sexta-feira, 31 de maio de 2013

Só Comigo


                        

                            
A vida da gente é engraçada. É cheia de paradoxos.

Quando eu era criança minha mãe brigava muito comigo. Ela dizia que eu era mandona. Falava que ser mandona era uma coisa muito feia. Argumentava a favor da livre escolha. Dava discurso sobre direitos individuais. Discorria, por horas, sobre como cada um tem direito de fazer o que bem entende. Defendia meus amigos das garras de uma pequena ditadora. Eu não concordava com ela.

Era eu quem organizava as brincadeiras. Decidia quem ficava em qual time. Eu era a recreacionista das minhas própria festas. A diretora da minha vida. E a atriz principal. Os outros eram coadjuvantes no meu filme. Cada um com um papel. Bem definido. Por mim. Pensando bem, era a diretora da vida deles, também.

Conforme fui crescendo, e conforme cresciam as broncas e castigos da minha mãe, fui aprendendo a disfarçar. Continuava mandona, ou assim pensava, mas me tornei uma mandona discreta. Não gritava mais com ninguém.  Era extremamente sutil.  Mas, ainda era eu quem organizava tudo, desde festas até trabalhos em grupo. Nestes, aliás, eu ficava com a maior parte, ou com a parte mais difícil, ou com todas as partes. Afinal, eu sabia como fazer, sempre.A última palavra tinha que ser minha. Assim diziam. Assim eu pensava.

Até a chegada da Márcia. Foi quando acabou minha ilusão. A Márcia entrou na minha vida há 12 anos. Morena, alta, grandona. Um sorriso lindo. Veio para cuidar do meu (então) bebê e foi ficando. Trabalha lá em casa até hoje. A Márcia é uma líder nata.  É um misto de administradora, cozinheira, faxineira, amiga e secretária. Uma faz tudo. É ela quem chama o hidráulico, quem supervisiona a pintura, quem leva meu filho ao dentista, quem marca unhas para mim. É ela quem pede orçamentos, pechincha, faz listas. Foi ela quem tirou as fraldas do meu filho. Em três dias. Isso depois de eu ter tentado durante o mês de férias inteiro. É ela quem cozinha, e põe sal de mais. Ou de menos. Porque ela não prova comida. Não adianta falar. O almoço é sempre uma surpresa, para o bem ou para o mal. É ela quem leva o cachorro para tomar banho, quem põe limites na gata, quem faz meu filho guardar os tênis. É ela quem mantém a ordem.

Existe uma casa com a Márcia, e outra casa sem a Márcia. Nos finais de semana, meu apartamento fica quase irreconhecível. Tem gata pendurada na cortina, cachorro fazendo xixi no tapete do banheiro, sapatos até na geladeira. Vira bagunça mesmo. Mas ela não admite. Não toma os méritos para si. Ela não acha que é ela. Ela sempre diz que sou eu. Há anos ouço a seguinte frase: “é só porque você chegou”. Ou, “é só com você que isso acontece.” Na opinião dela, quando eu chego em casa, eu subverto a ordem.

A gata corre para a sala, no instante em que abro a porta da rua. Ela sabe que a sala é proibida. Sabe que afiar as unhas no sofá da sala é proibido. Mas ela só sabe com a Márcia. Quando eu chego, e porque eu chego, ela esquece. Meu filho sabe que comer salada é importante. Conhece o valor nutricional do brócolis, da acelga, do agrião e do quiabo. Mas só sabe com a Márcia. Quando eu venho almoçar em casa, ele esquece. Só lembra o sorvete com cobertura de chocolate. O cachorro sabe que a lata de lixo da cozinha está interditada para seu focinho peludo. Mas só sabe com a Márcia. Todo domingo ele esquece. Todo domingo eu tenho uma surpresa cheirosa bem no meio da cozinha. Todo domingo, só comigo acontece.

A Márcia tem a mistura certa de doçura e autoridade. Um amigo a chamava, carinhosamente, de Nazi. Ela, ao contrário de mim, nunca grita. Nunca levanta a voz. Nunca se descabela, e nunca, nunquinha, estraga as unhas. Ela só precisa pedir uma vez. Todo mundo obedece. Inclusive eu. Às vezes ela não precisa nem falar.Para a Márcia, basta um olhar. Daqueles.

