domingo, 31 de outubro de 2021

Sons do plantão




Toca ao longe, insistente. Um alarme. Para e toca, toca e para. As motos rosnam furiosas, escapamentos adulterados, os homens e seus brinquedos. Carros em excesso de velocidade, gente em excesso de velocidade. A janela aberta e um vento quente, o preço da gasolina esse absurdo,  é domingo e quase feriado, as bruxas estão soltas, eu não. Estou presa à beira da ciclovia, e pela janela olho as nuvens lá no alto, corrediças e gordas, embaixo vejo os veículos e seus motores, há muito ruído para um domingo, o alarme volta a soar, toca, toca. Daqui a pouco para. Uma sirene abafa o som com outro som, mais estridente, mais agudo, mais pungente. É sempre doloroso o som das sirenes. Ambulâncias, polícias, bombeiros. Não importa, é sempre dor. Diferente do alarme chato e irritante, que é só um dono distraído que esqueceu dos ouvidos alheios, as sirenes acionam outras coisas, o medo, a angústia, uma bomba, anunciam tragédias- onde não sei, já passaram, velozes, mas o alarme volta a gritar. E as motos adúlteras. E os carros. A pressa. O tempo aprisionado faz barulho demais, na tarde deste domingo azul.

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

O marido da Darlene




O fato ocorreu há um bom par de anos. Mais de dez. 

A festa já ia pela hora aquela, em que as moças trocam o salto pelo chinelo e o sapato do noivo se enche de dinheiros, para ajudar na lua de mel na serra. Em casamento de rico, antigamente, era tudo em dólar. Agora é tudo em cota, mas rico não viaja para a serra em lua de mel. É cota de resort em Cancún, é cota de cruzeiro na Grécia. Rico médio, né? Porque rico rico nem conhece a palavra cota.

Mas esse casamento era de pobre, pobre médio, que viaja para a serra para passar frio e chuva.

Eu falei para a Darlene que a ideia era horrível, ela disse, ah mas a lareira ah mas o vinho, a Darlene é dessas. Romântica.

E pelo jeito, a irmã também. A Damiany. Uma cópia melhorada da Darlene. A caçula das cinco filhas. Magrinha e peituda, como eu gosto. Era o casamento dela. Com o Ferdinando do Xis. O Ferdinando que, diziam, vendia droga lá no trailer. Eu e a Darlene éramos padrinhos. 

A Damiany gosta de filme americano. Todas as madrinhas estavam vestidas iguais, de rosa fraco. Rosa não favorece a Darlene, coitada. Ela lembrava um pirulito de morango, daqueles que se desgastam na primeira lambida. Os padrinhos estavam de fraque, igual ao noivo. Elegantes, confesso: eu ainda não tinha essa barriguinha de futebol. O vestido da Damiany era daqueles que parecem rabo de sereia, os seios empinados fugindo do decote, ela andava miudinho, tão bonitinha a Damiany de noiva, segurando o buquê de rosas amarelas, as unhas pontudas, aquela unha fazia um estrago que nem te conto. Casaram na igreja das Dores, a festa foi no salão paroquial. Ferdinando tinha cara de bandido, acho que era o bigodinho loiro, diziam que tinha engravidado a Damiany e mais uma outra, as duas ao mesmo tempo. Não juntas, no mesmo dia. Ao menos, acho que não. Escolheu a Damiany, bem fez ele. Bonita, gostosa, e mais situada que a irmã, se é que você me entende. Rebola que é uma delícia. Estou falando da dança, do samba, que sou um homem de família, o senhor me respeite. Como eu ia dizendo, a festa estava alta, os convidados também. Já tinha tocado Macarena e tudo. Todos se divertindo, quando a Damiany foi para o microfone.

Já falei que ela gosta de filme americano? Principalmente daqueles bem bestas, de amor, que terminam em casamento. 

Estava muito lindinha a moçoila, nem parecia que tinha embarrigado, a cintura fina, os seios, ah... já falei deles? O que posso fazer, eram hipnotizadores. São, ainda. Enormes e pontudos. Ganhei beliscão da Darlene, mais de uma vez, nos almoços de domingo.

Bom, a Damiany anunciou que cada padrinho poderia fazer um brinde aos noivos, se quisesse.

A música parou, alguns reclamaram. As crianças dormiam no colo das avós, as maquiagens borradas, aquele cheiro de flor morta e cerveja derramada, e a prima Carla sai do banheiro com o marido da tia Ana, pouco antes de acenderem as luzes. Eu vi, ninguém contou. Nunca me enganaram, aqueles dois. 

Cadê minha mulher? Perdi a Darlene de vista há horas. A Darlene, coitada. Coitada da Darlene. Deve estar bêbada, em algum canto, com alguma amiga de infância.

