quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Caso de polícia


A Elaine era puta, antes de casar com o Claudiomiro.
Eu e a Marinalva estávamos sentadas em um banco da praça, olhando as crianças que brincavam na areia. Ela estava me botando a par das últimas novidades:
-  Parece que ele viu ela num site e ficou besta, de tão bonita. Foi a São Paulo buscar.
A Marinalva era a maior fofoqueira da cidade. Ela era casada com o assistente do delegado, chefe do meu marido. Ela sempre sabe de tudo:
- A Elaine fazia faculdade de direito e trabalhava como garota de programa à noite, para juntar dinheiro.
-  Eu sempre achei ela com cara de metida.
Lembro da foto que saiu no jornal, e nas que espiei no facebook. A Elaine era uma mulher elegante, magra, bem vestida. Cabelo curtinho e loiro pintado, ela era bonita sim. Mas não dava pinta de puta. Talvez pela idade, 36 anos, por ser mulher de empresário rico. Tinham dois filhos, um casal de pré adolescentes.
- Ela estava sempre nas colunas. Fazia um monte de caridade, também.
- Viu, não se pode confiar nas aparências. Parece que ela fazia de tudo, lá em São Paulo.Vai saber se não continuou, depois do casamento?
Penso nas poucas vezes que encontrei os dois na missa do Galo. Eles iam todo domingo à igreja, eu mesma só vou no Natal e no sétimo dia, para fazer uma social. Minha religião e da Marinalva é outra.
- Pareciam um casal de novela, com aqueles dois filhos compridos, todo mundo magrinho- comento.
- Parece que as crianças estão em São Paulo, com a avó.
"Ela fazia de tudo". Devia ser tipo aquela mulher do filme que vi outro dia, sem querer, no computador do Nando. Não vou contar do filme para a Marinalva, vai que ela pense que o meu marido andava com a Elaine. Todo mundo está falando que ela tinha um caso com um homem casado, não disseram quem é, e ainda, que gostava de mulher também. O povo fala, mesmo, olha a Marinalva:
- Sabe a Ritinha, a manicure do salão, ela ia sempre na casa deles. Dizem que dormiam os três juntos.
 - Isso eu não acredito.
Eu não tenho nada contra, cada um faz o que quer da vida, mesmo sendo errado. Não sou como a gente dessa cidade, que é podre de fofoqueira. Estão crucificando a infeliz da Elaine. Está bem que ela era cínica, se é que era puta, isso eu acho, com aquela cara de nariz empinado, a caridade, a roupa de madame, aqueles livros todos.
-  Enganou muito bem, né Marinalva?
- A mim, ela nunca enganou! O Claudiomiro devia saber onde estava se metendo!
A Marinalva também não tem nada de santa. Nas festas da polícia eu via ela esfregando aquela bunda grande com o delegado, enquanto o bêbado do marido fumava com o escrivão. Eu vi, não foi ninguém que contou. Ela sai com ele, tenho certeza, deve ir no motel novo da estrada. Eu nunca comento, não gosto de me meter na vida dos outros. Também o marido dela, sei não, tem jeito de não ser lá muito macho.
- Eu não confio em mulher que tem silicone.
A Marinalva diz isso porque está com o peito enorme.
- A Elaine?- pergunto.
- Magra daquele jeito e com aqueles peitos, o que você acha?
Não sei, não gosto de ficar falando. Eu tenho pena é dos filhos. A gente sempre tem que pensar nos filhos, foi o que eu disse pro Nando quando ele quis sair de casa uma vez, porque estava todo apaixonado. Família tem que ficar junto, ele no fim concordou. Também o Nando é policial, é pobre. E pobre não separa para não dividir miséria. Dá muito trabalho.
A Marinalva coça o queixo, pensativa:
- Sabe que eu quase dou razão para ele?
- Para o Claudiomiro?
- É, coitado. Sempre foi um homem tão bom.
Nem eu, que sou acima de qualquer suspeita, não me atrevo a concordar com a minha amiga. Razão de matar a mulher com um tiro na cabeça?
Corno ou não, isso não está certo. Separa, bate, qualquer coisa, mas não precisa matar, Jesus. Deus é que sabe, se foi Ele que deu vida, só Ele que pode tirar. O pastor falou disso ontem mesmo, no culto.
- Matar é pecado, Marinalva.
- Vai ver foi até suicídio, ela responde. Ela tomava uns remédios tarja preta, que eu sei. O farmacêutico contou para o delegado. Vão pedir outro laudo do médico.
Começa a chover de repente, e a gente recolhe a criançada da praça. Hora de ir para casa, fazer janta, botar no banho. A Marinalva tem três filhos. Um, ainda bebê de colo.
Os dois mais velhos são a cara do delegado.

