segunda-feira, 30 de junho de 2014

Depois do Outono

Ela chega por trás, e sussurra uma carícia em meu ouvido. A mão gelada toca minha nuca, e me arrepia, em contraste com o vapor que sai de seus lábios, ressecados pelo frio. Sua voz chega como um vento, quente e suave, trazendo lembranças de um verão há muito perdido. Fecho os olhos para que o momento se demore, e quase ouço o barulho do mar e quase sinto o cheiro do mar. Ela sorri com seus dentes pequenos, e eu quase vejo as conchas espalhadas na areia. Todas aquelas conchinhas brancas, minúsculas, e lascadas nas pontas. Frágeis, decompostas, e jogadas aos meus pés como se fossem um tesouro. Procura a pérola, procura! Pérolas, que bobagem, não se encontram assim, em conchas quebradas.Não importa, olha esta, esta parece uma pérola, é perfeita. Nem percebia que perfeita era ela, e se ria, maliciosa, com a concha quebrada na palma da mão. E fingia me enganar, fechando a concha na mão, e a mão em concha, e depois se abria para mim, como se fosse ela, ao mesmo tempo, a ostra e a pérola.
Éramos ricos naquele verão.

Estremeço, faz tanto tempo.
Vamos?
Respondo ao seu toque delicado, me viro e procuro seus olhos. Quero enxergar neles o mar verde, transparente e límpido. Mas o que encontro são dois pontos escuros, dourados, e revoltos. Seguro sua mão fria e magra, com firmeza. Ajeito a touca de lã, colorida, um tanto ridícula, que protege sua cabeça nua. A cabeça, redonda e simétrica, como uma pérola. A touca fica bonita nela. Tudo fica bonito nela, até o sorriso triste que veste para me confortar. É melhor você levar um casaco mais grosso, meu amor. Pega um cachecol, e as luvas. Não esquece das luvas, por favor. Coloca agora, suas mãos já estão tão geladas. E olha que mal chegou o inverno. É que tem vento lá fora. Colocou uma manta na mala, sim, tem certeza? Eu ouvi a previsão. Já está muito frio, mas ainda vai piorar. Eu sei, imagino, acho que pode até cair geada. Depois que esta chuva parar.

Dani Altmayer

terça-feira, 24 de junho de 2014

Naná e os Anos



Para onde vão os anos, Naná perguntava.
Os anos, o tempo é que leva- sua mãe respondia.
Mas para onde iam os anos que o tempo levava?
Sua mãe não sabia.
Naná pensava, e pensava. E pensava mais ainda.
A cabeça quase fervia.
Já sei! Esta é fácil.
Ora, então, que sabida! Para onde vão os anos, Naná?
De olhos arregalados:
Para o saco do tempo, mamãe.
O tempo é o velho do saco.
Ele rouba anos, como criancinhas.
E não devolve. Nunca mais.

Dani Altmayer

domingo, 22 de junho de 2014

Do que é eterno

É a intensidade, e não o tempo,
Que confere eternidade a um momento.
Basta um instante, perfeito. Um beijo.
E está feito.

 Saudade

 
                     
                       Sentimento.
               
                 
Desejo.
                          Sem fim.
                       



  

Dani Altmayer 

terça-feira, 17 de junho de 2014

Poesia na Esquina

Tem sempre alguma gente acontecendo em alguma esquina.
Tem gente vendendo, tem gente comprando.
Tem gente atravessando, tem gente esperando. Tem gente decidindo, esquerda, direita. Tem gente indecisa.
Tem gente parada. Tem gente que sempre buzina.
Tem gente fazendo ponto, e tem gente bailarina.
Tem sempre alguém fazendo alguma coisa em alguma esquina.
Na esquina da Osvaldo Aranha com a Redenção, por exemplo, tem um homem.
O homem usa o cabelo preso em um rabo de cavalo. Ele veste um casaco cinza, como o céu de Porto Alegre. O céu, que também veste triste nestes dias de junho cinza.
Não consigo ver o rosto do homem, se é velho ou moço. Passo longe, e espio. De dentro do ônibus, eu e a menina. Vemos o homem de cinza, na esquina.
Ele é equilibrista.
Esta gente esquisita, que é meio homem, meio artista.
Ele equilibra um violão. Vermelho.
Ele equilibra um violão vermelho. Com o queixo.
Ele equilibra um violão vermelho com o queixo. Na esquina.
Não usa as mãos, que estão penduradas junto ao corpo. Estão escondidas, pelas mangas enormes de seu casaco cinza, e disforme.
Ele equilibra um violão. Vermelho. Com o queixo. Apenas.
Ele equilibra. Apenas. Com o queixo. Um violão. Vermelho.
Na esquina.
Não sei se é moço, ou velho. Sei que está só. Como eu, e a menina.
Como toda esta gente, na esquina.
E usa um rabo de cavalo, e veste um casaco cinza.
E equilibra seu violão vermelho, com o queixo.
É um equilibrista, de paletó.
Cinza, como o céu do inverno que se aproxima.
Triste como os olhos da passageira, e também da menina.
Como a cidade, de cimento armado.
É tudo cinza nestes dias de junho. Nesta Porto Alegre triste.
Até ele.
Mas é vermelho seu violão. E brilha.
Seu violão é vermelho, como seria o sol. Se houvesse.
Seu violão é um sorriso vermelho. Equilibrado.
No queixo de um artista. Numa esquina.
Cheia de gente de casaco cinza e solidão.
Porque tem sempre alguma solidão acontecendo em alguma esquina.



