sábado, 3 de fevereiro de 2024

We are the world


O ano era 1985 e a década de 80 (1980s) ia ao meio. Que década, senhores. Quem viveu, sabe. Aquela música se tornou rapidinho uma música chiclete, todo mundo sabia cantar, ainda que de um jeito errado. We are the world, we are the children. Ficou quase chata depois, como chato é tudo que se repete demais. Mas foi emocionante no seu tempo. Todas aquelas estrelas, todas aquelas vozes diversas, únicas, unidas por uma canção. Por uma causa. Uma causa que ainda existe. Que persiste. Infelizmente, a fome ainda é um problema para grande parte do mundo. Um problema nosso.

Ontem assisti ao documentário A noite que mudou o pop, que mostra os bastidores da criação e gravação dessa música icônica. Tinha tudo para dar errado, e não deu. Graças à genialidade daqueles artistas, cantores, o arranjador, a produção. Que bom que deu certo.
Viajei no tempo no embalo daquelas vozes.
Lembrei da voz bonita e afinada da minha mãe. Lembrei dos meus 15 anos e da efervescência daqueles anos.
Ao fim do filme, uma fala de Lionel Richie me chamou atenção: the house will be there
But not the people in the house. Algo assim.
Tantos deles já não estão lá. Minha mãe não está mais aqui. Assim, que a casa não é o mais importante. A gente sabe, ou deveria, mas esquece.
Que bom que existem as músicas a eternizar instantes. A nos trazer saudades.
É desse jeito que as luzes da memória se acendem.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

trinta e um




finda o primeiro mês do corrente ano 

nenhuma resoluçâo foi cumprida

ainda que nenhuma tenha sido feita

as palavras seguem de férias nalguma

praia de águas mornas e vento ameno

enquanto eu trabalho sob os arranha-céus

sobre o asfalto quente alguém tem que


ainda assim as promessas de fevereiro

os últimos suspiros do verâo e suas delongas

na minha cidade o céu se pôe infinito 

as nuvens estâo muito perto 

quase dentro

sinto outras saudades e tudo bem assim 

também é bonito


sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Voa, JP




Hoje é dia de celebrar. Celebrar muito mais que a conquista do diploma, celebrar a vitória. Te ver formando, formado. Em direito, e na vida. Mais do que o curso universitário, que é uma baita conquista e é toda tua, o que me deixa mais feliz é te ver preparado. Te saber maduro, ético, generoso e gentil. Teu equilíbrio, teu bom senso que sempre foi bem mais alto do que o meu, mesmo quando tu ainda batia na minha cintura. Teu olhar azul, claro e profundo, enxerga muito além do que se pode ver.

Tua visão de mundo me enche de orgulho. Tua trajetória, idem. Em especial neste ano que passou, de tantas mudanças ( que tu tirou de letra), tantos desafios e êxitos. Ter acompanhado teu crescimento foi um privilégio e uma alegria, e que bom que é estar do teu lado e compartilhar mais esse marco tâo importante.

Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida, uma nova etapa começa, diferente, desafiadora, mas que coisa linda é ver que tu tem a base e todas as ferramentas para construir uma bela história. Que tu possa contar comigo, quero estar por perto, por muitos capítulos ainda.

Uma vez, aos 8 anos, tu me disse que eu tinha sorte de te ter como filho. E nâo é que tu tinha razão?

Parabéns, JP. Tu é um baita cara. Minha pessoa preferida no mundo e o advogado mais gato de 2024. Te amo.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Alguns mais




a seca mata a enchente mata a guerra

mata mais e quem não morre tem sede tem fome tem medo o medo mata o ódio mata se não mata fere sangra arde dói queima inunda a vida esse frágil fio esse frágil rio a desesperança mata se não mata fere
feridos estamos todos alguns muito mais as crianças as mulheres morrem antes ou coisa pior
a mentira mata fere arde dói queima inunda sangra o amor salva cura ameniza atenua dizem mas o amor é coisa rara assim de grande de inteiro de quesito humanidade de cunho de irmão de amor sem fronteira sem rosto sem cor sem pátria sem distinção
desse amor há carestia não há notícia
a religião mata o fundamento mata o preconceito a ganância a estúpida guerra matam se não matam todos ferem e feridos todos estamos alguns muito mais

