domingo, 21 de julho de 2013

O Alemão Barbudo

Vou contar uma história de amor. Não destas histórias de príncipe e princesa, e felizes para sempre, que todo mundo conhece. É uma história diferente.
Era uma vez um alemão barbudo, que morava numa cidade bem distante, junto ao mar.
Na realidade, ele não era alemão da Alemanha. Era brasileiro mesmo, só que com sangue e jeito de alemão.
O nosso alemão, que não era alemão, morava nesta cidade longínqua, onde trabalhava como médico, jogava tênis, e tinha quatro lindos filhos. Que nunca podiam comer pão dentro do carro, por causa dos farelos. Nem atrapalhar a sua sesta sagrada. Isso costumava deixar o alemão furioso.
O alemão barbudo tinha cara de brabo por causa de suas sobrancelhas grossas. Bom, ele era um pouco brabo, de verdade, e suas sobrancelhas tinham vida própria. Quando elas tomavam o formato de um V, podia-se apostar: vinha tempestade. O rosto ficava vermelho, e a voz, bem forte, como um trovão. Dava até um pouco de medo.
O alemão barbudo tinha conceitos muito bem definidos, a respeito de certo, errado, moral, e ética. Eu diria  que ele tinha muitos preconceitos. Alguns, até bastante rígidos. Era severo, o nosso alemão. Muito correto e generoso, isso ele sempre foi. Um coração maior que ele. Mas muito rigoroso, principalmente quando os filhos eram crianças, ainda.
Ele era engraçado também. Divertido. Às vezes, quando estava com paciência, a pedido das filhas e das amigas, colocava todas dentro do carro e saía para passear. Passava na frente da casa dos "guris", e, para desepero geral, sempre buzinava. Gostava de implicar. Era o maior mico, numa época em que nem se falava nisso. Ele tinha um grande senso de humor.
Com a chegada da adolescência dos filhos, o alemão barbudo sofreu um bocado. Todos aprontaram bastante, sem exceção. E ele lá, como uma rocha, lidando com as crises existenciais de seus anjinhos. Firme, e presente, sempre.
Dizem por aí que água mole em pedra dura, tanto bate até que fura, né? Acho que foi isso que aconteceu com o nosso barbudo. De tanto "baterem" naquela rocha, ela foi amolecendo. Aparando as arestas, e modificando suas crenças.
A vida trouxe surpresas para aquele barbudo tão alemão, e ele, aos poucos, e como poucos, foi se moldando a elas. Não acredito que tenha sido fácil, nunca são fáceis as mudanças. É preciso se despedir de velhos e arraigados hábitos. Abrir-se para o novo, como se fosse um parto, doloroso e difícil. Homens não dão à luz, literalmente. Mas o alemão barbudo o fez, de forma figurada e, ao mesmo tempo, muito mais real. Viu nascer outros filhos que não os imaginados, e talvez sonhados, mas os seus verdadeiros filhos. Viu formar-se um novo núcleo de família, não a talvez esperada, mas concreta e fundamentada. Participou e aceitou. Sempre, desde o começo, aceitou. Talvez sem entender. Não é preciso entender para aceitar. Mas é preciso amar.
Só o amor aceita, e acolhe. Só um amor incondicional, um amor pelo que é, faz isso. Um amor como o dele.
O alemão barbudo é avô do meu filho, que herdou suas sobrancelhas grossas. Que nunca teve medo do V que elas formam. Ele não tem medo do seu melhor amigo, do seu grande companheiro. Só respeito.
O alemão barbudo é  avô da bela Isabella. Ele baba por ela. Dá banho e até troca fraldas. Ela adora puxar aquela barba, sem o menor respeito.
O alemão barbudo hoje completa 70 anos de idade. Um guri, de bicicleta.
O alemão barbudo é meu pai. Dele, eu herdei muita coisa. Valores, a paixão pelos livros, pelas viagens, um certo jeito para escrever, a minha profissão. Mas herdei algo ainda maior, e muito mais valioso.
O alemão barbudo me contou que a história nunca acaba antes do fim. Me mostrou que a vida é sempre recomeço. Com ele aprendi que nunca é tarde demais. Para nada.
O alemão barbudo foi quem me ensinou o que significa AMOR. Este daí mesmo, com letras maiúsculas.
Por tudo isso, obrigada é muito pouco, paizinho. De qualquer forma, o que posso dizer, além disso?
 Obrigada. Te AMO!
Feiz aniversário....Prost!


Dani Altmayer



quinta-feira, 18 de julho de 2013

Qual a Cor do seu Catarro?

