quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Teia de aranha


"O cara é tudo de bom. Para começar, não é casado. Não é engenheiro, nem piloto de avião. Não fuma, não tem tatuagem de joaninha no pé. Não é casado, já falei isso? Não usa bigode, não acredita em traição, acha ok uma mulher ganhar mais do que ele, gosta de lavar louça, faz curso de violão, adora o Chico e tem uma casa na praia. Não, não é casado, Juliana, tenho certeza. Mora com a mãe. É separado, tem uma filha adolescente.
Conheci naquele site de relacionamento que te falei. Ele foi o terceiro, a cigana disse que três é o meu numero de sorte. Os outros dois sim, eram bem esquisitos. Ele é diferente, a cigana viu casamento, e viagem para a Europa, Paris e Veneza.
O que tem de mais ele morar com a mãe? Acho legal ele cuidar dela, se eu tivesse mãe faria o mesmo. Ele não tem muita paciência, mas está lá, isso que importa. Melhor morar com a mãe do que com a mulher, você sabe.
Te falei que ele ama o Chico? Estava louca para ouvir ele tocando "Eu te amo"no violão, mas parece que ele ainda não tem o violão. Plano de fazer aula, isso ele tem.
Qualquer dia ele me convida para ir à casa da praia, adoro praia no inverno. Não, a casa é da família, tem que esperar um fim de semana livre. No inverno parece que pouca gente vai.
Não é bonito, não. Nem feio. É interessante, cabelo meio comprido, alto, e a barriga está dentro do limite aceitável. Falou que corria, mas quando chamei para me acompanhar na bicicleta, desconversou. Problema no joelho. Na verdade, caminha na Encol às quartas e aos sábados. Tá bom, né? Assiste ao Esporte Espetacular e eu sigo pedalando sozinha, domingo.
Ele é super organizado, acho que tem um TOC de leve, na medida. Organiza camiseta por cor, preto, branco e cinza, é só o que ele usa. Armário impecável. Com as finanças, então, é super controlado. Acha bobagem gastar dinheiro com cinema, se os filmes bons passam a toda hora na TV, é só saber esperar. Teatro é perda de tempo. Jantar fora ele acha chato, um desperdício. Adora a minha comida, elogia um monte. A gente toma vinho, e ele não se importa de limpar tudo depois, mas desenvolveu alergia ao detergente de louça, fica todo embolado. Temos planos de comprar uma máquina, ele está pesquisando os preços. Eu odeio lavar louça.
Ainda não conheci a filha, parece que ela não superou bem a separação. Ele não quer traumatizar a  menina. Faz quatro anos que separou, mas a ex é muito complicada, sabe? Ele fala muito nela, o tempo todo. Também, a mulher aprontou horrores. Louca.Você sabe, Ju, essas coisas de trauma levam tempo. Não tenho pressa.
Eu gosto dele, mesmo, a gente se dá bem, conversa bastante. Ele é um pouco filósofo, cheio de opinião forte. O sexo é bom, meio igual toda vez, mas um igual que é bom, entende? Uma vez por semana, sim. Sábado à noite, depois do super. Durante a semana eu trabalho muito. Ele é autônomo, fica mais folgado, mas também não faz muita questão.
Estou saindo com ele há sete meses e dois dias. Meu recorde, guria. Acho que a cigana estava certa, é ele. Finalmente. Nem tudo é perfeito, nunca é. Ele vê muita TV, canal rural, leilão de boi, acredita? Não gosta de ler, diz que cansa os olhos. E é meio desencanado para se arrumar, pouco vaidoso, não usa perfume. Acha tudo frescura. Mas tem cheiro de sabonete e não é casado. Os óculos, que ele comprou no camelô, estão remendados com esparadrapo. Tudo bem.
Pior é quem remenda com esparadrapo a própria vida."

Eu acho, Marina.