E eu? Eu descobri que não mando nada. Descobri que tudo acontece quando eu chego. Tudo. Gostaria de poder culpar a minha mãe. É sempre mais óbvio culpar a mãe. Culpar alguém. Adoraria dizer que foi ela quem minou minha capacidade de liderança. Que, por causa dela, eu desaprendi a mandar. Virei submissa. Mas não posso. Não é culpa dela. Nem da Márcia. A Márcia só me mostrou que nem tudo o que parece é. Com ela, finalmente pude compreender como funciona. Entendi: querer não é poder. E nunca vai ser.

Autoridade. Ou você nasce com, ou esquece. Nunca vai ter.

Dani Altmayer

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Ali


"Diz-se que, mesmo antes de um rio cair no oceano ele treme de medo. Olha para trás, para toda a jornada,os cumes, as montanhas, o longo caminho sinuoso através das florestas, através dos povoados, e vê à sua frente um oceano tão vasto que entrar nele nada mais é do que desaparecer para sempre.
Mas não há outra maneira. O rio não pode voltar. Ninguém pode voltar. Voltar é impossível na existência. Você pode apenas ir em frente. O rio precisa se arriscar e entrar no oceano. E somente quando ele entra no oceano é que o medo desaparece.Porque apenas então o rio saberá que não se trata de desaparecer no oceano, mas tornar-se oceano.
Por um lado é desaparecimento e por outro lado é renascimento. Assim somos nós. Só podemos ir em frente e arriscar. Coragem! Avance firme e torne-se Oceano!"
OSHO
Praia de Jeribucaçu-Itacaré_Bahia

Estava hoje lembrando de uma praia, em Itacaré, onde o rio encontra o mar.
Quando o rio encontra o mar, ele deixa de ser. Ele desaparece.
Mas um pouco antes, bem naquele ponto onde eles se entrelaçam, as coisas ficam um pouco confusas. O mar também se torna rio, e não só o contrário. Ali onde ocorre a transição, nada é bem definido ou muito claro. Difícil saber se é um ou o outro. Depende da maré, se vaza, se enche. Tudo se mistura. Toda transição é assim, indefinida por definição. Indistinta.
Ao mesmo tempo, todo encontro é magia. O rio sempre corre em direção ao mar. Não pode fugir de seu destino. E ali, onde seus destinos se cumprem, e se confundem, é onde a vida acontece com força total. Ali, naquele pertencer, encontra-se paz.
Não tem lugar melhor para estar do que ali, no exato instante onde o rio vira mar, e o mar se empresta ao rio. Você prova a água, ela é doce e sal. Quente e fria. De um, e de outro. Dois, e deliciosamente, um.
Não tem lugar no mundo mais bonito do que este momento. 
Ali, onde, mesmo com medo, o rio se entrega ao mar. Se funde, e se dá. Ali,onde a vida cumpre seu destino. Traça seu curso, percorre, se dissolve e absorve. Não tem coisa mais linda do que ver um rio virar mar. E penetrar. Do que ver a vida se cumprir, afinal, e se encontrar. 
Dani Altmayer

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Porque você não gosta

NemvirgulanempontonemparagrafonemacentoNemespaçonemtemponemfimnemlimiteImitando
SaramagoeindoalemsoporquevocenaogostasoparateprovocarSoparafazervocelembrarvocesentirvoce
pensarvocenaomeesquecerSevocenaogostadeleeunaogostodesentirestasaudadequeeusintodevoce
tododiatodahoratodootempootempotodoSoporissoumcastigoporquevoceeoculpadodomeupensamento
morandoemvocedomeudesejominhavontadedeteterDentroforaotempotodotodootempoepontofinal.

