quinta-feira, 18 de junho de 2015

Você não me viu




Sábado te vi passar do outro lado da rua. Fazia tempo que eu não te via. Você estava diferente. Mais magro, uma barba mal feita, pacote de fraldas numa mão e um cigarro na outra. Não sabia que você ainda fumava. Deveria parar, agora que o bebê nasceu. Eu olhei na internet, legal, é uma menina, como você queria. Você não me viu, mas eu estava no café de sempre, tentando terminar de escrever um artigo chato. Sentada na mesa da calçada, com o Rocco aos meus pés. Ele rosnou para você. Acho que você não tem dormido bem, parecia cansado, de óculos escuros, camiseta amarrotada.
Você estava diferente sim, com um ar de doente, pálido. Parece que está perdendo mais cabelo, não deve estar tomando a vitamina. Fiquei com vontade de te chamar, a voz não saiu. Você jogou fora o cigarro, pegou o celular, e eu teria te ligado. Mas não tenho mais teu número, apaguei todos os seus contatos. Para não mandar todas as mensagens que escrevi, para não chamar todas as madrugadas em que bebi, para não contar todos os sonhos que te sonhei. Para não te pedir para recolher a roupa porque ia chover, para não esquecer a ração, para não dizer oi, tudo bem, amo você, morro de saudade. Eu morri, de saudade.
Sei lá, achei que depois desse tempo todo, eu não sentiria nada quando te visse. Mas eu chorei, que merda, fiquei com pena de mim, odeio sentir pena de mim. Odeio você, também. Odeio.
O Rocco te odeia. Ele sentiu sua falta, eu entrava em casa à noite, e ele ficava na porta por horas, com a bolinha na boca, esperando você chegar. Começou a fazer xixi no tapete da sala. Tive que conversar com ele, e explicar que você não ia mais voltar. Dei até homeopatia. Ele já não te espera mais, sempre foi muito inteligente, entendeu. Hoje rosnou para você. Ele te odeia.
O garçom, lembra dele, o Leco, ele também te viu, e me trouxe um pedaço de bolo de aipim quentinho. Eu não consegui comer, engasguei, dei para o Rocco. O Rocco nunca perde o apetite, nem por você.
Quem sabe você me viu e não me reconheceu. Eu também mudei, cortei o cabelo, estou mais magra, bem mais bonita do que com você. Cheia de planos novos, amigos novos. Estou até saindo com um colega da redação, bem legal. Você ia detestar o cara. Muito alternativo, ia dizer. Mas o que importa é que o Rocco gosta dele, e eu também, o que é mais do que podemos dizer sobre você. A gente te odeia.
Você passou  pelo nossa rua, pelo nosso café, pelo nosso cachorro, e nem sequer me olhou.
Você está muito diferente mesmo, quase sem graça. Acho que sei porque chorei quando te vi. Não foi porque você não me viu de volta. Não foi pena de mim, como pensei, mas de você.
Foi pelo pacote de fraldas, sabe, e pela sua cara amassada, boba, de pai recém nascido.

Dani Altmayer
( desafio)



quinta-feira, 11 de junho de 2015

Ponto forte


Quando os porquinhos construíram suas casas de palha e madeira, eles sabiam-se vulneráveis, pois o sopro do lobo era muito forte. Por que então, colocaram-se em situação de risco, se poderiam ser feridos?
Quando a cigarra cantava, despreocupada, ela sabia que o inverno viria. Por que a cigarra não se precaveu para o frio, tornando-se vulnerável ao vento e à neve que fatalmente chegariam?

Preguiça, luxuria, prazer. Falta de opção, são tantas opções. Gosto pela aventura. Fome de viver. Pavor de muros e mortalhas. Aceitação do risco. Amor, liberdade. Amor e liberdade.
Burrice mesmo. Paixão. Insanidade. 

Vulnerável: algo ou alguém que está suscetível a ser ferido, ofendido ou tocado. Aquilo que pode ser destruído, derrotado, frágil. Sinônimos de vulnerabilidade: fragilidade, fraqueza, insegurança.
Que me desculpe meu amigo dicionário, ele nem sempre tem toda a razão. Por ele, não há beleza na vulnerabilidade, tampouco força, muito menos coragem. A única concessão que ele faz é pela delicadeza. Permita-me então, optar.

Todo mundo é vulnerável, em algum ponto.
Ou é, ou está. Em algum tempo.

Quando conheci você, eu sabia. Que a minha casa era de palha, e o seu sopro era forte.
Sabia que minha madeira pegaria fogo.
Sabia que o verão acabaria, em breve. E com ele, a provisão.
Que a fome viria, em saudade.
Sabia que, no instante em que você tocasse a minha pele, eu me dissolveria. Deixaria de existir.
Nada mais frágil do que não existir.
Sabia que não haveria rede de proteção, nem telhado ou abrigo.
Sabia que, ao ser sua, eu me veria exposta.
Absurda e completamente nua.
Nada mais vulnerável do que a nudez.
Sabia o que aquela madrugada seria. Um fim, sem resposta.
Um fim sem um fim.

Ainda assim,  eu preferi a música ao silêncio. 
Porque, sei lá, eu gosto de barulho, de força, de vento.
Ah, coragem? Não.
Insensatez.
 
É que no amor eu sempre escolho ser tocada.
O risco extremo, da delicadeza.