Como podem dizer que um médico não conhece a realidade?
Poucas pessoas conhecem tão bem a realidade quanto um médico.
Aliás, ninguém se forma em medicina sem antes levar um choque de realidade.
Que começa lá no começo. Primeiro ano. Cadáveres. Os desconhecidos que doam, sem saber, seus corpos para serem estudados. Alguém consegue esquecer o primeiro dia de uma aula prática de anatomia?
Essência de formol é o perfume do primeiro ano. Os sonhos são com músculos, ossos, nervos, artérias e veias. Tratados gigantes e atlas coloridos, são a leitura de todas as horas. E eles nada tem a ver com aqueles corpos acinzentados, que passamos a conhecer profundamente. Muitas vezes é preciso adivinhar. Delicadas (ou nem tanto) incisões, debridamentos, cortes. Mergulhamos em um universo paralelo, nos isolamos do mundo, para conhecermos a fundo aquilo que será nosso material de trabalho para sempre: o corpo humano. O corpo humano e suas misérias. Seus mistérios.
Passamos horas de nossas vidas acadêmicas examinando tecidos, secreções, urina e fezes. Criamos intimidade com vírus, bactérias, vermes e afins. Largamos amigos, namorados, a vida, para fazermos estágios, plantões, congressos e cursos. Esquecemos a ficção para enfiar o nariz em grossos livros de patologia, de semiologia, de fisiologia. Usamos nossos parentes como cobaias para treinar nosso exame. Decoramos nomes de remédios, fatores de risco, tipos de febre.
Atendemos pacientes, na maioria de origem humilde, (na maioria pacientes do SUS), e com eles travamos longas conversas. Anamneses. Perguntamos a cor do catarro, o cheiro do xixi, o jeito da dor, o nome do filho. Queremos saber a profissão, a alergia, e o sonho de cada um. Quebramos a cabeça em busca de diagnósticos e de tratamentos mais adequados. Sofremos as perdas. Comemoramos as vidas.
Aprendemos que, não importa a cor, o sexo, ou o status social: o intestino e o fígado são os mesmos.  Coração partido também.
Todo mundo é igual por dentro.
O curso de medicina desmancha qualquer romantismo. Acaba na hora com a ilusão. É mão na massa, e a massa nem sempre cheira bem. É cabeça metida nos livros. É olho clínico, sem nunca poder ser cínico. É 24, 36, 72 horas de plantão, os pés doendo e os cabelos sujos, um lanche requentado e uma cama fria.
Ninguém sai do jeito que entrou. Ninguém se forma em medicina sem se transformar. Sem passar pelo estágio obrigatório da realidade. A mais sórdida e cruel verdade. A realidade das mazelas, do corpo e da alma.
Isso não faz do médico um santo. Médicos não são deuses, longe disso. São apenas seres humanos, a serviço de outros seres humanos. Em qualquer condição.
São gente. Mas gente formada em realidade.
Não são os médicos que não a conhecem, como andam dizendo.
São as pessoas que não conhecem a realidade de um médico.

Dani Altmayer (médica)



terça-feira, 16 de julho de 2013

Banho de Chuva


A menina, de galochas, toma seu primeiro banho de chuva.
Extasiada, com as mãozinhas em concha, tenta segurar a água que cai do céu, quentinha, sobre a sua cabeça.
Em vão. A água fica um pouco, forma uma pocinha na palma da sua mão, depois escorre por entre os dedos e some na terra úmida. Sugada pelo solo, sedento.
Ela quer segurar o momento, tão grande o prazer. Sem saber que a água, como tudo que vem do céu, não fica para sempre na mão da gente. Não dá para reter algo tão precioso.
A água está sempre de passagem.
Quando eu olho para você, me sinto como a garotinha tentando segurar a chuva.
Eu sei que não dá, mas tento mesmo assim. Gosto de sentir a pocinha, de deixar a água escorrer pelos dedos, pelo corpo, pelos cabelos. Gosto de abrir a boca, e beber, até me afogar de você, e saciar, minha língua e meus olhos.
Quando tenho você, eu sou a mão em concha, e também o solo, sempre com sede. Sou por onde você corre, molha, e penetra. Depois evapora. Sou a terra, e você é a água.
Quando estou com você, sou aquela menina. Brincando na chuva.

Dani Altmayer

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Carta para Isabella 2

música que cantávamos para você dormir
Bella,
hoje faz um ano que você chegou. Passou tão rápido.

Lembro como se fosse ontem. Foi uma noite longa, à tua espera. Todo mundo participou um pouco.
Você nasceu em um mundo conectado, e, por causa disso, pudemos acompanhar as tuas mães neste momento tão importante.