Quem sai na chuva



Todos passam apressados. Ninguém quer se molhar. Cada um com seu guarda chuva. Na maioria, pretos. Como o dia. Um e outro, colorido, quebra a monotonia. Ninguém quer se molhar, então todo mundo corre. Esbarra. Atropela. Sem garantia.Não sabem que não dá para evitar. De vez em quando, simplesmente não dá. Está todo mundo molhado. Encharcado. Está o mundo todo, alagado.Toda a cidade, na chuva. O dia se fez noite, e a noite se perdeu da alegria. As lágrimas que não choramos se derramam, na tarde fria. Molham. Encharcam. Alagam. Provocam até ventania. E dobra-se o guarda chuva preto, já sem serventia. Dobra-se e vira do avesso. Como a vida da gente, volta e meia. Como corpo que se curva na dor, vez em quando. Como gente que esbarra no outro, tentando fugir. E atropela, que ironia. Tem gente que tem medo da chuva. Pensa que é ela que escolhe. Ela que encolhe. Eu tinha medo da chuva. Mas ela só faz molhar. Ela lava as ruas que não posso lavar. Carrega a sujeira que não posso levar. Afoga as dores que não posso afogar.
Da chuva não tenho mais medo. Tenho certo medo é do guarda chuva. Que esbarra e atropela. Só o guarda chuva pode me machucar. Descuidado, querendo se proteger.
Da chuva, perdi o meu medo. Pois, como cantou o Raul:" a chuva, voltando pra terra, traz coisas do ar." E eu gosto das coisas do ar. Gosto das nuvens, e das estrelas. Do céu e dos sonhos. "Aprendi com as pedras, que choram sozinhas, no mesmo lugar." É o ciclo da água, o segredo da vida. O ciclo da chuva. E a chuva, é um choro que cai.  É o choro que cura, é um choro que vai.

Dani Altmayer


quarta-feira, 22 de maio de 2013

Gente que Cai

A umidade do ar está em cem por cento. Cento e cinquenta por cento. O chão está molhado, e você escorrega. Sabe que vai cair. Será inevitável. Não existe corrimão, nenhuma mão, nem parede onde se apoiar. Nada em que se agarrar. A queda é certa. O que você faz?  Cai. Mas cai consciente. Cai da melhor maneira possível, tentando minimizar os danos e manter um certo grau de elegância. Uma certa dignidade. Difícil. Não existe dignidade na queda. Ela é sempre, ou ridícula, ou dolorosa. Ou as duas juntas, ridícula, e dolorosa. Falo com conhecimento de causa. Sou especialista em quedas, batidas de pernas, cotovelos e afins. Colecionadora de hematomas.
A queda, na hora em que acontece, é geralmente apenas ridícula. A dor costuma vir depois de algum tempo. Ela é, ou consequência da queda em si, ou da maneira como tentamos evitá-la. Por exemplo, outro dia eu ia cair da escada. Devido a um contorcionismo maluco, deixei de me estatelar totalmente no chão. Resultado, escoriações nas duas mãos e uma dor improvável, e bem forte, na coxa direita. Estiramento muscular. Eu não caí. Mas não faria diferença, se tivesse caído. Talvez até fosse melhor, cair de uma vez. Nunca se sabe, se um hematoma na bunda não seria melhor do que uma perna manca. Talvez, se eu não tivesse evitado a queda, o dano fosse menor. A gente nunca sabe, não tem como saber. Tem horas em que, se é para cair, dane-se. Que se caia mesmo. Para doer de uma vez, e não no dia seguinte, e nos outros após. Nada pior do que dor a prestação.
Cair é falta de atenção. Cai-se por distração. Não adianta culpar o chão molhado, o buraco, o sapato, a chuva. Menos ainda a casca de banana. Desculpa esfarrapada. Tudo isso só ajuda a atrapalhar. Cair é descuidar. Quem cuida, não cai. Ou cai ,mas de leve. Suavemente. Cai na cama. No tapete. Na rede de proteção. Cai nos braços de alguém.
Tem quedas evitáveis.  Outras não. A gente cai desde pequeno. Tentando sentar. Tentando engatinhar, aprendendo a caminhar.Tentando equilibrar-se para ficar em pé. Cai, e levanta, e cai de novo. A cada queda, evitável ou não, ridícula, ou não, a gente aprende. Ou deveria
A gente percebe que tem que estar atento, a todo instante, o tempo inteiro. Para não cair a qualquer hora. Por qualquer bobagem. Para não cair além da conta. Para não se machucar muito feio.
Mas, para haver equilíbrio, tem que relaxar um pouco também. De vez em quando. Deixar a cabeça voar alto, se distrair. Permitir-se sonhar, e quando não der mais, acordar. E então, até cair. Do contrário, corre-se o risco de se ficar rígido demais, duro demais, sério demais. Robôs nunca caem. Gente de verdade cai o tempo todo. E ganha experiência. Flexibilidade. Jogo de cintura. Alguns arranhões e roxos nas pernas.
Gente que cai aprende a levantar mais rápido. Aprende a levantar, quando cai.
Mas principalmente, e porque cair é sempre ridículo, gente que cai aprende uma coisa ainda mais importante. Aprende a não se levar tão a sério. Aprende a rir de si mesmo.
Gente que não ri de si mesmo, não acha graça na vida. Pesa.
Gente que ri de si mesmo aprende a ser pluma. Quando cai.