Dani Altmayer
( exercício para a oficina de escrita- ambivalência do mal)

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Outra




Olha, é para você esse texto, sim. Pode ler. Para você que pensa que o mundo gira ao seu redor.
(Ou seja, quase todos, de nós. De vocês.)
Quando você diz que me ama, você ama o que em mim reflete você, Narciso.
Você ama a imagem que você criou na sua cabeça, e ela não sou eu, pode ter certeza. Porque você não me conhece, sabe? Você não entende nada de mim.
Não sabe dos desertos que atravessei, das lágrimas que engoli, do meu coração partido.
Porque quando eu te contei, você não prestou atenção. Enquanto eu falava, você só esperava o tempo certo para dar a sua opinião, aquela que já veio de casa com você. Opinião que eu sequer pedi. Que não me define. Não me defina, por favor.
Você não sabe das minhas pequenas vitórias, das tantas derrotas, do exame que fiz mês passado. Do medo que eu tenho de trovão, e de morrer, e de que morram. Dos tantos medos que tenho, das grandes coragens que muito me custaram.
Você não perguntou, e eu não disse.
Do texto que escrevi, da chuva que não parou, do frio que eu senti. Do filme que assisti, da besteira que falei, das saudades que vivi.
Você não sabe da paixão que escondi, do ônibus que perdi, da gripe que me derrubou. Do filho que cresceu, do tempo que voou. De mim, que cresci.
Do inferno que é, tantas vezes, viver. Da delícia.
Você não sabe de nada, não se importa. Não cuida de mim, nunca cuidou. Eu cuido de mim, Narciso. Você cuida de si. Sempre foi isso, cada um por si.
Você diz sentir falta, mas falta de quê? De mim?
Não. De alguém que você projetou no espelho da tua vontade. Da imagem congelada de um antes.
Não sou eu ali, sinto muito. Eu sou outra.
Você sente falta de palavras e tempos passados, perdidos. Que não serão devolvidos. Nunca são.
Não pode chegar assim, de repente, esperar a mesa posta, a cama pronta, e um lugar na janela. Uma outra de mim, que te sirva. Não tem.
Eu não sirvo, eu nem presto. Eu não sou a outra. Sou à toa, sou sozinha, cheia de erro e defeito. Mas sou minha.
Você me chama para jantar, depois esquece. Oferece migalhas, sem saber o tamanho da fome que tenho. Tenta roubar minha solidão, eu não dou. Minha solidão é valiosa demais para ser roubada em troca de um quase nada.
Você diz que ama, mas abandona. Você é machista, eu sou o contrário. Assumida. Eu sou livre, você apegado. Você quer sexo fácil. Eu sou complicada.
Mas tudo bem, se fosse só isso. Um tesão honesto tem lá seu valor. Ainda é melhor do que muito amor inventado. Uma "mentira que a sua vaidade quer", isso não é amor. Não para mim.
Porque amor é tocar o mundo do outro com cuidado. Com permissão, com respeito. Para amar, tem que ser capaz de sair de si mesmo. Tem que ser capaz de admirar. Saber que existe um outro, que não é invisível. Amar é ouvir, e ser ouvido. Olhar, e ser olhado. Compreender, e ser compreendido. É coisa para dois, nunca trabalho de um só.
"Eu te amo." Que nada...
Nem você a mim, nem eu a você. Nem ninguém, desse jeito.
Narciso, o que você ama é o que você pensa, e o que você acha que quer. Você pensa que ama. Imagina. Mas não.
Fruto da sua ilusão, você cria o que melhor te convém. À sua imagem, e semelhança.
Pálidos reflexos que nunca serão.
Não são. E não servem.
Não sou eu ali. Olha bem. É só você, no lago.
Não sou eu, nem eu sou de ninguém. Eu sou outra.
Mas, acima de tudo, eu não sou a outra. Não de você.
E não, não com você.


Dani Altmayer