Todo nascimento é um amanhecer. Cada um de nós estava em um lugar diferente do mundo, mas ninguém dormiu naquela noite. Você amanheceu em cada um de nós, no dia 12 de julho de um ano atrás. Estávamos juntos, mesmo estando longe. Porque é possível estar perto sem estar do lado. E o contrário também. O que dá liga é o amor.

Tem sido assim, desde então. Nestes doze meses que formaram o teu primeiro ano, estivemos sempre com você. Todos os dias da tua vida. Ao vivo, umas poucas vezes. Menos do que gostaríamos. Mas sempre, com você. Todo dia, com você.

Graças a este mundo super conectado de que te falei, e que para você já é a coisa mais natural, pudemos acompanhar teu crescimento. E você cresceu, meu amor. Desde aquelas primeiras cólicas até os primeiros passos. Desde o primeiro sorriso, e você meio que nasceu sorrindo, né, até a primeira palavra. Que foi em português. "Cadê?"  Reflexo da tua alma curiosa e vibrante, da tua fome de conhecer.
 Foi um ano de estreias. Quantas primeiras vezes cabem em um ano? Nunca tantas quanto neste início da vida. Aproveita, meu anjo. Primeira vez é coisa muito especial.

Tuas quedas, tuas conquistas, tuas febres, tuas comidas. Tuas gracinhas, teus gostares, teus desgostos. Todos teus pequenos grandes acontecimentos tiveram a nossa participação. Vimos você mudar, a cada momento, e se tornar esta garotinha linda e de personalidade forte. Uma menina feliz. Iluminada, cheia de energia. Choramos de saudade e emoção. Mas um choro bom, sabe? Que são os melhores, aliás. Nem todo choro é triste, você logo vai descobrir. Sofremos junto tuas (poucas) dores e vibramos com tuas (muitas) alegrias. Sorrimos com você, e por causa de você. Você nem imagina, mas tantas vezes tua risada gostosa transformou nossos dias.Tantas vezes teus olhos claros os encheram de luz. Todas as vezes.

Todo dia temos você, bem juntinho de nós. Sim, porque, como no título de um livro bonito que a tia Dani lia quando criança: "longe é um lugar que não existe." O amor tem estes superpoderes. É magia de verdade. Ele engole as distâncias, teletransporta, dá asas ao coração. Quando a gente ama, fica como encantado. E o longe desaparece.

Não duvida nunca deste amor, tão certo. Tão perto. Ele é teu, por direito. E hoje, ele também faz aniversário. Este amor, que nasceu com você, e só faz crescer, a cada instante. Como você.

Desde que você amanheceu na gente, Isabella, você tem sido sol. Todo dia com você é como um dia de sol.

Happy Birthday, dearest Bella!

Um beijo doce, feito de cor, recheado de amor e com cheiro de flor.