Dani Altmayer

domingo, 19 de maio de 2013

O Mesmo Sol

Tenho as coxas grossas. Meu pai sempre me dizia: "Lúcia, mulher de coxa grossa tem vontade forte. Sabe o que quer". Tenho as coxas grossas, e o queixo pontudo. Voluntarioso. Mas não tenho vontade nenhuma, há muito tempo. Não sei mais o que quero. Ou melhor, sei, hoje eu queria ser de novo aquela menina de pernas roliças, aninhada no colo do pai, ouvindo suas histórias de marinheiro. Sentindo aquele cheiro de tabaco e cachaça, a voz rouca, me falando de como eu era bonita, e como tudo era possível, e inventando estas frases como se fosse verdade. Mulher de perna grossa tem vontade forte. Eu sempre acreditava nele, mesmo quando sabia que ele estava mentindo. Ele mentia bonito para eu acreditar.
Sentada na cama deste hotel insìpido, minha postura ereta de ex bailarina não combina com o meu estado de espírito. Tem coisa mais estranha do que hábito? O coque, por exemplo, não é vaidade, é costume. A camisola não tem rendas, ou laços, que antes eu gostava. Não preciso mais deles. É simples,e seca, como eu sou, agora. O sol entra pela janela aberta, posso sentir seu calor no meu corpo, mas não posso vê-lo. Apenas adivinho. Não vejo também a paisagem que se descortina à minha frente, suburbana e proletária, como nunca gostei. Mais adiante fica a fábrica em que Henrique veio trabalhar, ele já me levou lá, uma ou duas vezes. Não conheço a cidade, nunca a vi, mas não gosto dela. Não confio em seus cheiros, e seus barulhos. Fumaça e buzina, da fábrica e dos carros. Não confio em cidade que não tem canto de passarinho. Imagino um lugar cinza e feio, e velho. Como eu devo estar. Cinza e velha. Um cidade desbotada, sem contraste, sem luz e sem sombra. Sem árvores. Não que me interesse muito o mundo lá fora, aliás. Só posso imaginá-lo.
Cegueira psicológica. Foi o que diagnosticaram os médicos. Os melhores especialistas a quem meu marido me submeteu. Exames, e mais exames. Remédios e injeções. Peregrinacões, a consultórios e igrejas. Em vão. Finalmente, concluiram o que eu já sabia: não tem nada de errado com os meus olhos. Cegueira conversiva. "La belle indifference", ouvi de alguns. Em francês sempre soa melhor. Mas, quem está indiferente aqui? Eles pensam que eu não me importo. Eu me importo sim, eles é que não sabem. Eles não sabem nada. Eu não me importo de não ver, isso é verdade. Facilita muito. Sabe aquele dito que fala, melhor ouvir isso do que ser surdo? Ah, eu acho que é melhor ser cega do que ver certas coisas. Isso é o que eu acho. Já vi muita coisa na vida. Não parei de ver porque eu quis, isso as pessoas não entendem, também. Não acordei, num belo dia, e, simplesmente decidi: cansei, não quero mais enxergar. Não foi nada disso, nada intencional. Só aconteceu, e eu aceitei. O Henrique não aceita, ninguém aceita, mas eu não me incomodo. Facilita assim, sabe, simplifica. Este quarto, por exemplo, só tem uma cama, um armário, e o banheiro. Precisa mais do que isso? Tudo sempre no mesmo lugar, previsível e organizado. Um dia depois do outro, sem surpresas. Já tive muita surpresa, surpresas demais. O sol na janela, é o mesmo, aqui ou em Paris. Sabe, tanto faz, e isso não é ruim, eles não percebem. É bom. O dia só existe para esperar a noite chegar. Os dias são sempre iguais. As noites não, infelizmente. À noite, quando fecho os olhos, consigo enxergar, algumas vezes. Mas só vejo de olhos bem fechados. Também tenho sonhos que não consigo controlar. Às vezes sonho com eles. Quando grito bem alto, Henrique me dá uma pílula, que me acalma e me cega, novamente. Eu acho que ele também me prefere assim, cega. É mais fácil. Quando digo que me importo, é porque me importo com ele. Um pouco.Ele também me irrita, um pouco, Não sou indiferente. Sou grata pela sua paciência. Ele sempre chega tarde, cansado. Não me pede nada, eu não dou nada. Não tenho nada para dar. Ele quis ficar, não me deixou partir. A escolha foi dele, o problema é dele. Não sinto culpa, por isso não. Só pelo resto. Eu não vejo ninguém, tanto faz agora. Os médicos disseram que foi o trauma. Aconteceu tanto tempo depois. O que eles sabem? Não sabem nada. Nem eu. Sei do dia, do sol na janela, do barulho da rua, do cheiro de borracha e asfalto. Sei da noite que sucede o dia, do dia que sucede a noite, que arrasta o tempo, em semanas, meses, e anos. Isso é o que sei. Uma longa espera, um intervalo entre o nada e o fim. A liberdade. Cada vez mais próxima, posso sentir.
Já desejei muito, tive muitas vontades, fortes, como as minhas coxas grossas. Sempre decidi tudo, e fiz tudo errado. Já tive muitas escolhas, e o que elas me deixaram? Um quarto de hotel. Um marido que não amo. Uma cegueira.Psicológica, ainda por cima. A saudade do colo de um marinheiro que mentiu para mim, e se foi, cedo demais. Outras lembranças que quero apagar. Outras saudades.
 O Henrique chega cedo, hoje.Quer ver outro médico, na capital, já marcou, há meses, a tal consulta. Ele não consegue desistir. Eu sim, porque eu sei. Sei que meus dois olhos não tem nada de errado. Como eu, eles não tem mais nada. Só isso.

