sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Faz sol, mas qualquer hora pode chover

Praia do Cassino- foto de Dani Altmayer


Eu duvido de gente que está sempre feliz.
Porque a vida é parecida com um dia de verão.
Numa hora o céu está azul, sem uma nuvem sequer, e faz um calor danado.
Aí, você olha para o outro lado, e vê.
Nuvens escuras e rápidas, anoitece súbito. Uma tempestade, que chega sem avisar.
O mundo desaba na sua cabeça, e você que estava ali, de vestido branco toda romântica, andando distraída na beira do mar, fica de pronto encharcada.
Transparente e exposta, você tem medo da chuva, e do vento, e do barulho que faz.
Sente um pouco de frio, procura em vão um abrigo, mas a praia é comprida e deserta. Só te resta caminhar, semi nua. Ou dançar, sozinha.
E esperar.
Você sabe que vai passar, sempre passa.
O tempo, como a gente, é vulnerável, mas impermanente.
Às vezes demora, e tudo fica assim, nublado e choroso.
O céu toma aquele tom monótono de cinza, e lágrimas de chuva molham os vidros dos seus olhos, insistindo na tristeza de um dia sem cor.
Mas tem vezes que é bem rápido, uma chuva mesmo de verão. Como veio, se vai.
Desfaz-se a tempestade, e o céu retoma o tom azul profundo de antes, e secam-se as roupas e as lágrimas num instante.
Tem ainda aqueles momentos em que faz sol, e chove, tudo ao mesmo tempo.
O céu se veste então de arco íris, para mostrar que no fim, sempre existe um pote de ouro para cada dor vivida, e aprendida.
Um sol, para cada chuva acolhida.

Dani Altmayer


quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

O segredo da Catarina



Tem gente que é linda sem sequer ser bonita.
Dona Catarina tem 76 anos de idade, mas não aparenta. Poucas rugas, um cabelo meio ralo, ainda escuro, bem magrinha.
Entra no consultório com um sorriso de orelha a orelha para fazer um exame demissional.
Conta que só parou de trabalhar porque o patrão vendeu a loja. É costureira, e trabalhava nessa loja de roupas masculinas há 19 anos. "Porque, mesmo aposentada, não penso em parar, doutora. Eu amo o que faço". O marido, parceiro de mais de cinquenta anos de casamento, é "camiseiro de grandes advogados".
Conta um pouco da filha, dos netos e do único bisneto, com quem joga futebol dentro de casa.
Segura na minha mão com carinho, e me fala da importância de se ter paciência, para tudo nessa vida. "Fiquei sozinha  na loja durante a liquidação, doutora, e a senhora pensa que me estressei? Fazia meu trabalho com calma, porque a pressa não leva a nada. Era só eu, então, era uma coisa de cada vez, e deu tudo certo. Sempre dá tudo certo, assim."
Pergunta se eu sei descansar, e me conta que é preciso aproveitar a família, os amigos, e as horas de lazer, também. "Porque a vida não é só trabalho, doutora, apesar do trabalho ser muito importante."
Fala tudo isso sem tirar do rosto o sorriso enorme, nem por um instante sequer. E faz planos, vai trabalhar em casa, agora. "Não quero parar, graças a Deus tenho muita saúde e disposição, ainda."
Tão linda ela é, e parece pelo menos uma década mais jovem. Preciso perguntar:
- Qual o seu segredo, dona Catarina?
- Amor, minha filha, muito amor. Em tudo.
Nos despedimos com um abraço, ela me deseja sorte, e eu desejo não esquecer seu segredo.
Volto para minha mesa, e anoto rapidinho em um pedaço de papel:
"Amor, muito amor. Em tudo."

Dani Altmayer


quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Utopia



Um mundo onde todas as crenças sejam respeitadas.
Onde não se precise mais de religião, porque a religiosidade bastaria.
Onde todos enxerguem seus espelhos nos olhos do outro.
Um mundo sem atrocidades ou abusos, e massacres, ou fúria.
Onde ninguém tenha licença para matar em nome de Deus, Alá, ou seja lá o nome que quiserem dar.
Onde não seja preciso catequizar, proibir, exorcizar ou punir.
Onde reine a verdade absoluta, que é tão simples e óbvia.
Somos todos um, apenas em diferentes formatos. Em diversos contextos.
Unidos pela mesmas dores, os mesmos valores, os mesmos temores.
Um mundo onde não se precise temer.
Onde cada um faz a sua parte, e é o que é.
Um mundo em que as certezas, essas sim, não sejam absolutas. 
Nem tampouco radicais.
Um mundo onde os livros sejam múltiplos, assim como as pessoas e suas escolhas.
Um mundo em que impere o respeito, e onde seja acessível o livre pensar.
De onde seja banida toda a forma de tirania. E toda e qualquer hipocrisia.
Onde se possa, na tolerância, transitar.
Onde ninguém seja mantido na ignorância.
Um mundo onde a fé não cegue, pelo contrário. 
Onde todos possam ver, mesmo sem crer. 
E mesmo crer, que seja, em paz.
Um mundo onde a luz possa, enfim, penetrar.
Onde o amor possa, então, nos curar.

