domingo, 24 de junho de 2018

Coração





Estou na cozinha, depois do almoço, a voz triste me chama.
- Mãe, vem aqui. Olha essa cena.
Um homem caminha sozinho pelo meio da rua deserta, descalço, de bermuda e camiseta.
Faz frio em Porto Alegre na tarde cinzenta de domingo. Falo para o JP pegar uma calça de moletom e um casaco, ele pega também um par de tênis e meias, passo a mão em duas bananas na fruteira, saímos em busca do andarilho que já sumiu da nossa vista, virou em uma esquina qualquer.
Não pode ter ido longe, não foi, o encontramos duas quadras adiante, chamamos. Ele vem, muito alto e magro, a barba branca e o cabelo longo, aceita as roupas mas não quer as meias, nem os sapatos. Pede um café, eu só tenho as bananas, que ele engole inteiras, jogando as cascas no chão. Seus olhos são como os pés, cinzentos, ressecados, sem vida, ele fala algumas coisas que a gente não entende, reforça que não quer as meias, voltamos para casa.
- Acho que ele não queria ser ajudado. Mas devíamos ter levado mais comida.
Sempre é pouco o que a gente pode fazer e toda caridade parte de uma desigualdade que não devia existir, de um lugar privilegiado onde existe, isso sim, a opção de ver sem enxergar, e eu me lembro do JP pequeno ainda, devia ter uns seis anos, eu adoro contar essa história:
Saíamos de um restaurante no Moinhos, eu, ele, meu pai e minha mãe, quando um menino pouco maior que ele nos abordou para vender uns panos de prato, ele (JP) pediu para a gente comprar, e depois, quando estávamos já no carro disse uma coisa que nunca esqueci.
- Quando eu vejo essas crianças me dá uma tristeza tão grande, eu sinto uma culpa não sei de quê.
Eu sei, ele sempre soube.
E ainda que a esmola seja dada para aliviar essa culpa, devida ou não (eu creio que sim, todos somos culpados de certa forma), ainda que seja sempre muito pouco, um é bem mais do que zero, ainda que toda caridade possa ser questionada, ainda assim, esse homem desconhecido que hoje cruzou a nossa vida tem agora uma calça quente para vestir, mesmo que seus pés sigam nus trilhando por essas ruas sem rumo.
E eu tenho a felicidade de chamar de filho o guri de olhar atento na janela. 

domingo, 3 de junho de 2018

Vinte segundos




Vinte segundos é suficiente?
Ela veste uma camiseta branca estampada de abacaxis amarelos, uma saia jeans e sapatilhas vermelhas. O cabelo curto tem mechas azuis e ela é uma explosão de cores na minha frente na manhã nublada. No braço direito tem tatuado feito um bracelete as palavras: vinte segundos de coragem.
No punho esquerdo, o símbolo do infinito e um coração, e enquanto conto seus batimentos ela me conta que vai embora. Está de mudança para São Paulo, conheceu um cara, artista também. Pediu demissão da agência onde trabalhou durante cinco anos, vendeu a moto e conseguiu transferência da faculdade. A mãe é contra, acha muito arriscado. As mães têm esse paradoxo, são medrosas em nome do amor. Sei disso porque sou dessas, vez em quando, mais vezes do que gostaria. Mas não digo nada disso, apenas lhe desejo boa sorte e depois que ela se vai, fico pensando na tatuagem dos vinte segundos.
Não faço ideia de onde vem essa frase, então recorro ao meu cérebro de bolso e descubro no Google que é do filme Compramos um zoológico ( eu vi, mas esqueci), e que falta um adjetivo para essa coragem de vinte segundos: insana.
"Às vezes tudo o que você precisa são vinte segundos de uma coragem insana."
Eu entendo que ela tenha suprimido o insana porque sei lá, acho que nenhuma coragem é isso. Pelo contrário, o medo é que é insano. O medo é insensato, por definição. Um doido varrido que nos mantém cativos, prisioneiros na zona de conforto e escravos de nossas inseguras limitações.
Ter coragem é o oposto, e talvez não leve nem vinte segundos. (Ainda que muitas vezes demore uma vida inteira.)
Coragem não é não pensar, é usar a liberdade para pensar e pensar muito, é fazer escolhas, dentro e fora da caixa, e correr riscos, é fazer valer, e pagar cada centavo por isso.
Desejo que a menina de camiseta estampada encontre o que ela procura em São Paulo ou além, mesmo que depois ela perca, é da vida, este achar e perder infinitos, mas que ela não perca nunca a lucidez, a beleza e a coragem de se entregar. A cada vinte segundos, menos.
Ou mais.

Daniela Altmayer