sexta-feira, 25 de novembro de 2016

O Ricardo



A gente se conheceu na Internet. Depois que eu saí da clínica, o terapeuta me recomendou ficar longe de relacionamentos, e ficar longe de relacionamentos significava ficar sem sexo. Um dia, de bobeira, digitei no google " assexualidade". Foi depois de um programa de TV. Nem sabia que existia isso, comecei a ler, achei bem interessante ( e meio esquisito). Procurei um grupo no face e foi ali que conheci o Ricardo. Nunca falei no grupo que eu era assexual, nem achei que fosse importante. Na verdade, eu não levava aquilo muito a sério, era mais curiosidade. De qualquer forma, eu podia não ser assexual de nascimento, mas eu estava assim. Proibida de beber, fumar e foder.
O Ricardo me chamou a atenção primeiro pelas postagens romãnticas, depois porque parecia um menino frágil, de tão magrinho. Será que era por isso que não sentia tesão, vai ver nem hormônio tinha. Mas era lindo, cabelo arrepiado muito loiro e usava um óculos roxo cheio de estilo. Tinha uma tatuagem no braço direito, No sex. Comecei a curtir tudo que ele escrevia, e um dia ele me chamou pra conversar. Disse que me achava bonita, e eu perguntei se não me achava gorda, ele falou, "você é gorda. Isso é um fato, não é um problema. E você é bonita, sim. "
Eu me apaixonei na hora, passava as tardes no computador namorando. O celular tinha sido confiscado pela minha mãe no dia da primeira internação, e não tinha jeito de ser devolvido. Ela tinha voltado a trabalhar naquela época, e meio que liberou o computador para mim, junto com a geladeira. "Melhor você comer do que ficar bebendo ou tomar um monte de remédio." Eu tomava um monte de remédio, mas agora ela me dava um por vez, nas horas certas. Meu pai ficava em casa comigo, mas ele nem se dava conta, eu acho. Via TV o dia todo. Depois, que mal haveria de ter em conversar com um cara dez anos mais novo, que é metade do seu tamanho mas é um verdadeiro anjo na sua vida?
Ele me disse que os assexuais se relacionavam sim, normalmente, só não de uma maneira erótica, apenas afetiva. Que não sentiam desejo. Servia para mim, com meus quilos a mais e minha libido zerada artificialmente. A gente gostava das mesmas músicas, dos mesmos filmes, foi uma afinidade incrível. Ele estava estudando sociologia, eu sou formada em pedagogia, só não exerço. Tudo a ver. Combinamos um encontro no parque. (Eu ainda não podia sair de casa à noite). Não falei nada para minha mãe, ela estava no trabalho, para o pai eu disse que ia na casa da Maria pegar uns livros.
Meu cabelo tinha voltado a crescer, e num impulso pintei de vermelho, coloquei meu melhor vestido, o único que ainda servia e pintei a boca de um vermelho mais alaranjado, pela primeira vez em muito tempo sentindo que valia a pena usar essa cor de forma inconsequente.
O Ricardo já estava lá, em frente à sorveteria. Me deu um abraço tão apertado que achei que eu ia quebrar os ossos dele. Ofereceu um sundae que aceitei com prazer. Enquanto comíamos os sorvetes sentados em um banco, nossa pernas se tocaram e eu senti uma vontade louca de beijar ele. Na verdade, de dar uma lambida na sua boca cheia de calda de morango. Fazia muito tempo que eu não beijava ninguém. Mas me segurei. Fiquei o tempo todo mordendo os lábios e apertando as coxas. Ele foi um amor comigo, como sempre era, e a gente ficou até o por do sol conversando da vida. Levei a maior bronca da minha mãe quando cheguei em casa. Depois desse dia a gente se via quase uma vez por semana, e eu estava cada vez mais apaixonada. E quanto mais apaixonada, mais vontade de dar uns amassos nele. Cheguei a insinuar um dia, mas ele me disse que era assim mesmo, que eu sabia desde o começo e tudo, e eu sabia, eu não podia, mas eu queria. Dava um jeito de me controlar, chegava em casa e devorava duas barras de chocolate e a vontade acabava passando, ou eu dava um jeito sozinha.
Acho que a gente ficou uns oito meses assim, super intensos, uma vez ele foi lá em casa de tarde, conheceu o meu pai. Vimos um filme no computador e comemos pipoca. A gente deitava junto no sofá, mas não se tocava. Ajudei com as provas finais, a gente se encontrava bastante na biblioteca. Emprestei um monte de livro para ele. O Ricardo não tinha carro, por isso a gente nunca ia muito longe. Acho que minha mãe nem percebeu que a gente estava namorando, ela e meu pai mal se falam, e dessa vez achei melhor não contar para ela. Eu não conhecia a família dele, moravam no interior. Em dezembro ele foi passar as festas com eles, eu fiquei com o pai, a mãe e uma tia no Natal, foi bem sem graça. No ano novo ele me chamou no skype depois da meia noite, mas eu já estava dormindo.
Ficou janeiro todo fora, e quando voltou estava meio estranho. Começou a passar menos tempo online. Trabalhos da faculdade, dizia. Ele estava fazendo estágio. Problemas com a irmã. Bicicleta de pneu furado. Eu tentava marcar encontro, mas chovia. Comecei a entrar em desespero, eu morria de saudade, mandava textão, ele me dava "oi , bom dia, boa noite".
Até que, uma tarde, voltando de uma consulta, eu estava de carro com o pai num sinal vermelho quando vi o Ricardo na porta de um edifício. Ia chamar, mas nesse instante chegou uma menina e deu um abraço nele por trás, ele se virou e tascou-lhe um beijo daqueles, ficaram os dois ali se agarrando como se não estivessem no meio da rua, numa calçada em plena luz do dia. Eu  abri a janela e botei a cara para fora: " mentiroso, vai tomar no teu cu"!
Naquela noite mesmo veio uma explicação por email. Estava apaixonado, estava revendo conceitos, essas coisas. Que eu era muito legal, e que ele sentia muito. Sentia muito!
Eu quebrei a tela do computador. E mais outras coisas. Eu gritei muito, não parava de chorar. Me recusei a tomar os remédios, e minha mãe me trouxe para cá, mais uma vez.
É isso, essa é a minha história...