Dani Altmayer  ( o desenho também :P )

domingo, 15 de junho de 2014

Reflexões de Uma Ciclista Estabanada


Pedaladas. Comparações com a vida. Eu sei que já falei sobre este assunto. Muito. Mas a gente usa aquilo que vive, né? E depois, tem muita coisa que é inesgotável, apesar de não infinita.
Bom, começo pelo título. Eu ia escrever descuidada, em vez de estabanada. Porque venho tentando me livrar deste rótulo há séculos. E S T A B A N A D A. Mas enfim, sejamos honestos. Alguém com mais de quinze anos que vive com as pernas roxas, é o quê, mesmo?
Então, hoje é domingo. Dia de pedalada. Em geral vou sozinha, porque perdi meu antigo parceirinho ( ele cresceu), e ainda não encontrei ninguém à altura. Para falar a verdade, prefiro assim. Eu gosto da solidão e do silêncio das minhas manhãs de domingo. É especialmente bom quando se está triste. Tão bom quanto o chuveiro para chorar a sós, sem testemunha. O vento na cara ajuda as lágrimas a descer. Tá certo que as lágrimas podem atrapalhar um pouco: borram a visão, facilitando acidentes.
Eu queria poder dizer que caí hoje por causa delas. Porque eu estava chorando. Seria mais bonito e romântico, mas não seria justo. Eu caí por outra razão. Um motivo fútil, como são os motivos, em geral. Caí porque as polainas que eu vestia subiram, expondo minhas canelas brancas e as meias ridículas que usava por baixo. (Anotação mental: não usar meias ridículas. Não confiar em polainas. Depilar as pernas.) Freando a bicicleta, numa esquina, eu me abaixei para ajeitá-las. Tudo ao mesmo tempo. Pura vaidade, zero inteligência. Foi lindo. Mas não foi grave. Apenas um hematoma a mais para a coleção, desta vez na barriga. Não me pergunta. E foi rápido, como são as quedas. Mas poderia ter sido evitada. Como a maioria pode, se houver atenção.
A primeira coisa que pensei foi "que bom que estou sozinha. Assim, não tem ninguém para rir de mim. Também não tinha ninguém para rir, comigo." E os carros, passando. Correndo, buzinando.
Limpei o barro das mãos, juntei minha dignidade do chão e segui meu trajeto, pois estava apenas no começo. Então, pensei melhor "e se tivesse sido mais serio, eu não teria ninguém para me ajudar." Prós e contras desta bem (mal) dita solidão.
Outro dia mesmo, caiu a correia da minha bicicleta. Por inabilidade técnica, fiquei um bom tempo tentando colocar no lugar. Só o que consegui foi sujar minhas mãos de graxa. Até que passou um rapaz muito gentil, e arrumou para mim. Talvez, daqui a alguns anos, eu não possa mais contar com este tipo de gentileza espontânea. O jeito vai ser não pedalar mais sozinha. Aprender a pedir ajuda (dureza). Ou aprender a consertar, eu mesma.
Tudo muito tranquilo, a orla, o rio, o estádio bergamota, o museu. Uma delícia.
Aí tem a volta para casa. Uma ladeira enorme, para subir. O vento, contra. Tem carros, sempre tão impacientes.
Quando comecei a pedalar, há dois anos, dava vontade de sentar no meio fio, e chorar. Desistir, no meio do caminho. Às vezes, a vida fica assim também. Dá vontade de largar na metade. Mas não pode. Não dá para andar só um pedaço, e parar. É preciso seguir em frente, chegar em casa para o almoço.
Com o tempo, a gente vai ficando mais forte. Vai ganhando resistência, fôlego e músculos. Além de calos, e cicatrizes. Roxos e amarelos. Na barriga, nas pernas, no coração. Na mão. É tudo uma questão de treino. Com o tempo, vai ficando mais fácil.
Hoje eu subi a ladeira quase rindo, depois de descer chorando.
Voltei inteira depois de quase me estatelar. Nem sempre foi assim. Nem sempre é.
Às vezes, é ao contrário. Nunca igual.
Mas é da vida, este movimento, vai e volta. Este entra e sai.
A vida, bipolar, com seus altos e baixos. Sempre surpreendente.
Esta vida de agora, ao menos.
Inesgotável, se não infinita.
E definitivamente, estabanada. Como a gente.