sábado, 18 de maio de 2013

A Única Coisa que Não Podemos Saber

Ela tinha que tomar uma decisão. Decisões são sempre difíceis. Escolhas são difíceis. Tem gente que passa a vida toda fugindo delas. Ela mesma, chegou a dizer que preferia não ter escolha alguma a ter que tomar uma decisão. Perguntou para mim: como eu sei que vai ser melhor? Você não tem como saber. Pode ser melhor, pode ser pior. Não existe comparação, mania que a gente tem de comparar. A única certeza é que vai ser diferente. E  isso teria que bastar.
Porque a gente tem a estranha mania de querer ter certeza de tudo, o tempo todo, sendo que a única coisa que não temos MESMO como ter nesta vida é certeza de alguma coisa. (com exceção da morte, ok). "Faz tempo que a gente cultiva a mais linda roseira que há, mas eis que chega a roda viva e carrega a roseira pra lá."Bem assim, como diz o Chico, a vida é  roda - viva. Toda hora nossas certezas e convicções são carregadas, para cá e para lá. Jogadas na lata do lixo, pisoteadas, sem dó nem piedade. Todo dia uma revelação, ou muitas. Um encontro, um desencontro, um reencontro. Uma paixão, uma decepção. Um novo emprego, uma despedida, uma iniciativa. Desistências, quebras, estragos e consertos. Música e barulho, silêncios. Uma gripe, uma doença, um coração partido. Uma sopa, um abraço, um coração fortalecido. A gente nunca sabe o que o dia vai trazer. O que a vida vai levar. Não existem certezas, mas as desejamos tanto, as perseguimos continuamente. Paralisamos por elas. Por não sabemos se vai ser melhor, não fazemos, e pronto. Evitamos os caminhos com encruzilhadas para não termos que decidir. Mantemos a ilusão do controle, até o momento em que a roda gira, mas gira tanto, que ficamos sem opção. Ela nos carrega, arrasta, para lá, tontos,para o meio da bifurcação. Aí, não tem jeito: ou decidimos, ou desistimos.
Para toda escolha, uma renúncia. Só pode ganhar quem estiver disposto a perder. Somos como jogadores nesta caixinha de surpresas chamada vida. Fazemos nossas apostas, corremos riscos. Erramos e acertamos.Às vezes parece que erramos mais do que acertamos. Mas acho que é só impressão. A coisa deve ser equilibrada, pelo cara lá de cima. A gente é que não vê direito. Ganhamos, depois perdemos. Não se pode ganhar sempre. Não se pode ganhar todas. E aí que está a graça, mesmo que não pareça nada engraçado, muitas vezes. Porque não se pode perder todas, do mesmo jeito. O negócio é experimentar, tentar, quebrar a a cara e ser feliz, aqui, ou mais adiante. Foi isso que respondi para ela: vai, mesmo assim.Sem garantias. Sem conseguir prever, sem poder prevenir. Sem medo, e sem certezas. Tudo é possível. Viver é isso. É não saber.
Dani Altmayer

