domingo, 28 de abril de 2019

Josefina

   

leu a carta na cama
abraçada ao amante
amassou o papel
- que se dane
chamou a criada
ordenou um banho 
quente com ervas 
e flores e mel
- ele está chegando
amanhã


     


sábado, 27 de abril de 2019

Amores continuados



veste-se como quem vai embora
acende um charuto e olha devagar
a menina que dorme insolente
na cama recém desfeita 

as pás do ventilador giram lentas
o sol entra pelas frestas da cortina
o calor envolve a nudez quase pura
ela abre os olhos e um sorriso sonolento
murmura seu nome sem resposta

ele sabe que é última vez mas não diz
não tem pesar em seus passos trêmulos
quando abre a porta da rua nós também
sabemos
que ali se cumpre uma espera

despede-se hoje dos amores terrenos
que viu passar como a água do rio
amores de carne e de lua
impregnados de ausência

ela o aguarda tardia
a única mulher que ele amou
(da cintura para cima)
por toda e para o resto
da vida

Retrato de Florentino Ariza

Daniela Altmayer
(oficina de poesia)






domingo, 21 de abril de 2019

Naufrágio de linho


   

foi o silêncio que vi primeiro
então foram os dedos longos
só depois soube o nome
e que os olhos eram claros

um céu alto de nuvens baixas
um homem que descortina palavras
na voz serena de quem sabe
ouvir sorrisos de sol

só depois descobri
nos teus braços a força
a fúria a paz da tormenta
o cheiro de terra molhada

e agora trago na boca sedenta
a enchente eterna
o gosto secreto
da chuva

Daniela Altmayer
(retrato para a oficina de poesia)








sábado, 20 de abril de 2019

AutoRRetrato



os anos da minha vida
já não cabem nos meus dedos
o que talvez não seja justo
é essa zombaria de deixar intacta
a coisa que vai por dentro

aquela que chamamos
imune e resistente àquilo
arde como ardia antes
quando os anos ainda cabiam
completos nos meus dedos

Daniela Altmayer

(Oficina de poesia)

sábado, 13 de abril de 2019

The Orchard

     
               


                 1
a igreja de pedra na curva do rio
o sino toca a sinfonia do domingo
é verão ainda mas é tarde
uma brisa levanta a saia
da cor de alfazema das flores
as mesmas que adornam o caminho
as flores que Virginia viu

                 2
a ponte também ela pedra
contempla o largo do rio onde
uma família de patos nada em silêncio
flutuam nas águas escuras pétalas e
folhas amarelas prenúncio de outono

                  3
em algum lugar mais adiante nesse mesmo rio
jovens barulhentos tomam vinho
e deslizam com a vara num barco 
na infeliz tradução de punting

                  4
as casas mesmo elas são de pedra
sem cor tem janelas brancas
e floreiras
que se debruçam nas calçadas estreitas

                  5
chego ao portão de ferro onde
bicicletas de cestos coloridos esperam
na confiança silente de sombras ancestrais

                 6
nos jardins da velha casa de chá
há grama alta sob as árvores
macieiras carregadas
cadeiras reclináveis de tecido listrado 
borboletas e vespas zunem ao redor
dos bolos com creme e geleias de frutas vermelhas

                  7
já passa das cinco faz um pouco de frio
no verão tardio de setembro
nesse lugar que parece uma fenda no tempo
quase posso ver Virginia e os outros
com uma manta nos ombros
entre xícaras de chá e licores de maçã

                  8
talvez aqui às margens desse jardim
onde os pássaros cantam baixinho
ela tenha sido feliz algum dia antes 
de pegar aquela pedra e mergulhar
em outro rio

Daniela Altmayer
( exercício da oficina, para Karen e Bella que me  levam a viajar na terra da Vírginia -e da Eileen)


domingo, 7 de abril de 2019

Poema de transporte



chegar é melhor que partir
mas não sempre

dez horas o oceano
duas refeições 
e uma turbulência
nos separam

decolar é melhor que aterrisar
mas não sempre

as rodas rasgam o asfalto
ansiosas se batem 
os cotovelos as bolsas
as bundas 

vinte minutos vem o ônibus
um corredor uma escada que sobe
mais outra que desce
a esteira

malas pretas iguais
giram impacientes
sob olhos impacientes
olhos cansados

nas mãos o peso do alívio
de quem quer acabar logo
de chegar aos poucos

o vidro sujo reflete
alguma gente um cãozinho
poucos abraços 
teu rosto teu sorriso torto
minha cara
a pressa

viajar e voltar
para casa

é melhor
mas nem sempre



Daniela Altmayer
( exercício para oficina de escrita)