quinta-feira, 28 de abril de 2022

Azulzinho




Cinco horas e ainda é noite, embora já seja de manhã , tempo fechado e inverno, acordo na madrugada fria, engulo uma banana, passo um café, encho os potes de ração, tomo banho, faço a barba e coloco o uniforme. O botão não fecha na barriga, paciência. Chego na garagem às 05h45.

Às seis em ponto dou a partida, a novidade de trabalhar sozinho me deixa nervoso. Dispensaram os cobradores da minha linha, sinto falta da conversa fiada do Eurico, me atrapalho nos trocos. Nunca fui bom de matemática.
A primeira passageira é a Sônia, ela trabalha no hospital das clínicas, entra no ônibus cheirando a cigarro e tem uma risada rouca, está sempre de bem com a vida. Depois vem o João, às vezes tem uma mulher com ele, nunca a mesma, o João gosta de variar o cardápio e diz isso na cara dura, a Sônia briga que mulher não é prato feito para ele falar assim. Quando ele está sozinho, sentam juntos, ainda que o ônibus esteja vazio. Desconfio que já tiveram um enrosco, o João e a Sônia.
O terceiro passageiro eu não sei o nome, é um velho bem velho, sobe no ônibus sem responder meu bom dia, senta na última fileira, abre um caderninho e começa a escrever. Às vezes fala sozinho. Fico pensando por que diabos um aposentado sai de casa a essas horas. Ele desce sempre no fim da linha, no centro. Acho que gosta de passear, e é de graça.
Depois vêm os estudantes, Matheus e Mathias. São gêmeos e saltam duas paradas adiante. Poderiam muito bem ir caminhando, mas são adolescentes.
Entram a Mirtes, o Cláudio, a Juleide. Por aí vai. A Fernanda, a Mara. Sempre tem mais mulher do que homem. Conheço todos os da primeira volta, alguns da segunda. Da terceira em diante, não me interessam mais.
Esqueci o remédio da pressão, falo para a Sônia. Ela me dá uma pastilha azul.
Outro dia ela já me salvou duma dor de cabeça. O João brinca que é viagra, o moleque tem a mente suja. Digo que sou da igreja, morre o assunto.
Gosto dos dias em que a Márcia tem trabalho no centro. Duas vezes na semana, terça e quinta, com todo respeito, mas é um mulherão de tirar o fôlego, bunduda, cintura fina. Até o velho levanta a cabeça para ver ela passar. Hoje é segunda feira. Acho eu. O ônibus está lotado, um zumbido me atordoa os ouvidos. Fica tudo escuro, de repente. Alguém dá um grito, piso no freio, o som de uma batida. Um ciclista se atravessou no cruzamento, está caído na calçada. Abro a porta e desço, atordoado ainda. O João e a Sônia correm para ajudar, chega a polícia, a Samu, e me levam junto com o ciclista e o velho para o hospital. Crise hipertensiva, dizem. Princípio de infarto. Diabete descontrolada. O ciclista quebrou a perna, fratura exposta. O velho levou pontos na testa, mas está bem. José é o seu nome, e a enfermeira da emergência me conta que é poeta.
Hoje é quinta feira, dia da Márcia. São 5 horas de uma manhã de inverno, o dia ainda não raiou, levanto e passo o café, engulo a banana, tomo meus remédios, dou a ração para os cachorros e volto para a cama gelada. Penso no caderninho do velho, oras, poesia. Fazendo rima nessa idade, meio ridículo. Às 5h45 adormeço de novo.
Meu ônibus sai pontualmente, às 6 horas da manhã. A primeira passageira é a Sônia.

Oficina de escrita- trama circular