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Cores


 

É tudo tão branco aqui. Eu acho bonito. Vocês, as enfermeiras, os doutores, são todos muito simpáticos. Nunca estive num hospital antes. Pari os cinco em casa mesmo. A Tonha que me ajudava. O marido ou tava fora pescando, ou na cachaça. A cachaça foi que matou ele, sabe? Morreu cuspindo sangue, nos meus braços. Fiz a cova na beira do rio, pode não parecer agora, mas esses braços tinham força. Foi pouco antes daquela enchente, não lembro o ano. Os meninos já tinham se ido, um para o colo de nosso senhor, o anjo Joaquim, os outros para a capital. Tudo macho, é assim, tivesse parido alguma menina não estava sozinha agora. Tem neto que não conheço. Desculpa se falo demais, tanto tempo que a Tonha se foi, era eu e os cahorros, as galinhas, o gato Tomé. Com o gato Tomé eu conversava bastante. Fiquei triste quando se foi, enterrei do lado do marido. Acho que gostava mais do gato que do Zé. Homem suga a gente, sabe? Ainda mais quando é cachaceiro. Essas rugas aqui, você pensa que é do sol, é da lida na roça. Que nada. Pode não parecer agora, mas eu era a mais bonita da vila. Saí de casa com 15 anos, atrás de homem pescador. Homem pescador não presta, a mãe dizia. Plantei milho e criei galinha a vida toda. Nunca bebi uma gota, tinha o corpo forte que só vendo. Meu vício era só a palha mesmo. Gostava de fumar na varanda, vendo o dia acabar, ouvindo rádio às vezes, às vezes ouvindo a tristeza do rio. Agora os doutores falam que essa doença é disso. Eu acho que é de outra coisa, sabe. Que eu tô magrinha assim é de saudades.
É tudo tão branquinho. Mas é bonito.


Texto para a oficina de escrita

Imagem: Entre folhas, óleo sobre tela, de Augusto Vieira

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Marias


Guarda o caderno com as senhas na gaveta das calcinhas. Dá uma olhada no espelho, passa novamente o corretivo sob os olhos, penteia os cabelos e ouve o barulho das chaves na porta.

- Chegamos, Maria.

Um beijo rápido no marido, um abraço no filho, a mesa já posta para três. Sopa de feijão, a preferida do menino.

- Mamãe, o que houve com o seu rosto?

Ela não responde, olha para o homem que desvia o olhar, serve o primeiro copo de cerveja e liga a televisão.

Faz 3 dias que Maria não sai de casa. Precisa fazer umas compras, põe os óculos escuros. Pede dinheiro para o marido, ontem viu um rato no quintal. Na ferragem tem veneno, ele diz. É melhor que ratoeira, mata logo, duro e seco.

Ela concorda. Duro e seco, perfeito. Pensa no caderno na gaveta, e sorri. Ele pede que ela traga mais cerveja. O futebol já começou e o menino dorme no sofá.



quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Ed. Majestade

 


Ontem o conselho tutelar. Hoje essa notificação. E o Bento com febre. O boletim do Murilo todo vermelho, o encaminhamento para a psicóloga, psicopedagoga, psiquiatra, o escambau.
E o aparelho móvel que o Benjamin perdeu no recreio, mais de mil de prejuízo.Tem semana que acontece tudo junto. E tem dias que só na força do ódio, mesmo. Preciso marcar a  dentista. E a fono. E as unhas.
Ainda dei de cara com a síndica no elevador. Fez que não era com ela, toda simpática, e os meninos? São três, né? Uma escadinha, né?
Falsa.
Não tenho um minuto de paz desde que mudei para cá. Bando de velho chato e mulher recalcada. Pensam que eu não vejo o jeito como me olham? Melhor seria se cuidassem desses maridos barrigudos. Já recebi mensagem de uns quantos.E não foi para reclamar do barulho dos meninos, não. Nem respondo, só bloqueio.
Tudo cidadão de bem.
Na academia do prédio colaram um cartaz agora, tem até uma citação da bíblia, pedindo para usar roupas adequadas. Top e shortinho é imoral no edifício. Criar filho sozinha também. Criança agitada não pode, cachorro grande não pode. Mas quase todo mundo tem labrador. Eu não tenho, já me basta esses três.
A próxima notificação vem com multa, avisa a administração. Não pode correr no corredor, nem jogar futebol na sala, não pode gritar com os próprios filhos, não pode usar roupa curta, ser gostosa, não pode tomar vinho sozinha, ouvir música boa, não pode perder a paciência, não pode ter vontade de meter a mão na cara da síndica, nem pode escrever o que se pensa no grupo do condomínio.
O conselheiro tutelar tirei de letra, porque na hora ele viu que era denúncia falsa, uns guris agitados, uma mãe estressada, choro e grito, quem nunca? Que atire a primeira pedra, já que gostam tanto da bíblia, também sei citar, como é aquela parte da mulher do próximo?
Antonio Carlos era o nome dele, um baixinho atarracado e vesgo. Fez umas anotações e foi embora, depois mandou mensagem engraçadinha no zap.
Homens.
Música sertaneja pode, pelo jeito. E alta, aí não é baruho. Queria saber quem foi o fdp do vizinho que me denunciou. Aposto na síndica. Ou em qualquer um desse prédio.