Dani Altmayer


sábado, 14 de junho de 2014

Finais Felizes Não Existem

 E ela anda sozinha. Não porque não acredita no amor.
 Mas sim, porque acredita demais.




Dani Altmayer

terça-feira, 10 de junho de 2014

#VaiTerCopaeEuVouTorcer


Daqui a dois dias começa a copa do mundo de futebol. Eu não gosto de futebol.
Mas, como muitas mulheres, eu gosto de copas do mundo.
Só que neste ano é no Brasil, e o Brasil é um país pobre, coitado.
É no Brasil, e tem jogo na cidade onde moro. Há dias o trânsito está caótico.Vou perder horas me deslocando.Vou perder horas de trabalho.Vou perder dinheiro. Vou perder paciência.
Eu não gosto de futebol.
O país da copa está em obras ( desde sempre). Nada está bem pronto (nunca está). Ninguém sabe falar inglês (nem português)  Tem milhares de piadas rolando nas redes sociais (algumas são bem engraçadas). Tem protesto por toda a parte (com toda razão).  Falta hospital, escola, segurança e bom transporte público (para ficar só no básico).
Eu não gosto de futebol.
Tem um milhão de motivos para ser contra. Ou mais,  Fica até feio não ser. Dá até um pouco de vergonha, torcer.
Ainda assim, eu vou. Vou torcer.
Vou me vestir de verde e amarelo, gritar sem saber se é pênalti ou escanteio, sem saber quem é quem, quem é atacante, ou zagueiro, sem saber de que lado fica o lado certo.
Eu nunca sei o lado certo.
Mesmo assim, vou fazer pipoca, e chimarrão, vou reunir os amigos, voltar a ser criança, e torcer. Pintar a unha, e a cara. Vou cantar errado o hino e aturar o Galvão.
Vou torcer para que a festa seja bonita, e que predominem a paz, o espírito esportivo, e a lealdade. A verdadeira alegria, a beleza do esporte.
Vou torcer para que os visitantes se sintam acolhidos, apesar da bagunça da casa.
E que os anfitriões deixem para passar o aspirador depois, que agora não é hora de faxinar.
Em outubro é que é.
Vou torcer para que não esqueçam, depois. Pão e circo, não, quando a festa acabar, quando a luz apagar. Não mais.
Vou torcer para a gente não esquecer. Eu, ele, você. Nunca mais.
Para ninguém varrer a sujeira para baixo do tapete de alguma vitória, que isso já é outra história.
Para depois.
Porque agora, eu vou me render e me calar. Deixar a emoção falar, sem razão.
Vou sim, torcer com orgulho. Para e pelo Brasil.
Porque o Brasil é que nem família. E família, a gente odeia mas ama, implica mas defende.
Família, só a gente pode falar mal. Ninguém mais.
Por isso, sem saber direito de que lado fica o lado certo, escolhi ficar do seu lado.
Do lado do meu país
Porque agora é tarde para brigar. Eu acho. Depois da merda feita, só me resta apoiar. E torcer.
Ainda que eu não concorde. Ainda que eu não goste de futebol.
Ainda assim, e apesar de tudo (que é muito). Eu ainda gosto, de copas do mundo.
Ou lembro vagamente de gostar.

Dani Altmayer


domingo, 8 de junho de 2014

Fragmentos/ Coisas que Catei por Aí

Todos sempre querem vender alguma coisa.
Uns fazem isso muito bem.
Tão bem que a gente até compra.



Coerência: benção ou maldição?


Tem sempre uma dor à espreita.
Nem sempre ela dispara.
Mas fica ali, engatilhada.



