domingo, 16 de fevereiro de 2020

Reencontros e despedidas



dedicatórias que 
já não fazem sentido
histórias a serem lidas
pela primeira ou
mais de uma vez

outras a descartar
as deixadas ao meio
os enganos engodos
capas que seduzem
orelhas que abanam
corpos que prometem 
sem jamais entregar

encontrar os amigos
amores amantes as notas
as marcas rugas as dobras
do que foi importante

as fases passadas 
os presentes, precisos
preciosos pensados
(outros puro engano
de quem nunca te leu)

a poesia e a prosa
daquilo que preferimos
e que não
os empréstimos os meus
os teus e os nossos
 
esta bagunça eclética
um infinito de possibilidades
impossíveis de catalogar
na poeira das palavras
a força a beleza a fúria
um cansaço danado
e um baita prazer

arrumar a estante de livros
é saber que não há tempo
e não se pode tudo
é encontrar de tudo um pouco
um muito
      é deixar partir
      e escolher quem

vai ficar


Daniela Altmayer





quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Porque eu amei uma mulher que amava o Roberto


Cachoeiro de Itapemirim


Porque eu amei uma mulher que amava o Roberto. Porque fui com ela esperar ele no aeroporto de Rio Grande. Porque fui com ela ao show dele na SAC. Porque vim a Porto Alegre de excursão para assistir mais de um. Fui com ela no Rio, no Canecão. Porque eu amei uma mulher a quem chamava de mãe, que eu amava como amava a minha mãe, mas esta mulher não era, ela tinha uma cor, era minha mãe preta, mas eu não sabia, nem pensava que isso era um problema, porque a cor dela não era a minha, a minha mãe Dolores, de tantos apelidos, a Pia, ela que viajava de avião com a gente para o Rio, quando viajar de avião era caro como é de novo agora, ela que neste mesmo Rio de Janeiro foi barrada ao entrarmos num clube porque não tinha uniforme branco de babá, como assim, ela não era nossa babá, era a mãe preta, ela que não podia entrar pelo elevador social, eu ia com ela pelo de serviço, no prédio à beira do mar, Ipanema classista, indignada pela injustiça, sem a menor consciência de classe ou preconceito, só o que eu compreendia era o amor, e era o amor que dava a ela os mesmos direitos que os meus, ou não dava?
Eu criança e somos todos iguais, Jesus disse e eu acreditava, o colo dela e a risada rouca, as mãos secas de tanta lide, as histórias da infância na roça, a comida de tempero farto, os conselhos tortos, de sabedoria infinita, os discos do Roberto, a cada Natal, que homem lindo, o Benito, as escolas, o samba, cigarro, cerveja. As conversas no alpendre, a dor da perda dela, o neto que ela não conseguiu esperar- partiu três meses antes.
Porque eu amei uma mulher que me ensinou tanto, que me acolheu sempre, que era toda ela aconchego, uma mulher que eu enxergava talvez sem ver, hoje eu paro e penso, e tenho vontade de voltar no tempo e amar diferente, porque hoje eu sei muito mais do que ontem, e muito mais do que há quarenta anos.
Porque eu amei esta mulher e fui muito amada por ela, e sinto que tenho com ela uma dívida impagável.
Porque eu amei uma mulher que amava o Roberto. E ela, com certeza, preferiria conhecer Cachoeiro de Itapemirim à Disney, mas mesmo assim. Que ela tivesse escolha.
Que todos possam ter escolha e nenhum seja excluído.
Porque a dívida é de todos nós.


Daniela Altmayer

Porque desde ontem, de todas as barbaridades ditas pelo ministro, uma frase entalou na minha garganta.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Precavida



     


da série diálogos possíveis...


Fiz oitenta e quatro semana passada, tu acredita? Nem eu, parece que foi ontem que fiquei viúva e já se foram quase trinta anos. Não, para quê? Virar babá de homem na minha idade, eu fora. Uma vez me disseram, e eu concordei, velho só o que fica velho com a gente. Ou isso, ou tem que valer muito a pena, sabe. Era nova, sim. Tive, uns dois ou três, mas cada um no seu cantinho. Só para namorar, mesmo, como dizem, para curtir. Melhor coisa. Dois já morreram, também. Os homens morrem. O outro era um sem-vergonha, esse casou de novo. Não vale um fio daquele cabelo ralo. Teve festa, sim, um churrasco na casa de um dos guris, eu por mim nem comemorava, eles que fizeram questão, foi na beira da piscina, um calor dos infernos, te contei que vou ser bisa em março? Uma menina, esqueci o nome, um nome de velha, parece que é moda agora. Meus exames estão de guria, né? Melhor que de muita gente nova que eu conheço. Eu sempre falo para a minha nora, não é por nada, mas ela é diabética, tem que se cuidar, não dá para ficar enchendo o bucho de carne e cerveja, e depois reclamar que deu tudo alterado. Não tem nem sessenta ainda, mas aquela lá não tem jeito. Meu filho só tem a pressão, mas ele corre, faz academia, é bonito que só vendo, não é por ser meu filho não. Eu sei, a cabeça está ótima, melhor que o corpo, me dói um pouco o joelho, mas o problema mesmo é não dormir direito, queria uma receitinha, se bem que melhorou a insônia agora que comprei o enterro. Como assim, qual? O meu. Sim, comprei o meu enterro, tudo pago. Isso era uma coisa que estava me atormentando, sabe. Agora posso descansar. Não!! Não pretendo, não, bate nessa madeira aí. Mas é uma tranquilidade a mais, doutora. Me dei de presente de aniversário. Credo nada, deixa tu chegar na minha idade. Oitenta e quatro anos. Não é pouca coisa, viu. Ah, e tu sabe como gosto de mexer no computador né, o meu era dos antigos ainda, aqueles de mesa cheio de fios, então me dei de presente um notebook. Foi caro este aniversário, mas valeu a pena. Tu tem feici?- eu te chamo de tu porque tu podia ser minha filha- vou te convidar. Aí tu espia meu filho. Pena que é casado. E o outro é gay. Um dia vou te apresentar ele. O casado. Ah, tudo bem então. Pena, eu fazia gosto. Não esquece a receita, tá, minha querida. Não te preocupa que eu não tomo sempre, só gosto de ter em casa, por precaução. Na minha idade, tu sabe como é. Ou melhor, vai saber. Se chegar lá.