Dani Altmayer ( Exercício sobre "dedo podre"- oficina de escrita criativa)

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Dezoito do oito

Um menino me ensinou, quase tudo o que eu sei.
Era um dezoito de agosto do primeiro ano do novo século, o dia em que fui apresentada a um alemão careca e vermelho, que nasceu de olhos abertos e de parto cesariana ( me perdoem), em uma maternidade na terra da garoa, numa sexta feira ensolarada, às 16 horas da tarde( e nove minutos).
Se eu não acreditava em amor à primeira vista, acreditei naquele instante.
Hoje, esse amor completa 15 anos ( e 40 semanas).
A cada ano, ele está alguns centímetros mais alto. Alguns centímetros mais longe de mim. Alguns centímetros mais perto do seu sonho. De se tornar o homem que um dia vai ser.
E eu, olhando para cima, e olhando para trás, só tenho a a agradecer por esse guri que ganhei de presente, naquele dezoito do oito, e que me enche de admiração e orgulho. Que me coloca de volta no chão, quando teimo em voar ( ele tem esse dom que me falta, a sensatez ), com suas tiradas impagáveis e a sua psicologia, inata. Ele, que é independente, bagunceiro, correto e focado ( para o que quer). Ele, que é a pessoa mais linda e implicante do mundo, que testa minha paciência e meu amor todo dia. (Em geral, a minha paciência perde, e o meu amor ganha. E fica tudo bem, mesmo assim.) Que diz que sou chata toda vez ( e eu sou), que diz que me ama, vez em quando. ( Tão bom de ouvir)
Mas eu sei que ele me ama, sempre.
Nosso amor errado mais certo do mundo, é desse tipo, o meu e o dele.
(É amor à prova do tempo, e do resto.)
Feliz aniversário, JP!
Poderia te desejar tanta coisa, mas só uma me interessa, mesmo: a tua felicidade.
Que você seja autêntico, e feliz de verdade, meu filho. Que não tenha limites para sonhar, e realizar. Do jeito que for, com teus próprios pés, por erros e acertos, pelo caminho que VOCÊ escolher. Porque você vem largando a minha mão, já faz tempo. E tudo certo, é bem assim que tem que ser.
( Prometo tentar largar, aos poucos, o seu pé). Vai lá, meu filho. Cresce!
Eu estarei sempre por perto. Discretamente (Prometo me esforçar).
Mesmo longe, mesmo muito tempo depois.
Te amo, do tamanho do "infinito do espaço".

Mãe










segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Imprevisão



Eu dormia.
Era uma noite sem lua, no início do outono,
Quando você chegou.
Eu inventei um pouco agora, para ficar bonito.
Não sei, sei que era noite, e era outono, e tinha uma janela.
Essas coisas que sempre tem.
Mas da lua eu não sei.
Você entrou pela fresta esquecida da janela.
Fresta também, sempre tem.
(Esquecida, então, como tem.)

Não veio como o vento daquelas terras bem ao sul,
o vento que fazia barulho e assobiava na esquina, 
despenteando cabelos,
levantando as saias das meninas.
Não foi como aquele vento que tem nome, que eu contei para você outro dia.
Desse meu jeito estranho engraçado.
Aquele vento é por demais gelado.
Deixa a gente meio louca, meio poeta.
Meio desembestado.
Meio assim, fora.
Aquele vento canta tão triste,
Tão tristes histórias ele conta.
Parece que chora.
Faz fugir.

Da imensidão.

Você não entrou feito esse vento,
Não veio lamento.
Foi brisa feliz, de um outro lugar.
Veio lá de cima, onde mora o sol e o azul.
Numa madrugada sem lua, sem estrela ( não sei, talvez), sem fazer alarde.
Chegou. Você.
Feito um murmúrio,
Cantarolando baixinho.
Entrou pela fresta estreita, onde só pouca coisa pode passar:
A música. A luz, e o ar.
( Só coisa importante, veja bem: música, luz e ar)
De mansinho, como a moça no sonho.
Diferente, você não se desfez.
Ainda.
Feito brisa morna, sem nome, veio leve, veio forte.

Imenso.

Lá em cima, de onde você veio,
Do sonho da madrugada.
Nuvem anjo passarinho ou mosquito.
Ventinho.
Você entrou pela fresta da noite.
Uma lufada, um bafo quente, mudando a estação.
Atravessou meu quarto escuro, meu inverno, minha dor.
Os limites, da minha janela.
E outros.
Acabou com o frio.
(Que nem começou.)

Intenso.

Com medo de não voltar.
Com medo de ficar.
Com medo que ficasse.
Ficou.
Você é ar. 
Sei lá. Sei lá.
Poesia.
Certo, errado, essas taxas inventam os outros.
Para punir os que sentem.
( Mesmo sem remissão, não me obriguem a pagar.)
Você foi perdoado. Eu também.
Faz calor agora.
E é agosto, no sul do Brasil.