sábado, 11 de maio de 2013

Uma noite sem fim

Tarde da noite e tarde demais. Um grito na  minha janela me acordou. Talvez tenha sido sonho. Nâo sei. É sempre difícil acordar de um sonho. Distinguir da realidade, enxergar nas sombras.
O grito despertou em mim um pranto reprimido. Um choro visceral. Lembrei de lágrimas, esquecidas.
Chorei. Por mim, e por você. Por todos estes que passaram por aqui. Todos estes que choraram em mim.
Chorei. De frustração, de saudade, de dor. De todas estas dores que passaram por aqui. Todas estas dores que doeram em mim.
Chorei  de solidão, de despedidas, de falta de mãe. De todas as mães que passaram por aqui. De todas estas mães que hoje faltam em mim.
Uma menina sem um abraço. Sem um abrigo. Sem seu amigo.
Encolhida, de frio e cansaço. Pequena, muito pequena.
Uma mulher assustada por um grito. Acordada no meio do sonho. Uma mulher- menina.
Tremendo de tanto esperar, exausta de não saber.  Com medo de tanto sentir.
Vulnerável. Como a serpente, quando troca a pele para poder crescer.
Pele morta. Entranha, exposta.
Por pele nova, mais grossa, mais forte.
Vai demorar mas vai nascer. Mais uma vez.
Alvorada.
A luz, e a garganta, entrecortadas. Amanhece o silêncio.
A noite, interminável e estranha, finalmente se desfaz. Em mil pedaços, como num caleidoscópio de dor.
Em pedaços, como um caleidoscópio de mim.

Dani Altmayer

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Se, então.


Se a vida é um imenso jardim, onde existe de tudo,  desde flores lindíssimas até ervas daninhas e plantas carnívoras, venenosas, então temos que ter cuidado com o que a gente planta. Porque, se tudo é questão de plantio e colheita, por que reclamamos tanto depois? A escolha é de quem? Você planta um nabo e espera colher uma cenoura. Você planta uma roseira e se queixa dos espinhos. Você não planta nada e fica puto da cara quando não cresce nada.
Se toda ação gera uma reação, se tudo é causa e consequência. Se laranjeira não dá melancia. Se em uma pimenteira não nasce um amor - perfeito. Se você esqueceu do adubo, como pode reclamar que não vingou? Se o solo é seco ou árido, e você não regou. Se plantou no lugar errado, e não deu. Se plantou no lugar certo, depois esqueceu.
Se tudo é um eco, e você recebe de volta tudo aquilo que enviou. Se o mundo é um bumerangue. Se você adota um gato, querendo um cachorro. Se você bota sal, mas quer muito doce. 
Se você repeliu, quem vai se aproximar? Se você se escondeu, quem vai te achar? Se você diz não, quem pode adivinhar que sim? Se você tem preguiça, quem vai fazer, então? Alguém? Se você planta solidão e reclama,  a culpa é de quem?
Uma amiga me disse, anos atrás, subvertendo a ordem dos fatores: "a gente planta aquilo que a gente colhe". Fatores trocados, produtos inalterados. Conheço bem esta equação, do se, então. São variáveis previsíveis. Resumindo: o plantio é sempre meu. A colheita, também.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Rima pobre

É tanto amor e flor neste jardim.
Tanta flor perfeita.
Tanto amor imperfeito.

Tanto  amor querendo ser flor.
Tanta flor que só quer seu amor.
Uma rima sempre igual, quase banal.

Numa conceituação poética, ancestral.
Mais antiga que andar pra frente.
Que insiste, há tempos, em comparar.
Martelar, na cabeça da gente.
Amor com flor, flor com amor.

Fragilidade, pureza, espinhos e tal.
Delicadeza, beleza, a velha história:
Que sempre tem que regar. Cuidar.
Blá blá blá.

Ora, faça-me. o favor.
Se não fosse a rima, ninguém diria.
Jamais pensaria. No máximo, desejaria:
Ganhar uma flor do seu amor.
E já bastaria.