Dani Altmayer 
( Mais um desafio)


terça-feira, 9 de junho de 2015

Meu poema




                             Ninguém, além de você, se encaixa tão bem em mim.

                                     

Dani Altmayer  ( Desafio)

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Prefiro dias de chuva


Maria dormiu. Fecho o livro devagar, e fico olhando seu rosto enquanto dorme. Ela gosta que eu leia para ela, diz que a minha voz é macia. Macia! Acho engraçado. Sou sem graça, baixinha e atarracada, meu marido debocha que sou mais forte do que ele. É verdade, lá em casa quem fura parede sou eu.
É por isso sou boa nesse trabalho. Cuido dela há quatro anos, um depois do acidente. Sou eu quem dá banho, veste, limpa, e alimenta a Maria. Maria tem 24 anos, e perdeu os movimentos das pernas, de um dos braços e os dois pais em um acidente de carro.
Ela tem quase a idade da minha filha, e é tão linda, tão gentil, tão calma... tão sorridente, que nem dá para acreditar que sofreu e sofre tanto. Tem dores terríveis ainda, e o fisioterapeuta tem medo que ela perca o pouco movimento do outro braço, também. Eu já disse que não vou deixar isso acontecer, porque é com essa mão que ela pinta. E ela pinta tão lindo, a minha pequena artista, tão colorido que dá vontade de chorar.
Ela me dá vontade de chorar, com aquele cabelo clarinho cor de gemada, e a pele branquinha sem uma marca. Ela tem um corpo pequeno, eu acho bonito, a barriga seca, os seios firmes de moça jovem. Mas quando dou banho nela, e passo a esponja macia por entre as suas pernas flácidas, eu sei que ela não sente nada.
Quando eu lhe faço uma trança, e passo perfume, e a levo para a praça para pegar sol e pintar, ela parece tão novinha e fresca que tenho vontade de chorar.
Tem mais um monte de artista na praça em frente de casa, e cachorros, e um parquinho. Quando o tempo está bom, a gente fica horas ali, olhando as crianças, conversando. Depois eu alcanço os pincéis e ela pinta em amarelo e laranja as folhas secas do outono, e me fala da luz, e faz um biquinho, concentrada para não errar o traço.
Até ele vir. Quando ele chega, é como se o sol se apagasse. O poeta, barbudo e sujo. Ela sorri para o poeta, convidando, e ele vem para perto, diz um verso descarado, e me fala: "pode ir, deixa que eu cuido dela agora." E a Maria reforça, "vai Lu, faz um almoço gostoso para nós, vai, sem cara feia," me dá um beijo na mão, me afasta sem dó.
Eu tenho vontade de gritar.
Volto para casa, fico espiando da janela enquanto pico os legumes. Não confio no poeta de olhos verdes, não confio em olhos verdes. Também não confio em poetas, eles mentem.
Outro dia ela trouxe ele para comer aqui, depois passaram a tarde trancados no quarto. Eu sei o que eles fizeram, ouvi os gemidos. Eu sei que ela não sente nada, não pode sentir, mas os olhinhos dela brilhavam tanto, depois, e ela sorria sem parar. Nojento, ele é nojento, se aproveita. Não tocamos no assunto, mas naquele dia dei banho nela com raiva, esfreguei bem, depois fiquei com um pouco de pena, e fiz uma massagem com óleo. Massagem é bom para não criar ferida na pele.
Eu sei tudo que ela precisa, hora da fisio, das vitaminas, dos remédios, controlo tudo. Faço tudo que é vontade, faço mesmo. Ela merece, não se queixa de nada. Antes eu ficava só de dia, mas a outra cuidadora pediu para sair, agora durmo, e só vou para casa no fim de semana, isso quando a tia dela vem pousar. Se não, nem vou. Meu marido bebe, a filha tá casada, ninguém precisa de mim. Só a Maria.
Já dei uma investigada no tal poeta, pedi para o Joaquim, o pipoqueiro da praça. Ele sabe de tudo, adora a Maria, também. Ele me disse que o cara trabalha em gráfica, é pobre e fuma maconha. Mas que parece honesto. Eu não acredito. Ele quer publicar um livro com sua pornografia. Cada poesia mais abusada, eu não gosto. Pior que a menina está nas nuvens, só fala nele. Também, quem resiste a um verso tonto, nessa idade? Ela diz, "Lu, é a primeira vez que alguém me olha." Eu não falo nada, que falar é fácil. Falar, escrever, tudo palavra, tudo muito bonito. Mas sou eu quem está aqui quando ela grita de noite, quem abraça quando tem pesadelo, quem aplica o emplastro toda vez.
Sou eu quem lê para ela antes de dormir, com a minha voz macia.
Olho para o meu anjo tranquilo, os cabelos loiros espalhados no travesseiro, ela parece a bela adormecida. Dou um beijo em seus lábios. Maria estremece, mas não acorda. Tomou remédio para dormir. Ajeito os lençóis e faço um carinho no seu queixo. Ela se mexe, sonhando, e chama o nome dele, baixinho. Jesus.
Ela não sente nada, eu sei. Eu sinto vontade de chorar.

Dani Altmayer



                                             
                                                                                                               Texto para a oficina de escrita.








(Objetivo do exercício, não alcançado : escrever sobre um protagonista, um antagonista e um terceiro que se movimenta de um para outro lado. Mas, como diz o Pedro, o que importa é a história.)