Dou um gole no uísque, para molhar a garganta. Peço a palavra.

" Do noivo, pouco conheço, portanto pouco tenho a falar. A não ser que não poderia ter feito escolha melhor. Literalmente, pelo que dizem, haha. A Damiany é a mulher dos sonhos de todo homem. Discreta e gostosa ao mesmo tempo, magrinha e peituda, o que é Darlene, tô dizendo alguma mentira, de onde tu surgiu mulher, deixa eu elogiar tua irmã, minha cunhada, família é tudo, não é, tia Ana, priminha, tudo em casa, e depois, ninguém rebola como a Damiany, haha. Não que o Ferdinando não tenha percebido, o cara não é bobo nem nada, fala aí mermão, tô mentindo, tu comeu a merenda antes da hora, tô sabendo, não me olha com essa cara, deixa eu fazer a homenagem, o que é Darlene, inferno...."

Minha fala foi interrompida por um estrondo, depois outro. Tiros. 

Levo a mão ao peito, deixo cair o microfone.

O marido da tia Ana está estendido no chão, com o braço sangrando. Correria e gritos, a festa termina com metade do povo no hospital, metade na delegacia. Ninguém morreu, mas da prima Carla ninguém mais soube. Tia Ana e o marido completaram bodas de pérola ano passado. Foi uma festa bonita, renovaram votos e tudo.

Quanto ao casório da Damiany, que a gente chama de faroeste nupcial, sabe como é, piada interna, bobagem, só não pude terminar meu discurso. A Darlene fala que fui salvo pelos tiros. Tem cabimento?

O Ferdinando é que não gosta de mim até hoje, mas juro que é  implicância. Afinal, o Junior nasceu loirinho de olho bem azul. 



Texto para a oficina de escrita, o personagem falastrão. 


quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Estatísticas

 


Estatísticas


Cá entre nós, quem ainda acredita em  príncipe encantado? Tá bem que certas redes sociais até parecem contos de fadas, todos lindos e felizes para sempre, mas você há de concordar comigo: a vida real de noventa e nove por cento das pessoas é uma merda. Mais, eu diria. Noventa e nove, vírgula nove. 

Eu tenho a sorte, ou o azar, de conhecer algumas das exceções. Mas não sou uma delas. Sou apenas a secretária de uma ONG que atende mulheres em situação de vulnerabilidade. Vítimas de violência doméstica. Então, eu sei do que estou falando, quando falo de merda. Você não faz ideia, mesmo que ache que sim. O que sai nos jornais é só a ponta do iceberg. Nosso dia a dia é ferrado, mano. Pesado pra cacete. 

Mas estou desviando do assunto. Vamos lá, o príncipe encantado. Eu nunca acreditei, "para sempre" sempre me pareceu vago demais, tempo demais, assustador demais. Quais as chances, me conta? Abaixo de zero, com certeza.

Hoje estou mais atrapalhada do que de costume. É a noite do jantar e desfile beneficente para arrecadar fundos para a criação da creche. Um projeto meu, de longa data. A maioria das meninas que passa pelo abrigo não tem família, nenhuma rede de apoio para deixar os filhos enquanto estudam ou trabalham. Mães solo, vítimas de todo tipo de abuso. Gente que nunca sonhou na vida. Só teve foi pesadelo, mesmo. 

A creche é para dar um futuro para elas, sabe.

Minha amiga deu um berro quando viu o nome do Vitinho no topo da lista dos patrocinadores. João Victor Cavalcanti de Oliveira Muller, um dos homens mais ricos- e bonitos do Brasil. Para ela, um príncipe. É como o chamam os colunistas, neste país metido a besta, pretensioso de passados e sonhos imperiais. Para mim, é o Vitinho, mesmo. 

Foi meu colega no ensino fundamental, antes de se mudar para a Alemanha com os pais. Ele me pediu em namoro na primeira série, não aceitei por vergonha, mas guardei durante anos um coelho de pelúcia e um anel de vidro que ele me deu. Voltou tem uns meses, nos reencontramos numa festa da turma e ficamos amigos de novo. Do jeito que dá para ser amiga de um cara desses, que nasceu com a bunda, e que bunda, virada para a lua. Ele vive na minha volta, mas não faz parte do meu mundo. 

O meu mundo não é fácil. Meu carro está sempre na oficina, ralo para pagar a faculdade, ralo pra caramba num trabalho que me consome toda a energia. Mas que também me situa, em comparação- não tenho do que me queixar. É tudo perspectiva. Tudo mesmo.

Então, de novo me perdi. Foco, Camila. Voltando:

O Vitinho e a Verônica são as exceções. Os zero ponto um por cento, menos até.  