     Ass: tua família

Dani Altmayer

terça-feira, 9 de julho de 2013

Deslocamento

- Para onde der, eu preciso fazer xixi!
- Você tem certeza? Não dá para esperar mais um pouco, até chegar no bar do Chico?
- Não, não dá.
- Ok.
  Ok, a-ham Tá emburrado. Melhor ficar quieta. Eu sei, é que ele tinha toda a viagem planejada, nos mínimos detalhes. Viagem modo de dizer, porque não dá para chamar de viagem uma visita à casa da sogra, logo ali, três horinhas. Procuro, rápido, um sinônimo para viagem, no google. (Tenho esta mania). Deslocamento, bem mais apropriado.
  Então, ele tinha o deslocamento todo organizado. Na véspera, abasteceu o carro, comprou água e chiclete. Ele odeia chiclete, acha feio, comprou para mim. Eu não consigo viajar sem água e chiclete. Então, ele antecipou. Parada só no bar do Chico, para um café. O bar, que fica exatamente no meio do caminho. Tudo calculado para chegar na hora do almoço. Eles almoçam ao meio dia. Em ponto.
   Esqueceu do xixi. Eu fiz antes de sair de casa, como ele pediu. Mas não sei o que acontece em viagens. Deslocamentos. Enfim. É entrar no carro, no avião, no ônibus e pronto. Batata. Vontade de fazer xixi. De trem nunca andei, mas aposto que seria a mesma coisa. O que eu posso fazer, deve ser algum tipo de distúrbio, sei lá. Não tenho culpa. Ele não entende, se irrita. Desta vez, eu até sei, acho que foi por causa da água. Tomei a garrafinha toda, e metade da outra, assim que entrei no carro. Também, com a ressaca do vinho de ontem. Explico isso para ele. Ele resmunga que eu bebi demais. Melhor ficar quieta, mesmo.
  Ele não gosta de mudar planos. Paradas inesperadas. Imprevistos. Coisas que acontecem com todo mundo, mas não com ele. Com ele, os riscos são sempre calculados. Ele é engenheiro.
  Ele faz planilha. Juro. Receita, despesa, extras, poupança. E segue a planilha! SEGUE!
  Ele tem agenda. Para o mês todo. Ele segue a agenda.
  Brinco que ele engoliu um relógio quando era criança. Ou tem sangue inglês, algum antepassado. Nunca se atrasa, nunca corre, a velocidade é sempre constante. E dá certo. Ele é todo cronometrado.
  Ele tem TOC, eu acho. Não diagnosticado, mas tem. Transtorno obssessivo compulsivo. Por que outro motivo ele lavaria pratos, copos e talheres supostamente limpos, sempre, antes de usar? Em casa ao menos. No restaurante ele passa o guardanapo, discretamente. Eu já nem lavo mais a louça, deixo tudo com ele. Detesto trabalho dobrado. Se sabe fazer melhor, que faça, então. Minhas unhas agradecem.
  Falando assim parece que estou criticando. Que eu me irrito com o TOC dele. Por que só pode ser TOC, né? Ou o que, então? Mas não, eu acho fofo. Adoro olhar para o nosso closet, todo organizado. Lembra um arco íris, em degradê. Ele que arruma.Não tenho do que me queixar, quando minhas amigas reclamam dos maridos, que esquecem de baixar a tampa da privada, deixam a toalha molhada em cima da cama, meias espalhadas, e tal. Só me incomoda um pouco a mania de limpeza, esta coisa de tomar banho imediatamente depois, sabe.
   Silêncio absoluto. Sei que ele está furioso, pelo jeito como morde o canto da boca. Aumentou o volume da música. Clássica. Sinto um pouco de culpa, sempre sinto. Por atrapalhar seus planos. Ele é tão cuidadoso com esta questão de horários, como já mencionei. Agora vamos nos atrasar. Ele vai precisar ligar para a mãe. Nada de meio dia, mais. Enfim, acontece.
  Não quero pressionar, mas a vontade de fazer xixi está ficando insuportável.
- Amor!
- Calma, estamos chegando - responde, terminando a volta na quadra e estacionando o carro na frente da nossa casa..
   Ele diz para eu não demorar. Passo a mão nas chaves, e saio correndo. Mas ainda consigo escutar o que ele fala, entredentes: "da próxima vez, lei seca. Nada de água para você."
   Só no bar do Chico, talvez.

Dani Altmayer

domingo, 7 de julho de 2013

Guimarães Rosa


"Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou." (pág.15)


Grande Sertão: Veredas
Guimarães Rosa

Dia Bom Por Dentro



Tem dia que tem música cantando dentro da gente.
E a gente dança por dentro, mesmo sem saber dançar.
Tem dia que o sol brilha dentro.
E a gente sente calor, mesmo sem estar.
Tem dia tão quentinho, por dentro. Tão gostoso.
E a gente se sente assim. Uma janela, aberta.
Com vista para o mar.