Dani Altmayer

( texto para a oficina- casal bizarro. Usei uma personagem criada no semestre anterior)
Outras dela:
http://entretantosatos.blogspot.com.br/2016/04/ainda-nao.html
http://entretantosatos.blogspot.com.br/2016/05/morango-com-chocolate.html

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Nossas histórias




Por quase quarenta anos ela esteve junto em quase tudo que me aconteceu de importante.
Uma das memórias mais remotas e mais bonitas que tenho é de estar sozinha com ela, numa manhã de sol no escritório da nossa antiga casa, cujas paredes eram cobertas por estantes cheias de livros, e onde ela estava trabalhando para um retiro da igreja, produzindo etiquetas com a identificação dos participantes para colar nas pastas. Ela tinha uma maquininha que fazia isso, iam saindo as tiras, e eu estava sentada a seus pés quando de repente comecei a ler os nomes que surgiam como mágica, um atrás do outro. Lembro de ela ter me dito, espantada, Dani, tu está lendo, e lembro de gritar de alegria, eu estou lendo, mãe, eu estou lendo.
Nas prateleiras mais baixas ficavam os gibis para nosso alcance, e ela me deu uma revistinha do Pernalonga que eu li para ela do início ao fim. A primeira de tantas.
Foi um dos dias mais felizes da minha vida, acho que não sei descrever a maravilha daquele instante em que desvendei o mistério por trás das letras que se juntavam em palavras e depois em frases e finalmente em histórias que não mais tiveram fim.
Percorri todas aquelas estantes, li um livro atrás do outro na minha infância e adolescência, e lembro do desespero dela, lê mais devagar guria, não tem livro que dê conta de tanto apetite, e não tinha, por isso eu lia e relia. Muitas vezes. Ela reclamava, vai brincar na rua, e eu não ia. Devorava livros sem capa, histórias de amor, ganhava coleções de presente, subia na escada para alcançar os livros mais altos, proibidos para crianças, os quais eu lia escondida sem ela saber. Pequenas transgressões que sempre nascem de tudo que provoca curiosidade. De tudo o que é proibido. O escritório era uma terra encantada, onde todas as aventuras eram possíveis e eram minhas.
Os livros são o paraíso dos tímidos, mãezinha. Nosso melhor esconderijo.
"Volta para a terra, Dani. " Era em vão. Eu tinha descortinado todo um outro mundo com a leitura, e ela sabia. Não só sabia como entendia. Entendia e compactuava, também ela uma grande leitora. De vez em quando também ela sumia. Quantas vezes a peguei, em tardes de verão, deitada de lado na cama, imersa em outras viagens, no fim de algum romance muito bom, respondendo em monossílabos sem sequer ouvir as perguntas e sem desgrudar os olhos do livro que estava lendo. Estava tudo certo, a gente sempre se entendeu na quietude das palavras escritas.
Vieram muitas outras estreias onde ela também esteve, mas poucas se comparam àquela manhã silenciosa onde fomos cúmplices de uma bela descoberta. A conquista da leitura, que não chegou aos poucos, em sílabas desconexas, "vovó viu a uva" ou coisa que o valha, veio antes do nada, numa espécie de iluminação. "Ah, então era isso?"
Tantas vezes, ainda, depois de tanto tempo, tenho vontade de compartilhar com ela o prazer de um ou outro livro especial. Entre muitas outras coisas que, vez ou outra, ainda gostaria de dividir. E nessas horas eu tenho vontade de pedir, como ela me pedia.
Volta para a terra, mãezinha.

