Cinco horas e ainda é noite, embora já seja de manhã , tempo fechado e inverno, acordo na madrugada fria, engulo uma banana, passo um café, encho os potes de ração, tomo banho, faço a barba e coloco o uniforme. O botão não fecha na barriga, paciência. Chego na garagem às 05h45.
Às seis em ponto dou a partida, a novidade de trabalhar sozinho me deixa nervoso. Dispensaram os cobradores da minha linha, sinto falta da conversa fiada do Eurico, me atrapalho nos trocos. Nunca fui bom de matemática.A primeira passageira é a Sônia, ela trabalha no hospital das clínicas, entra no ônibus cheirando a cigarro e tem uma risada rouca, está sempre de bem com a vida. Depois vem o João, às vezes tem uma mulher com ele, nunca a mesma, o João gosta de variar o cardápio e diz isso na cara dura, a Sônia briga que mulher não é prato feito para ele falar assim. Quando ele está sozinho, sentam juntos, ainda que o ônibus esteja vazio. Desconfio que já tiveram um enrosco, o João e a Sônia.
O terceiro passageiro eu não sei o nome, é um velho bem velho, sobe no ônibus sem responder meu bom dia, senta na última fileira, abre um caderninho e começa a escrever. Às vezes fala sozinho. Fico pensando por que diabos um aposentado sai de casa a essas horas. Ele desce sempre no fim da linha, no centro. Acho que gosta de passear, e é de graça.
Depois vêm os estudantes, Matheus e Mathias. São gêmeos e saltam duas paradas adiante. Poderiam muito bem ir caminhando, mas são adolescentes.
Entram a Mirtes, o Cláudio, a Juleide. Por aí vai. A Fernanda, a Mara. Sempre tem mais mulher do que homem. Conheço todos os da primeira volta, alguns da segunda. Da terceira em diante, não me interessam mais.
Esqueci o remédio da pressão, falo para a Sônia. Ela me dá uma pastilha azul.
Outro dia ela já me salvou duma dor de cabeça. O João brinca que é viagra, o moleque tem a mente suja. Digo que sou da igreja, morre o assunto.
Gosto dos dias em que a Márcia tem trabalho no centro. Duas vezes na semana, terça e quinta, com todo respeito, mas é um mulherão de tirar o fôlego, bunduda, cintura fina. Até o velho levanta a cabeça para ver ela passar. Hoje é segunda feira. Acho eu. O ônibus está lotado, um zumbido me atordoa os ouvidos. Fica tudo escuro, de repente. Alguém dá um grito, piso no freio, o som de uma batida. Um ciclista se atravessou no cruzamento, está caído na calçada. Abro a porta e desço, atordoado ainda. O João e a Sônia correm para ajudar, chega a polícia, a Samu, e me levam junto com o ciclista e o velho para o hospital. Crise hipertensiva, dizem. Princípio de infarto. Diabete descontrolada. O ciclista quebrou a perna, fratura exposta. O velho levou pontos na testa, mas está bem. José é o seu nome, e a enfermeira da emergência me conta que é poeta.
Hoje é quinta feira, dia da Márcia. São 5 horas de uma manhã de inverno, o dia ainda não raiou, levanto e passo o café, engulo a banana, tomo meus remédios, dou a ração para os cachorros e volto para a cama gelada. Penso no caderninho do velho, oras, poesia. Fazendo rima nessa idade, meio ridículo. Às 5h45 adormeço de novo.
Meu ônibus sai pontualmente, às 6 horas da manhã. A primeira passageira é a Sônia.
Oficina de escrita- trama circular