Dani Altmayer

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Salute

No meio de toda a bagunça e confusão, eu achei você. Quero dizer, não exatamente você. Uma foto sua. A que tiramos, no penúltimo dia. Sempre foi a minha favorita. Você e seu sorriso gigante, de corpo inteiro, fazendo covinha. Tão menino, ainda, tão cheio de sonhos. Quando se é jovem, o espaço para sonhar é ilimitado, não é? Depois é que vai apertando. Nesta foto você tinha o quê, uns 20 anos? Lembro que você fazia sempre a mesma pose, cabeça inclinada, a franja meio que caindo sobre seus olhos, deixando uma sombra no seu rosto. Você era um pouco tímido. E muito lindo.
Engraçado eu achar você aqui, agora. No meio dos meus escombros. Há anos não pensava em você. Não que eu tenha esquecido. Nunca esqueci, não poderia. Só te guardei. Arquivei, sabe? Nem lembrava de ter esta foto, ainda. Nunca fui muito organizada mesmo, do tipo que faz faxina e arruma a casa. Do tipo que limpa a vida, que bota pra fora. Sou mais do tipo que vai jogando as coisas em caixas, gavetas, fundos de armário, embaixo do tapete. Não me desfaço de quase nada. Poderia dizer que é apego, mas nem é. É preguiça mesmo, um pouco de procrastinação, sei lá. Eu vou levando.
Por isso esta confusão agora. Bem feito, já devia ter aprendido, há muito tempo. A vida sempre cobra a conta. Não existe almoço grátis. Agora estou eu aqui, quase literalmente soterrada por impressos, fotos, anotações, documentos, listas de supermercado, notas fiscais e comprovantes de débito. Carteiras de vacina, passaportes vencidos, contas pagas, cartas antigas, novelos de lã. Tudo espalhado pela casa, no chão, nos sofás, na mesa da sala, na cama. Só a cozinha escapou. Um verdadeiro tsunami de papéis.
Não pense que fui eu quem fez isso, não, claro que não. Eu sempre deixo tudo como está. Foi ele. Abriu gavetas, derrubou livros,  esparramou a nossa vida pelo chão. Tudo por causa de um papelzinho à toa. Que estava na gaveta do banheiro, afinal. Tão desnecessário, este ataque. Eu achei. Ele parecia um louco, gritando. Não deixou papel sobre papel. Depois saiu, levando uma maleta, a escova de dentes, e batendo a porta. Não consigo nem sentir raiva, só desânimo, e cansaço. A sobrevivente de uma batalha sem vencedores.
Penso em jogar tudo de volta em algum lugar. Numa mala, que boa idéia, e depois sentar em cima para fechar. Esconderia a mala, num canto qualquer, e rezaria para não precisar abrir. Nunca mais. E tomaria um vinho para relaxar. Poderia fingir que nada aconteceu, que está tudo como sempre, na mais perfeita ordem. Poderia, sim. Fingir é a minha especialidade. Faço isso há anos. Ligaria para ele, pediria desculpas, talvez não. Só diria para deixar de ser bobo. E ficaria tudo bem. Sempre fica.
Mas, justo quando estou prestes a fazer isso, dou de cara com você. Ou melhor, com a sua foto. Só pode ser um sinal. Você aparecer, depois de tanto tempo. Oásis no meio do caos. Itália. Sardenha. Parece que foi em outra vida, com outra pessoa. De certa forma, foi em outra vida. E eu era outra pessoa, não era? Era um arremedo de mim mesma, um protótipo. Ou arremedo é o que sou agora? Difícil dizer. Mais de vinte anos se passaram. Eu me perdi de você, num tempo em que era fácil se perder de alguém. O mundo era um gigante. Não era assim, global.  Eu me perdi de você quando tive medo.
- Quer casar comigo?- você perguntou, em italiano. Estávamos no aeroporto, éramos muito, mas muito jovens mesmo, e eu disse não. Agora, não. Voltei para o Brasil, trazendo muitas recordações, algumas fotos e um ursinho fofo, de pelúcia, seu presente de despedida. O Lucca. Que não existe mais, foi comido pelo cachorro, alguns anos depois. As fotos, perdidas, em uma caixa qualquer. As cartas minguaram, com o passar dos anos, assim como a nossa memória. O tempo, ao passar, é sempre outono e inverno. Ele amarela as lembranças, e depois esfria. Sem piedade.
Sua foto não está amarela, no entanto. Incrivelmente, está até bastante nítida. O mar, atrás de você, é da cor de seus olhos, que não consigo ver. Verde esmeralda. A areia, branquinha, o céu, muito azul. Um lindo dia de verão. Nós tínhamos planos. E não tínhamos prazos. Naquela época, você vê, minha vida cabia numa mochila. Meus papéis, todos, em uma carteira.
Olho para a sua foto, e vejo algo há muito perdido. Você sorri para mim, eu sorrio de volta. Olho ao redor, e não consigo mais fingir. Não posso mais fugir. Vai dar um trabalho danado, tanto tempo, e tanto lixo. Toda esta confusão. Abro um vinho, mesmo assim. Vinho italiano.Tim tim.

      Dani Altmayer

Metade

Era um apartamento pequeno, quarto e sala, uma cozinha americana. Na sala de paredes coloridas, a tinta já estava meio descascada, e alguns pregos jaziam, solitários, alheios à sua função. A estante despojada, a enorme TV, e um sofá, sem almofadas. Na pia da cozinha, uma pilha de pratos sujos, fazendo aniversário. Algumas garrafas de vinho, vazias e um cheiro estranho, vindo da geladeira. No quarto, a cama desfeita, uma toalha molhada, embolada. Meias pelo chão, roupas jogadas na cadeira, perdidas do armário. O armário, despovoado, pela metade. Metade das prateleiras, vazias. Metade das gavetas, abertas. Cabides desabitados, bem mais da metade. Um armário em lacunas, todo ele pela metade. Todo dele, exceto por um detalhe. Abandonada, meio escondida, no meio de ternos, camisas e gravatas, uma delicada blusinha de renda. Esquecida.

       Dani Altmayer

Obs: exercício sobre cenário, da oficina de escrita criativa.