Mas não! O amor, uma flor?
Quanta insistência.
É tanta confusão que o colibri decidiu.
Resolveu mudar.
Se amor é mesmo flor.
Não se chama mais beija - flor.
De hoje em diante, atende por outro nome.
De maior imponência.
Adotou um codinome, agora é beija-amor.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

À Espera


Te leio e tuas palavras percorrem minha espinha.
Se alojam, lá embaixo. Causam dor e prazer. Prazer e dor.
E é bom.Eu gosto.Aumenta minha fome, minha sede, minha ânsia.
Testa os meus limites, todos. Suave tortura.
Faz frio lá fora, o primeiro friozinho de outono. Mas eu não sinto.
Meu corpo é quente, à espera do teu.
Passo o dia em transe, a noite em  claro. O tempo parece ter ficado mais longo, as horas mais cheias.
A espera prolonga os dias, alimenta o desejo, enche de saudade.
Tem um gosto agridoce, pungente, delicado. Uma urgência sutil. Tântrica.
Antecipação do gozo. Do contentamento. Antecipação do encontro. Da entrega.
Urgência sem pressa. De percorrer a tua pele, descobrir teus caminhos, me perder nos teus pêlos.
Me encontrar nos seus olhos.
Me confundir com teu gosto, teu cheiro, teu corpo. Ser tua presa. E estar presa, em você.


Dani Altmayer

domingo, 5 de maio de 2013

Tão Jovens

"A vida é um fio. E, aos 14 anos, você é um equilibrista descalço sobre seu fio, e o equilíbrio é um milagre".
A frase não é minha, copiei do belo livro que estou terminando de ler, Coisas que Ninguém Sabe, de um autor italiano, Alessandro DAvenia. O livro conta a história de uma adolescente, Margueritha, e os dilemas e sonhos desta fase de sua vida. Da vida de todos nós.
Lágrimas em profusão, alegrias desmedidas, raivas incontidas. Muito medo. Muita coragem. Muita paixão. Problemas sem solução, dramas existenciais. Muita mudança, muitas espinhas, muita emoção. Brigas e choros sem qualquer razão.
A aurora da vida. Aquela hora na madrugada, em que você não sabe se é noite ainda, ou se o dia já se fez. Luz e escuridão que se confundem em sombras. Aquela hora da vida onde tudo é crucial. Definitivo. Viver é intenso, forte, denso.
Adolescência. Lembro como se fosse ontem. Como se fosse hoje. E hoje, depois de assistir ao filme "Somos Tão Jovens", lembro como se fosse agora. Músicas como Geração Coca Cola, Será, Que País é Esse, entre tantas outras, embalaram a minha geração adolescente. O filme conta a história do poeta, também ele muito jovem, que gostava de meninos e meninas. Vai  desde a criação da banda punk Aborto Elétrico até o momento da explosão do fenômeno Legião Urbana. Renato Russo é hoje um mito. Um gênio, na minha opinião.
Voltando à adolescência. Como se não bastasse eu mal ter saído da minha (?),  ainda tenho, em casa, um exemplar novinho em folha. Recém chegado. Que me leva a fazer contas de, por quantos anos ainda, vou ter que lidar com olhos revirados a cada palavra que digo. Que faz eu querer voltar para a terapia, para fortalecer a auto estima, uma vez que os olhos revirados significam sempre uma de três coisas. Que eu estou errada. Que eu sou burra. Ou que sou muito chata. Uma delas, ou todas de uma vez. Faz eu pensar em fazer uma audiometria. Frases entrecortadas, cada dia mais curtas, palavras ininteligíveis. Nada, mãe, tenho preguiça de falar, tipo assim. Ufa, é só isso. Portas fechadas, segredos, e mudanças bruscas de humor. Haja yoga e meditação. Para mim, lógico. Paciência. Mais uma dose, por favor.
 Adolescência.Todo mundo já passou por isso, ou vai passar. Às vezes tarda, mas nunca falha. Existe a adolescência tardia, o pior tipo. Um dia ela vem, cedo ou tarde.Em geral demora para ir de vez. Volta em flashes, ao longo da vida. Quantas vezes, depois de adultos, nos sentimos como adolescentes? Sempre que a gente se apaixona, por exemplo. Fica bobo. Quando ouve uma música. Quando enfrenta um desafio, quebra um tabu. Quando assiste a um filme como o de hoje.
Quando se tem filhos, passa-se duas vezes. Ou mais, dependendo do número de filhos. Na adolescência deles, revisitamos a nossa. Em todos os sentidos. Por eles. E por nós. Afinal, somos crianças como eles serão, quando eles crescerem. Eles mudam, e nós corremos atrás. Apavorados. Como já fizeram com a gente antes. Como eles farão com os seus, um dia. A gente se preocupa, e eles fazem pouco caso. Como já fizemos antes deles, tal e qual. Outro dia meu filho chegou na sala e disse: "mãe, estava ouvindo Legião. É muito legal."  E assim a vida se repete, e vamos nos sentindo e vivendo como nossos pais, e como nossos filhos, e como eles, com os filhos que um dia terão.
Adolescência. Malabaristas todos somos, continuamente. Ad infinitum. Equilibristas no fio desta vida. Mas, justiça seja feita, nunca este equilibrar-se é tão difícil quanto na puberdade. O bom é que um dia  isso tudo passa.
Ou não. A adolescência poderia perfeitamente vir com um aviso: cuidado! Fase perigosa, você pode, ficar preso para sempre. Eu mesma conheço muita gente que nunca conseguiu sair. Juro. Estão lá até hoje. Tipo assim.
Presos, eternamente. Naquele tempo perdido.