Dani Altmayer ( nove anos sem ela)

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Mas... e a janta?



" O meu pai se separou da minha mãe porque ela não fazia nada para ele, sabe. Deixava tudo na mão da empregada, ele chegava cansado em casa e ela nem a comida esquentava, ele tinha que fazer tudo. Sim, ela trabalhava também, mas menos que ele. "
Deitada no sofá, tentando achar coragem para arrumar o armário, Clara lembra da conversa com um conhecido da academia no dia anterior. O colega, quando criança, culpava o pai que traiu a mãe, mas hoje entende bem o que aconteceu. "Ele tinha razão."
O celular toca, é o Marcos. Estão saindo há duas semanas e meia.
- Oi...
- Oi Clara, lindinha. Pensei em passar aí para filar uma janta, mas ficou tarde.
- Deu sorte, não tem janta. (Nunca tem).
- E como tu fazia quando era casada?
- Marcos, olha só. Preciso desligar, meu pão de queijo está queimando. Beijo!
Deleta o número dele. Menos um, mais um.
Resolve deixar a arrumação do armário para domingo que vem. Desliga o forno, pega um pão de queijo e recheia com maionese. Come cinco e toma uma cerveja. Liga o computador e perde seu tempo nas linhas do tempo de amigos e conhecidos. Vê uma foto do João no face da Lara. Foi seu namorado na adolescência, casou com a irmã da melhor amiga. Hoje moram no Canadá. Ele está velho, barrigudo, grisalho e não tem quarenta anos ainda. É empresário, a Lara não trabalha, eles tem dois filhos pequenos. A foto é do casal numa "breve lua de mel no lago Moraine", ao fundo as montanhas com seus picos nevados contrastam com o céu de um azul profundo.
É noite, faz calor em Porto Alegre.
Clara fecha o computador e vai para a frente do espelho do banheiro, se examina sob a luz forte. Precisa retocar o botox, está vencido há dois meses. Algumas rugas finas se formam ao redor dos oblíquos olhos azuis quando sorri. Já não tem bochechas ou covinhas, mas as maçãs do rosto continuam altas. O pai costumava falar que tinha um rosto de escandinava. Feições aristocráticas, dizia, como ela odiava aquele nariz aristocrático, fino e reto. Os cabelos na altura dos ombros, novamente pintados de loiro, já foram azuis, rosa, pretos e muito curtos, em diferentes épocas. A boca continua grande e cheia. Lábios carnudos, como no poema que ganhou de um apaixonado décadas atrás. Ano que vem faz trinta e nove anos, custa a acreditar. Prende o cabelo em um coque e toma uma ducha rápida, acariciando a barriga lisa e os seios ainda firmes. Sempre foi magra, ombros angulosos, ainda usa o mesmo manequim dos tempos de modelo. O fato de não jantar quase nunca deve ajudar. Isso, e a musculação diária, motivo de muita briga com um cara mais velho com quem morou por uns dois anos, e que reclamava das suas  roupas de ginástica, "você nunca se arruma para me esperar!" Jantavam lasanha congelada e discussão.
Suspira forte. Distraída, passa um hidratante no corpo, veste uma calça folgada de moletom e abre mais uma cerveja. Coloca Norah Jones para ouvir baixinho. Volta a pensar na mãe do colega da academia.
A TV sem som mostra um filme em preto e branco. Sentada no sofá de pernas cruzadas, acende um cigarro e pega um livro, mas não consegue se concentrar. Está longe, tem uma reunião importante bem cedo pela manhã. Faz algumas anotações no seu note, o celular toca de novo. Número desconhecido, não atende.
Logo apita uma mensagem na tela: "Oi minha lindinha gostosa quer ir ao cinema amanhã e dividir uma pizza?"
Sem coragem de perguntar qual o filme, Clara desliga tudo. Apaga o cigarro, e vai dormir.