Tem gente que vai ao piquenique só para comer.
Outros levam só a toalha.
De mãos abanando, não se leva nada.



Faz tempo que a gente sabe. Desde a Maria e o João.
Não se marca o caminho com migalha de pão.
Migalha passarinho come.




Andar para trás. Não dá.
A gente nunca volta para o mesmo lugar de onde saiu.
Nunca é o mesmo lugar.




Eu queria te dizer obrigada.
Abrir o coração não é fácil. Requer muita coragem deixar outra pessoa entrar.
Mostrar a bagunça da gente por dentro. Mas é tão bonito, deste jeito imperfeito.
Só que às vezes, mesmo sendo bonito, não dá para ficar. Com todo respeito.
Não é por nada. É por tudo.
Quando o tempo passa, a gente muda. Também a gente passa.
E descompassa.



Acende uma vela. Agradece.
Segue em frente.
O passado... adeus pertence.
                 
     
             Ainda assim, tem gente que escreve tão forte que fica difícil de apagar.
             A coisa mais difícil neste mundo. Esquecer.
             Por mais que se passe a borracha...
             Nem sempre dá para apagar o que riscou tão fundo.


Dani Altmayer



sexta-feira, 6 de junho de 2014

Duas Coisas Gostosas, Uma Embreagem Macia e Uma Mulher Carinhosa



Eu podia ter botado qualquer frase no meu para choque. A Maria queria que eu escrevesse de Deus. Ela me deu um santinho do São Cristóvão, para pendurar no espelho, junto com a foto dela e das crianças. Também me deu um chaveiro de pimenta, uma figa, e um galho de arruda. Este ela troca toda vez que eu vou em casa, porque seca. Ela é muito religiosa, a Maria. Faz eu usar um crucifixo enorme na corrente. Eu não me importo, é de ouro maciço. Não tiro nem para dormir. Ela comprou no penhor da Caixa. Às vezes eu fico com pena de quem botou no prego e não conseguiu tirar. Penso nisso, sabe? Eu tenho muito tempo para pensar, nas viagens. Uma vez quase me roubaram a cruz. Foi uma vadia que peguei na estrada. Conheci numa churrascaria, pediu carona. Ainda bem que acordei na hora. Não sou muito católico, mas foi presente da patroa. É de ouro. E sei lá, acho que protege. Nunca tive um acidente, nestes vinte anos de estrada. Estrada que eu conheço melhor do que o meu guri de treze anos.
E olha que é um país bem grande, este Brasil. Já fui de norte a sul, até no Chile e Uruguai já andei. Gente boa os vizinhos. Arranho um espanhol, não me aperto. A vida ensina, sabe?
E também eu nunca fui de correr, de beber, de tomar boleta, estas merdas. Meu fraco é uma costela gorda, ambrosia e coca cola de dois litros. Zero. Por isso a barriga. Meu lema sempre foi:"dirijo com cuidado para não deixar chorando quem me espera sorrindo." Tem funcionado.
Agora não faço mais isso de viajar tão longe. Não tenho idade, vou fazer 4.5, a coluna velha reclama. Só faço viagem pequena, daqui para ali. Estou mais sossegado.Trabalho por conta, comprei meu caminhãozinho, ano 88. Pintei a frase no para choque. Eu mesmo. A Maria queria que eu botasse de Deus. "Deus é fiel, Deus é comigo. Eu e Deus. Dirigido por mim guiado por Deus. "Não é que eu não goste de Deus. Eu gosto. Mas tem tanta outra frase boa, né. Estas estão meio batidas. Tem muita coisa que é verdade. Tem até poesia. Teve uma, que eu gostei muito, mas fiquei com medo da Maria: "pinto é que nem dólar, sobe no paralelo e cai no oficial."
Eu aqui, falando sem parar, e você tinha perguntado por que desta frase, não foi? Sei lá, achei bonita. Lembrei do compadre Inácio, que morreu na soberba. Virou comida de minhoca, como todo mundo.
Qualquer dia eu mudo. Não sou de me apegar, tem tanta coisa linda para dizer. Vou pedir para minha filha escrever, está estudando para ser professora. Tem a letra bonita, redonda. Só tenho que cuidar com a Maria, não posso ofender. Tem que respeitar, sabe como é, mãe de filho. Mas vou deixar Deus fora disso. Não que eu não acredite. Acredito. Eu só não sou muito católico. Não como a Maria.