Dani Altmayer

Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

A gente ama o que reconhece


Todo mundo tem uma história. Todo mundo é uma história.
Se para cada pessoa que a gente encontrasse, houvesse um livro correspondente, seria tão mais fácil amar.
Porque para amar, é preciso conhecer. E poder entender.
Quantas vezes nos pegamos, no meio de um livro, quase torcendo para o vilão? Quantas vezes os perdoamos porque compreendemos que as coisas não foram fáceis, porque conseguimos enxergar através do seu ponto de vista, porque sabemos de seus motivos, mesmo sem concordar?
-Ah, ele não é tão ruim assim- Ninguém é tão ruim, assim.
Desde o dia em que nascemos, a nossa vida vai sendo escrita, dia após dia, nas páginas de um livro que nunca será impresso. Pior, que talvez nunca seja lido, nem pela gente mesmo. 
Quem tem paciência para ler, hoje? Só com muita sorte, para encontrar alguém disposto a se colocar no lugar do outro, e percorrer alguns capítulos de uma outra história. Ou muita coragem, para abrir o livro nas partes mais assustadoras e difíceis da nossa própria.
Em tempos de fast tudo, ninguém mais tem tempo para se interessar. E menos ainda, para deixar-se envolver nas tramas de um romance inacabado, antigo, e muitas vezes, até bastante complicado.
Ler alguém é um ato de empatia e respeito.
No entanto, para se ler um outro, é preciso ir além da capa. É preciso que o outro se mostre, também. Que se deixe conhecer, desvendar. 
É preciso descobrir que a cara feia não foi para você. Ele teve um dia difícil, se incomodou com o trabalho, perdeu a lotação, ou está com uma baita dor de dente.
Ela está naqueles dias, tem um trauma de infância, e você nem sabia. Foi falar que ela estava gostosa. Gorda, já pensa. "Me chamou de gorda. " Como os guris, na escola.
Você está aqui, agora. Mas não veio do nada, e nem por nada. Teu passado não te condena, nem te define. Mas te carrega. Não tem como escapar das dores vividas, nem tem jeito de reviver as alegrias já perdidas.
Essas estão impressas, só que não no papel. Estarão nas cicatrizes indeléveis que todos temos, no corpo, e na alma.
A cada dia que nasce, uma página em branco é colocada à nossa frente. A gente até ganha, então, a chance de escrever mais bonito, ou de uma forma bem diferente. Muda as palavras, mas é sempre uma continuação, o desdobramento de um livro para sempre incompleto e sempre complexo. 
Por isso, a não ser que se perca a memória, nunca se vai poder fugir da própria história. Do próprio livro, que nem todos vão saber, ou mesmo, querer ler.
Porque a questão é que só a quem ama, essa história importa e faz algum sentido. 
E só se importa, quem realmente te ama. E te dá um sentido.

Dani Altmayer


sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Nossos jardins



Quando eu era criança, tinha alguns livros prediletos, que costumava ler diversas vezes. Naquela época ainda era possível terminar um livro, e começar outro, e mais outro, e como não havia essa grande oferta de literatura infantil, acabava repetindo muitos. Minha mãe dizia que eu não lia, e sim, devorava as histórias. Ficava louca comigo.
Hoje lembrei de um destes livros que fizeram parte da minha infância.
"O Jardim Secreto", que, segundo uma rápida pesquisa, é um clássico da literatura inglesa. Na época eu não sabia. Mas me encantava a história daquelas três crianças solitárias, que partilhavam um segredo. A menina orfâ, seu amigo e o pobre primo rico, que encontraram naquele lugar um refúgio da sua solidão. 
Faz muito tempo que deixei para trás a minha menina tímida e introspectiva, que comia livros em vez de comida.
Não lembro de detalhes da história. Lembro apenas do jardim, de suas flores exuberantes e raras, um lugar latente e cheio de vida. Um jardim que curava as dores mais diversas.
Os livros eram então, o meu jardim secreto.
Hoje tenho outros jardins, também secretos. 
São lugares escondidos e muitas vezes com cadeado enferrujado, difíceis até de encontrar, no labirinto dessa vida maluca e cinzenta. Mas são meus pequenos oásis de luz e de sol.
É para lá que vou quando estou muito triste.
Refugio-me na sombra de memórias, afetos e músicas. E dos livros, ainda. 
Na sombra das coisas que me alimentam a alma, e me fazem lembrar que assim é o ciclo. Nascer, crescer, e morrer. Frutificar e florescer. E então fenecer. Para, mais uma vez, ser semente e recomeçar. No fluxo, no jardim dessa vida, a chance de novamente desabrochar.
Acho que todo mundo tem, ou deveria ter, um jardim assim secreto. Que pode ser um cantinho, uma canção, uma gente. Um esconderijo, ou abrigo. Tanto faz.
Algo ou alguém, dentro ou fora. Que seja bálsamo. E cura. 
Um lugar a ser cultivado, regado, preservado.
Onde seja possível, ainda,  se reconectar. E reabastecer-se de tudo o que importa de verdade.
Amor, sorrisos e paz. Nada mais.
Porque o resto é isso, apenas. O resto. É só um tanto de luta, concreto e asfalto. 
É duro. E dói.
Como dói.

Dani Altmayer