quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Prefiro Homens que Elogiam os Óculos

   
Era uma noite quente de domingo, janeiro em Porto Alegre. Acabáramos de sair do cinema, eu e uma amiga. Como a noite pedia, e o filme tinha sido muito triste, decidimos parar em um bar na Padre Chagas para tomar uma cerveja. O lugar estava quase vazio, era domingo, e era janeiro. Logo que chegamos, dois caras que estavam em uma mesa ao lado se aproximaram e começaram a puxar assunto. Uma conversa meio boba, sobre carros e apartamentos, numa tentativa explícita de impressionar. Eu e minha amiga apenas ouvíamos, sem interesse, até o momento em que eles resolveram brincar de adivinhação. Primeiro eles concluíram que estávamos participando do Fórum Social Mundial, o que não era verdade. Diante de nossa negativa, chegaram à brilhante conclusão de que éramos professoras, então. Só podíamos ser professoras. Motivo da dedução: as duas usavam óculos. Esta simples e, a princípio, inocente afirmação bastou para que eu fizesse o que já deveria ter feito desde o começo: expulsei os dois, sem mais. E fiquei furiosa. Admito que foi uma reação um tanto exagerada.
   Minha amiga me olhou com espanto, e eu expliquei: trauma. Uso óculos desde os três anos de idade, devido a um sério problema de visão. Contava minha mãe que, quando os coloquei, fiquei maravilhada com a nitidez do mundo ao meu redor, como se estivesse enxergando pela primeira vez. Usei óculos por toda a infância, e isso foi durante os anos 70, o que significava um modelo mais feio do que o outro, pode apostar. Até hoje, quando olho os álbuns, fico com pena da menina que se escondia atrás daquelas aberrações. Ela até era bonitinha, hoje consigo perceber. Mas aquelas armações enormes, de lentes grossas, esverdeadas, não ajudavam em nada. Além da questão estética, minha pouca visão prejudicava  meu senso espacial, e eu vivia me batendo em todas as quinas de móveis, o que resultava em pernas sempre cobertas por hematomas. Ganhei a fama de desastrada, e não a perdi até agora. E haja yoga para recuperar a consciência corporal. Aliás, não praticava esportes pelo mesmo motivo. Muito cedo me refugiei nos livros, e passei meus primeiros anos assim, mergulhada nas aventuras que não podia viver. Os livros acobertavam minha timidez. Me poupavam de mim. E me redimiam do resto.
No início da adolescência, pude usar lentes de contato, e finalmente me livrar dos apelidos carinhosos, entre eles “quatro olhos”, para citar apenas um, dos mais famosos. Usei lentes e fui feliz até os 18 anos, quando então desenvolvi uma alergia que me impediria de voltar a usá-las pelo resto da vida. Crise existencial. Pânico total! Como ir para a balada, que naquela época chamávamos simplesmente de “noite,” usando óculos? Mesmo com a música do Paralamas do Sucesso bombando nas rádios, não era uma opção. Eu não nasci de óculos, mas quase. Ninguém olharia para uma menina de óculos, era o que eu pensava. A solução, então, foi passar a sair sem eles, e correr os riscos inerentes de não se enxergar um palmo na frente do nariz.  Além dos óbvios hematomas, a chance de beijar sapo por príncipe triplicou. Isso não me incomodava, afinal, dizem, o que os olhos não vêem, o coração não sente. Mas havia mais um problema: sou levemente estrábica, defeito que se corrige com os óculos, mas se evidencia quando estou sem. E se agrava quando bebo além da conta. Como resultado, muitas vezes ouvi esta pergunta, assim mesmo, na cara: ué, você é vesga? Resolvi então, providenciar uma franja gigante, que caía sobre meus olhos, estrategicamente. Isso me conferiria um  ar de mistério e sedução, imaginei. Por sorte, era o final da década de 80. Assim passei meus anos de juventude. De olhos semicerrados e franjão.  Ah, e de ombreiras. As lembranças que tenho deste tempo são, obviamente, borrões mal definidos, e não poderia ser diferente. Acredito que as bebedeiras também não ajudaram muito. Bom, tem coisas que é melhor esquecer mesmo. As ombreiras, por exemplo.
     Só bem mais tarde fui fazer as pazes com aquele objeto, tão essencial na minha vida. Hoje uso óculos, se não com orgulho, ao menos com resignação. Com aceitação e certa dignidade. Tenho uma pequena coleção, e não tiro para nada. Bem, para quase nada.
O bom de amadurecer é isso, nossas perspectivas mudam, os valores também. Hoje estou muito mais interessada em ver bem do que em ser bem vista. Bem resolvida, pelo menos até algum engraçadinho qualquer me dizer:
 -Você tem olhos bonitos, não deveria se esconder atrás dos óculos.
          Grrr.
Traumas. Se duvidar, a gente morre antes deles.

Dani Altmayer

Oficina de crônicas Fabrício Carpinejar em fevereiro/março 2013.
                                                     
No primeiro dia, ele perguntou a cada um sobre os traumas. Depois mandou escrever uma crônica, enviada por email. Resposta dele:

" genial, escreve muito bem, fiquei com vontade de ler mais e mais.
poderia terminar.
- Você tem olhos bonitos, não deveria se esconder atrás dos óculos.
- Prefiro homens que elogiam os óculos.
mas gostei do desfecho.
beijos"
 Acabei usando a frase no título do texto.
E o trauma, de tão grande, impediu a publicação até hoje. Hoje, junto com algumas resoluções de ano novo, decidi postar. E superar?  ;)                   

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