A Verônica é a namorada dele, modelo internacional, já foi duas vezes capa da Vogue. Lindíssima, perfeita, sem filtros, é a atração principal do desfile, e uma chata de galochas. Cheia das manias, camarim com rosas brancas, toalhas brancas, vinho branco. Chegou de motorista, colar de brilhantes e o cachorrinho a tiracolo, um lulu branco chamado... Lulu.

- Camila, querida, quase não te reconheci.

Acostumada a me ver de jeans e camiseta, estou enfiada num vestido preto e longo, cabelos soltos, sem óculos. Não gosto da fantasia, mas a causa é justa. Vendemos todos os convites e as colunas sociais estão em peso noticiando o evento, ainda que o destaque seja para um possível noivado do casalzinho. Belos, ricos e famosos, etc. 

Os dois conversam encostados a um pilar, sérios e entretidos. Ele de smoking, ela de vermelho. 

O Lulu se meteu entre as pernas de uma senhora peituda, que está alimentando o cãozinho com pedaços de queijo brie. Quem traz cachorro para um jantar beneficente? Arranjo uma babá para o Lulu, antes que alguém pise num cocô em plena pista de dança. 

A Verônica sumiu. Está quase na hora de começar o desfile. João Victor, na mesa principal, brinca com o gelo do uísque. Desde que sentou, não tira os olhos de mim. Deve estar estranhando a minha elegância, também. Malditos saltos. Pergunto pela namorada, dá de ombros. 

- Terminamos. Tenho uma surpresa para você, Camila. Aliás, você está linda. 

- Depois, Vitinho. Depois falamos. Tenho que achar a Verônica. 

Encontro a modelo no meu escritório, no segundo andar. Está soluçando, debruçada sobre uma foto das meninas do abrigo. Quase todas têm menos de 20 anos e vestem a camiseta da ONG. Algumas seguram bebês de colo.

A maquiagem borrada, o rosto desfeito, e ela consegue ser bonita mesmo quando chora, a filha da mãe. Faço um carinho em seus ombros, um pouco compadecida, mas também impaciente e irritada. Tnham que terminar logo nesta noite?

- Verônica... não fica assim...

- Ah, Camila. O que vocês fazem aqui é maravilhoso, eu te admiro.

Tudo bem, obrigada, ótimo, mas vamos lá. Chega de choramingos. Está todo mundo esperando. Não tenho tempo de responder, ela murmura:

- Eu te odeio. Mas agora acho que sei.

- Sabe o quê, mulher do céu?

Levanta o queixo. Seus olhos faíscam.

- Sei porque ele se apaixonou por você. 


PS: Exercício confuso, para a oficina. O personagem sedutor. 

Conclusão da aula: para haver sedução, precisamos de tempo. Talvez não o tempo de um conto, algum tempo mais longo.

Mas tá valendo, sempre vale.

😉❤

sábado, 2 de outubro de 2021

Espelhinho é a mãe





A liberdade de não pertencer
Ou... como tem babaca nesse mundo:

Sábado pela manhã, pós feirinha, pré plantão, dia de primavera, céu azul, temperatura amena e uma bicicleta de cestinho, uma mulher pedalando não quer briga com ninguém. 
- Próxima aquisição tem que ser um espelhinho, né moça?
Barba grisalha, voz arrastada de portoalegrense, alá magro do bonfa, roupa coloridíssima de ciclista e um sorriso cínico desmascarado.
Peço desculpa por reflexo, sem pensar. Educação. Não tive culpa do que não aconteceu. Não aconteceu nada, apesar do homem achar por bem me ultrapassar numa curva da ciclovia, ali em frente ao Palácio da Polícia, bem onde um poste afunila o trajeto em via única, sem sequer buzinar. Passa tirando fininho, e me culpa. Ok.
Ele segue, veloz na sua bermuda acolchoada, voando talvez de encontro ao bando. E eu sigo no meu ritmo passeio, subitamente irritada pela advertência e ironia sem propósito, com vontade de engolir de volta o pedido de desculpas que escapou pela máscara, porque sim. Porque assim fomos acostumadas, a pedir desculpas sem ter culpa.
Respiro fundo, om, shanti, krishna, ave maria e outros mantras para não estragar a manhã bonita, chego na beira do rio. Vento contra, pouca gente, já passou. Deixa ir, a vida é boa sobre as duas rodas, sob o sol.
- Oi, te achei de novo. Não me leva a mal pelo comentário, tá? Mas que um espelho é uma boa, isso é. 
Seguro com força meu dedo do meio para não levantar do guidão, sem querer.
- Tanto quanto uma buzina e um pouco de noção, né moço?
Ele dá de ombros, e pedala forte, para longe. Já está no bando. 
Um bando de homens de roupas coloridas, bermudas acolchoadas e rodas grossas. Muito grossas e cheias de razão.