sexta-feira, 3 de maio de 2013

Atordoados


Noites insones, lençóis remexidos, corpos nus.
Descobertos.
Dores esquecidas, perdidas, curadas.
Absolvidas
Bocas sedentas, cedentes, carentes.
Apaixonadas.
Saudades, desejos, vontades.
Urgentes.
Segredos, mistérios, confissões.
Desvendadas.
Códigos, senhas, cofres.
Arrombados.
Cheiros, sabores, humores.
Misturados.
Rumos, nexos, sexos.
Confundidos.
Dança, música, ritmos lentos.
Enfeitiçados.
Amores passados, errados, outros.
Dissolvidos.
Em sonhos molhados, em tempos imperfeitos, em beijos roubados.
Ardentes.
Em tempos tão certos. Em longes tão perto.
Diluídos.
Em olhos claros, abertos, fechados.
Vendados.
Em palavras, mensagens, silêncios.
Prementes. 
Em sigilos, proibidos, ilícitos.
Indecentes.
Perigosamente encantados.
Completamente desvelados. 
Absurdamente revelados. Só para nós.
Só entre nós.

Dani Altmayer


quarta-feira, 1 de maio de 2013

Tão leve. Tão breve.

A vida não é uma festa, planejada por um mestre de cerimônias. Ela não obedece a nenhuma regra. Não tem lugar marcado. Hora para começar. Hora para comer. Para dançar. Para beijar. Hora para terminar.  Não tem hora para isso e para aquilo. Não tem fila para entrar. Convite especial. Não. Ela chega, sem ser convidada, e parte, sem ser planejada. Não tem traje especial, decoração, e tal. Não cumpre horário, agenda. Etiqueta, não tem. Nenhuma. Mal educada, a vida. É baile de carnaval. Bloco de rua, xixi na calçada. Mão na bunda.

A vida é desordem, bagunça, confusão. Emoção, e não previsão. Com a vida, não se pode ter razão. Vida é caos, o deus mais antigo. Caos é vida. É força, primitiva. O ar, entre a terra e o céu. 
Assim como vem, ela vai. Sem avisar. Efêmera. Suave, como uma aragem. Incerta, como mulher.

É vento, sem direção. Não segue protocolos, nem tenta. Não gosta. Ela quebra todos, esfacela, sem perdão. Detesta. A vida é surpresa.Vazamento. Infiltração. É coisa que chega sem bater na porta. Arrombando. Que escorre pela parede, transborda, inunda. É coisa que corre, pelas frestas, pelos cantos, pelas veias. Abusada. 
Ela traz tristeza, decepção e raiva. Frustração. Traz alegria, magia e paixão. Traz amor, harmonia e separação.  Traz coisas. Tantas coisas, a vida traz.
Nada disso pede licença. São  coisas repentinas. Serpentinas. Confetes. Vão entrando, por bem, ou por mal. Sem serem convidadas. Não têm educação, estas coisas.  
As coisas da vida são sempre penetras. Como a vida. Não esperam. Acontecem. Fazem a festa. Vão ficando. Tomam todas. Ou desaparecem.
Coisas que a vida traz. E leva. Sempre, um leva e traz. Vida não tem coerência. Por um triz não tem consistência.
Porque a vida não é lugar decorado, bonitinho, planejado. Compartimentado e bem arrumado.
Não é rocha, concisa e sólida.
É flor que brota na pedra. Água que corre com o rio.
É brisa que voa. E que foge. Um vazio.
Espaço de tempo, e sopro. Fugaz.