Dani Altmayer

( tema livre para a oficina, descrever um personagem a partir de uma foto escolhida)



quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Algumas regras



Ele ronca, mais como um gatinho do que como um leão, mas eu comprei protetor de ouvido porque às vezes ele dá uns guinchos que me assustam, e fala dormindo. Já ouvi coisa que não queria, inclusive.
Eu gosto de dormir só de camiseta, mas tenho usado meia porque ele reclama que o meu pé é gelado. Cada um tem seu cobertor, o dele vive no chão, porque ele é grande e sente calor, tem muito pelo também, e você já deve estar pensando que ele parece um urso, mas não.
O ar condicionado ainda é um problema, às vezes rola uma briguinha boba na hora de deitar. Vamos fazendo concessões, cada dia um cede, eu mais. Para isso ainda não tem regra. O lençol térmico eu tirei faz tempo, ele suava feito uma geladeira velha, acho que você nem sabe como era uma geladeira suando. Mas eu sei. Também não preciso mais dele, quero dizer, do lençol, agora que tenho um homem na cama, quase sempre. De vez em quando ele fica vendo TV até tarde na sala, jogos e essas coisas, e nessas horas eu sinto saudade. Do lençol.
A TV fora do quarto é regra antiga, não abro mão. Ele reinou um pouco no começo, mas acho que acostumou. Quarto é para trepar ou ler, depois dormir. Principalmente.
E para dormir de conchinha, porque se era para cada um virar para um lado eu continuava sozinha. Engraçado, todos esses anos e eu sempre dormi no cantinho direito da cama, era como se esperasse por ele, enorme, preenchendo todo o resto. Ele vira pro lado e eu me grudo nele, já tentamos o contrário, mas quase morri sufocada. 
Tá tudo ótimo, sim. A gente só tem que combinar antes para dar certo, você sabe que eu gosto de combinar tudo bem direitinho. É o jeito de fazer funcionar, homem ocupa muito espaço. Tem a questão do banheiro, ele usa o outro. Não, ele não é porco. Não exatamente.
Ele diz que eu é que tenho muitas manias, só porque tenho uma lista de tarefas para cada parte da casa, que colei na geladeira.  Sempre facilita deixar as coisas à vista, bem claras. Tipo quem cozinha não lava. Por enquanto ninguém anda cozinhando nada, nunca comi tanta pizza e sushi. Depois te conto das regras da cozinha, você me diz se eu estou louca.
Mas me fala um pouco de você, tudo bem? Pena que não deu certo com o Fernando, ah, não, claro. Jeremias. Que coisa, guria, tá difícil de acertar. Vai ver faltou umas combinações também.
Bom, mas é da vida, vida que segue, como dizem. Importante é você estar bem. Bola para frente.
Temos que nos ver, estou louca que você conheça ele, amiga. Você vai adorar meu cachorrão...

Dani Altmayer 

( texto para a oficina de escrita, cinco regras para fazer alguma coisa... perdi a conta)