A febre do Bento subiu. 39, 5. Não chora, guri. Vamos para o hospital. Não, não vai ter injeção. Murilo, larga o celular, coloca a roupa. Benjamin, deixa a bola em casa. A arminha pode levar. Chama o elevador. Entra todo mundo AGORA!
No elevador, a síndica me olha de cima a baixo.
- Esse menino tá doente de novo? Já tentou homeopatia?

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Praia de inverno



 

Aquelas dunas
aquele vento
quanto de mim
é solidão e areia?
um pássaro rasante
o rugir das ondas
o quebrar das conchas
a fragilidade a força
na imensidão deserta
o que restou em mim
quanto daquele mar?
de ressaca
talvez isso explique
talvez não 

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Paradoxos

 


O rio caudaloso da cor do chocolate quente

Faz ponte
Logo atrás a cidade tem o céu arranhado de concreto crescente
Desenfreado
Em altas torres pretensiosas São Paulo não ensinou nada
A quase ninguém

Mas ali onde o rio as nuvens os pássaros
Logo adiante na estrada esburacada os lagos pastagens milharais
A vista que a vista não alcança
O sol nascendo atrás do morro
Pintando de azul os verdes infinitos
As araucárias imponentes a neblina
a velha casa de madeira desbotada
onde o fogão a lenha adivinho

Ali onde o tempo não corre nem faz questão 

domingo, 16 de julho de 2023

É isso

 


Nunca fez tanto sentido a frase aquela, você pode viver anos com alguém e de repente, descobrir que esse alguém é o mais perfeito desconhecido.

É que a vida é esse fluxo constante, que não deixa o eu de agora ser igual ao de antes, a não ser que eu me agarre firme nas minhas convicções e ideias, e ainda assim, as enxurradas. As intempéries, os ventos, as revoluções.

Levam as certezas para lá, feito a música do Chico, meu hino de vida, a roda viva.

Eu de hoje mal conheço a eu de ontem, ainda assim tenho a pretensão de achar que conheço o outro, quanta empáfia da minha parte, ou ingenuidade, quiçá, ainda assim.

Não reconheço.

A dor que a gente sente quando o amor se transforma em estranheza. Quando ele se vai, desgarrado. É uma dor ardida, porque a gente sempre acredita.

Acredita que o amor é mais forte que a passagem do tempo, é mais forte que a chuva e o vendaval, a gente acredita que na essência ainda somos os mesmos, aqueles que nasceram da mesma mãe e do mesmo pai, ainda que caminhos cruzados se descruzem, se desviem em vias lindeiras, ainda assim. Haveria de restar o que foi. A origem. O que somos, isso e aquilo, e o amor. Feito bússola, ou casa. Para onde voltar. O norte. Mas não. Não. 

No fundo, sabemos que a história não se apaga, apenas se cobre de silêncios.

E mágoas. As malditas águas, os véus, inúteis lágrimas. 

As despedidas em vida são sempre cruéis.

Algumas vezes, necessárias. Mas sempre cruéis.

Que Deus é esse, me diz. Que não se chama AMOR?