Intenção?

Dani Altmayer

sábado, 15 de agosto de 2015

Papo de consultório




Dona A. tem 83 anos, é viúva há muito tempo e não deve medir mais do que 1,40 m. de altura. Magrinha, pequena e falante, é a sua segunda consulta comigo. Vem para mostrar exames.
Ela queria meu telefone, "gostei tanto da senhora, doutora." E explica da importância de se gostar do médico, tendo em vista os planos que ela tem de ainda viver por muitos e muitos anos. "Meus filhos me querem viva por muito tempo, perderam o pai cedo. E eu gosto de viver, sabe doutora. Faço academia, me cuido, me alimento bem."
A cabeça está ótima, e a vida é boa.
No final da consulta, querendo brincar com ela, eu pergunto:
- E os namorados? ( Imaginando um jogo de bingo, um baile de terceira idade, confesso).
Ela, bem ligeira:
- Eu gosto muito de trepar, doutora! Adoro.
(Assim, bem assim. Juro!)
Diante da minha cara de espanto, conta que tem um namorado da mesma idade que ela, e que é casado, graças a Deus. "Fico só com a parte boa, doutora. "
- E funciona bem, dona A? ( Querendo saber em geral)
Ela, bem feliz ( e específica):
- Comigo ele nunca falhou! 
É, dona A. É bom quebrar tabus. A vida é boa.
E a vida só acaba quando termina.

Dani Altmayer

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Sobre coisa alguma



Eu não sou poeta. mas nasci com essa coisa dentro de mim.
Poesia vem de presente. Para você, poeta, é assim.
Ou é coisa que gente comum toma emprestado, como eu.
Pega como bolsa e dinheiro, para ir ao cinema, ao supermercado.
Pega como paciência, para aguentar o paciente velho mal humorado.
Pega como perfume, afrodisíaco e mentira. Para seduzir um amado.
Poesia a gente pega no ar, gripe, na nuvem, no livro da estante.
Poesia é o que a gente rouba, inteira, do instante.
É tudo que sobra.
Do instante que rouba da gente, o tempo.
Inteiro.
Poesia é só um jeito de olhar diferente.
É tanto.
Nada demais, nem de menos, nem de louco. Todo mundo tem, um pouco.
Poesia é só um jeito.
Um jeito esquisito de ser e de ver e de sentir e (des) viver.
Um brincar com as palavras. Pode nem entender.
Pode rimar, melhor ainda que não.
( Não sei fazer poesia sem rima, criança.).

Por exemplo,
Vaidade, verdade. Rimam e não combinam.
Mudam apenas duas letras, uma sílaba, muda tudo.
Troque a vaidade pela verdade, experimenta.
Vai, coragem! Ver.
Ah, a verdade imensa. Assusta.
Dá volta ao mundo, devolve.
A vaidade mais bonita parece. Fumaça.
Envolve, e não alcança.
Não me alcança.
É só um filtro.
Uma viagem de segundo.

A poesia é só um jeito de dizer.
Uma vaidade da verdade. Um enfeite.
Eu não sou poeta, só tenho essa coisa esquisita aqui dentro.
Que grita.
Que eu poderia agora rimar com peito, mas me recuso.
Aqui dentro é muito maior que o meu peito pequeno, é sangue e veia e suor e lágrima, tanta.
É sal, é rim, é pulso, confusão, é mais embaixo e mais além.
Aqui dentro é tudo tão de verdade, que dói.
E eu tento.

Porque eu não sou poeta, nem nada.
Sou feito criança brincando de ser.
Estou aquém.
Estou aqui, sem saber o que fazer. Perdida.
Fodida.
Eu não finjo, é de verdade a poesia que brota em mim.
Mas não é minha.
Eu roubei, emprestei, te tomei. Copiei.
Talvez por vaidade, que não sou melhor que você.
Sou apenas mais uma impostora, dessas que rima.
Pior tipo!
Invejosa.

É que eu tenho essa coisa por dentro, essa ânsia, que a tua poesia acalma.
Alivia.
É que você... Você sim, poeta.
Poeta sem métrica, da justa pretensão, você é maior.
Nasceu assim, sem rima, sem nexo, tão fácil, tão simples, que parece até vaidade.
E não é.
Fica parecendo não ser de verdade. Mas é.

Dani Altmayer