"Diga sempre a verdade para sua mulher: mesmo que precise mentir um pouco. "

Dani Altmayer

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Saudade Boa


Uma saudade boa enche o ar de perfume. 
É saudade que tem cheiro de torta roubada, de desenho animado. Faz fumaça, ou ventinho. Abraça. Inebria.
Uma saudade boa traz um choro de canto de olho. Um choro manso e morno. 
Como quando a gente corta cebola, o choro da saudade boa é bem assim. Choro de cebola.
Ardido, e calado. Se bem que às vezes eu faço fiasco, enquanto descasco. Choro de fungar. De soluçar, quando é forte. Mas pode.
Choro de saudade também é quentinho, como bolo com calda de chocolate. Docinho como o colo da mãe da gente.
Uma saudade boa tem gosto de pipoca e picolé. De bergamota. De mariola. De negrinho.
Até de coca cola. Tem gosto de tudo o que a gente gosta, e só não dá dor na barriga.
Este tipo de saudade pega a gente no susto, cura até soluço.
Chega a qualquer momento, visita surpresa.
Entra por debaixo da porta, na fresta da janela, pela chaminé. Na meia furada no dedão do pé.
É uma criança mimada, quer para a hora. Mas não berra, nem chora.
Saudade boa é quase um silêncio. Uma brisa, um carinho.
É música que toca baixinho, suave, gentil. 
Como uma canção do Roberto. Antiga.
Ou agita. Um samba de escola. Um do Emílio. Uma viagem ao Rio.
Uma saudade boa é uma sonora gargalhada.
Uma bela e gostosa risada. Daquela que faz a barriga doer.
Saudade boa é botar a boca no trombone.
Falar sem parar, numa fofoca escrachada, até doer também o ouvido. Fofoca do bem.
Da vida do vizinho, da atriz, do Martinho. 
Li na Contigo, te contei?
Saudade boa é um abraço apertado e uma pia sequinha. 
"Não me vai molhar, acabei de secar."
Um tapa na bunda, um beijo estalado.
Uma bronca bem dada.
Saudade boa tem jeito e cheiro e gosto de cozinha.
De manhã até de noitinha.
De feijoada. De janta caprichada e cerveja gelada. 
Saudade é um agora, depois. Que foi antes. Muito antes. 
Nem sempre a gente tem um depois, viu?
Não sei se toda saudade é boa. Mas esta eu sei que é. 
Tem cheiro e gosto e tempero da melhor qualidade.
Da melhor saudade.





Para todas as minhas saudades boas.
Em especial para a querida Pia, minha mãe número dois, que temperou a nossa vida com tanto amor. Ela partiu há 14 anos, e deixou uma baita saudade.
Ela, que foi uma das melhores pessoas que já conheci. Hoje eu a senti num vento, e chorei. Porque sim, JP, a gente chora ainda, de vez em quando, mesmo muito tempo depois. Mas é um choro bom. De uma saudade boa.

Dani Altmayer

domingo, 1 de junho de 2014

O Amor e o Poder



É para o seu bem.
Eu te conheço melhor que você mesmo.
Melhor do que ninguém.

Eu sabia que não ia funcionar.
Você faz sempre assim.
Sempre.
Você não muda nunca.
Nunca.

Vai sair com esta roupa?
Gravata mais ridícula.
O vestido está muito curto.
Preto. É luto?

Você não devia cortar o cabelo.
Você está precisando cortar o cabelo.
Como seu cabelo está caindo, né?
Não toca no meu cabelo!

Quando você vai começar a dieta? 
A academia? A terapia? A faxina?
Você passa muito tempo no computador.
Olha o volume da TV.

Nossa, mas você engordou.
Outra cerveja?
Mais um cigarro?
Outro livro para não ler?

A sua mãe tinha razão.
A minha mãe é que estava certa.

Eu sempre tenho que fazer tudo sozinha.
Hoje é o seu dia de lavar a louça.
Eu já levei o lixo.
Varri a calçada.

Levanta você.
Ninguém me ajuda.
Ninguém faz nada.
Eu trabalho o dia inteiro.
E eu, não?

Conversa com ele. Proíbe.
Não tenho tempo.
A culpa é sua. Libero.

Não acredito que você não pagou o seguro.
Arranhou o carro, de novo.
Mais um sapato?
Preto.
Preciso.

Eu falo porque te amo.
Porque me importo.
Eu sei o que você quer.
Sei melhor do que ninguém.
Meu bem.

Você não me conta nada.
Você parece que não entende o que falo.
Que não me ouve.
Está surdo?
Cega.

Você não olha para mim.
Olha para mim?
Responde!

Por favor.
Meu amor.


Dani Altmayer