneca de cera de lábios pálidos, não seria mentira, para uma morta está bem, mas o que sai da minha boca é que sim, ela parece estar realmente em paz. Que merda.