sábado, 28 de novembro de 2020

Cassino




Desejo o mar como a ti 

imensamente
quero andar na vastidão da praia
chão duro colchão da memória
morada de ventos e conchas
amanhecer de gaivotas e redes
e peixes a prata do horizonte a cor exata dos teus cabelos
as ondas nem sempre gentis o toque o remanso de tantos antes uma bicicleta um cachorro sem dono andarilhos

o infinito desenha um nome castelo de areia que o oceano desmancha
cabelos soltos e sonhos ao sabor vontades solares salgadas de azul
corpos famintos agora outros
acordam quereres suados
enquanto
na sua paz mais bonita
faz silêncio

e os enormes navios riscam
os molhes da barra


domingo, 22 de novembro de 2020

Pão com manteiga

 


Amanhece

O cheiro do café passado se confunde com o cheiro de alguns cafés passados 

Sinto saudade de um cheesecake de frutas vermelhas

Um abraço jogado entre as mesas na calçada
Pela janela o sol acordando uma brisa indiscreta
Sinto falta das promessas não feitas
Das conversas ao pé do ouvido
Dos olhares ávidos de sorrisos lentos
Dos anseios alheios às avenidas
A manhã tem as nuvens exatas as mesmas
Que vão entardecer
E o céu é o mesmo céu da zona sul
Sorvo devagar o café sem açúcar
Nas memórias há sempre um sabor 

sábado, 21 de novembro de 2020

Minha culpa


na memória o ferro e o tronco
a marca ancestral do chicote

seja no teu lombo negro
seja na minha branquitude

maculada para sempre por
teu sangue manchando

minhas mãos



Sinto muito.
Daniela Altmayer

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Aguaceiro

 


Nenhuma folha move o silêncio de vento só a brisa do suspiro o céu pesa chumbo suor calor do diabo quarenta graus a saia colada nas coxas a marca do verão grudada entre as pernas teu corpo dormente a tormenta do meu prenúncio de vendaval redemoinho de pétalas dentes a língua saliva salgada agonia desaba a chuva gotas grossas represada tempestade desassossega a terra seca sedenta tumulto profano temporal desagua com fúria inunda o incêndio apaziguando.

Sombras

 Acordo com um grito trincado entre os dentes

foi só um sonho ainda bem quase sempre ainda bem
porque os sonhos desses dias não são tranquilos
como não são os dias desses tempos estranhos
em que o medo e a raiva ficam retidos na placa
que impede o ranger das mandíbulas
cansadas de mastigar tanta incerteza mal passada

o rosto no espelho que envelhece e eu não reconheço
sem a máscara que agora é hábito neste lugar
onde habito por ora nas horas escuras das noites
madrugadas de silêncios intramuros dormentes
olhos sem rímel boca sem batom
sorriso borrado entre os véus de algodão
uma tristeza envolta à volta nos espreita
feito a gata embaixo da cama querendo brincar
o que ainda me salva é isso e aquela porta secreta
que fecho em algumas tardes de chuva
e também de sol




segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Finados

 


Todas as minhas escolhas me trouxeram até este lugar de solidão, e que eu não me engane, sempre foram escolhas. Algumas sem consciência plena, não menos escolhas por isso.

Minhas leituras, escritas, pedaladas ( ô saudade) se alimentam de silêncio e quietude, minha profissão exige fala e escuta, interação plena e atenção. 

Eu achava ter o equilíbrio perfeito entre estar no mundo e ter um refúgio.
Mas este ano roubou minha solidão, ou seria minha solitude? Este ano roubou minha solitude e a trocou por solidão.
Todos os bons encontros foram interditados.
Não vejo meu pai há meses, não o abraço há quase um ano. Minha menina predileta não vem para o Natal. Minhas amigas, eu as reconheço através de uma tela.
Atravesso os dias através de uma tela.
São tantas as mazelas deste annus horribilis, que é impossível contar e olha que tenho sorte.
Hoje é dia de finados, sinto alguns sintomas de gripe. Mas sei que talvez não seja. O mais provável é que o corpo pese pelo cansaço, que a garganta arranhe pelos risos perdidos e lágrimas contidas, pelas vidas arrancadas e pela nossa pátria, assim subtraída.
São muitas as razões para ser grata, em perspectiva. E eu não sou ingrata.
Mas hoje eu me permito o luxo do luto.
Em respeito à morte que nos ronda, à perda de tantos amores, a todos os abraços que não foram dados: meu choro contém infinitas saudades.