quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Alguns mais




a seca mata a enchente mata a guerra

mata mais e quem não morre tem sede tem fome tem medo o medo mata o ódio mata se não mata fere sangra arde dói queima inunda a vida esse frágil fio esse frágil rio a desesperança mata se não mata fere
feridos estamos todos alguns muito mais as crianças as mulheres morrem antes ou coisa pior
a mentira mata fere arde dói queima inunda sangra o amor salva cura ameniza atenua dizem mas o amor é coisa rara assim de grande de inteiro de quesito humanidade de cunho de irmão de amor sem fronteira sem rosto sem cor sem pátria sem distinção
desse amor há carestia não há notícia
a religião mata o fundamento mata o preconceito a ganância a estúpida guerra matam se não matam todos ferem e feridos todos estamos alguns muito mais

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Cores


 

É tudo tão branco aqui. Eu acho bonito. Vocês, as enfermeiras, os doutores, são todos muito simpáticos. Nunca estive num hospital antes. Pari os cinco em casa mesmo. A Tonha que me ajudava. O marido ou tava fora pescando, ou na cachaça. A cachaça foi que matou ele, sabe? Morreu cuspindo sangue, nos meus braços. Fiz a cova na beira do rio, pode não parecer agora, mas esses braços tinham força. Foi pouco antes daquela enchente, não lembro o ano. Os meninos já tinham se ido, um para o colo de nosso senhor, o anjo Joaquim, os outros para a capital. Tudo macho, é assim, tivesse parido alguma menina não estava sozinha agora. Tem neto que não conheço. Desculpa se falo demais, tanto tempo que a Tonha se foi, era eu e os cahorros, as galinhas, o gato Tomé. Com o gato Tomé eu conversava bastante. Fiquei triste quando se foi, enterrei do lado do marido. Acho que gostava mais do gato que do Zé. Homem suga a gente, sabe? Ainda mais quando é cachaceiro. Essas rugas aqui, você pensa que é do sol, é da lida na roça. Que nada. Pode não parecer agora, mas eu era a mais bonita da vila. Saí de casa com 15 anos, atrás de homem pescador. Homem pescador não presta, a mãe dizia. Plantei milho e criei galinha a vida toda. Nunca bebi uma gota, tinha o corpo forte que só vendo. Meu vício era só a palha mesmo. Gostava de fumar na varanda, vendo o dia acabar, ouvindo rádio às vezes, às vezes ouvindo a tristeza do rio. Agora os doutores falam que essa doença é disso. Eu acho que é de outra coisa, sabe. Que eu tô magrinha assim é de saudades.
É tudo tão branquinho. Mas é bonito.


Texto para a oficina de escrita

Imagem: Entre folhas, óleo sobre tela, de Augusto Vieira