domingo, 25 de setembro de 2022

A mãe inglesa


Nasceu num setembro, 1943

outono ao norte primavera

nas bandas de cá onde

veio morar ainda menina

o nome bonito o nome difícil

os hábitos manias sanduíche

de batata frita pão com açúcar 

pepinos em conserva e aquele 

horroroso christmas pudding

o hábito de bater com o nó

dos dedos o barômetro 

na parede da sala de jantar a previsão 

sempre precisa se chuva se sol 

o bom dia acompanhado da temperatura 

...leva um casaquinho vai esfriar

e a pontualidade hereditária daquele

amor sem igual as coisas que a memória 

guarda são estranhas mas 

      o toque macio das mãos os dedos longos a ternura

          a voz rouca e o perfume ainda

depois de tantos anos

Isso de mãe desconhece o tempo 


E, ainda bem...

Happy birthday, mãezinha 


 

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Frestas


 
 


Sexta-feira, início da noite. A porta da loja está semicerrada. Pela fresta vejo que o Sérgio e o Antônio já chegaram. Subi a ladeira devagar, mesmo assim estou ofegante. Acendo um cigarro antes de entrar. O Chico, desde que parou, não gosta mais que se fume lá dentro. Fala que tem risco de incêndio, mas isso daí sempre teve, aquele monte de disco velho até o teto, essas casas antigas do centro tem a elétrica toda cagada e ele nunca se interessou em reformar, mesmo quando estava ganhando mais grana.

Não viram que cheguei, a TV já está ligada no campeonato de sinuca, mas ainda não começou. O Antônio está na Coca zero, descobriu um diabete na semana passada. Os outros dois, sentados nos caixotes, bebem cerveja.
São meus amigos de colégio. Os guris. A gente tinha uma banda de garagem com esse nome. Todos magros, roqueiros e cabeludos.
O Sérgio não tem mais cabelo nenhum, já o Chico está cada dia mais parecido com o John Lennon, se o John Lennon tivesse vivido o suficiente para passar dos 60 anos. Usa camiseta de banda, é o único que não engordou, nunca ganhou dinheiro, e ainda está casado com a mesma mulher.
Duas jovens de mãos dadas e blusas vermelhas vêm subindo a rua, enroladas numa bandeira colorida. Elas me pedem fogo, acendem um baseado:
- Quer um pega, tio?
Aceito. Perguntam da loja, Boca do disco. É boca de fumo, querem saber. Dou risada, um dia pode se dizer que foi. Agora é só uma loja velha, que vende vinil de capa ensebada.
- Meu vô tem um toca discos, ainda funciona. Será que a gente pode dar uma olhadinha nos discos?
A mais baixinha usa uma argola enorme no nariz, a franja no meio da testa, parece uma índia. É bonita. Não deve ter vinte anos, respondo que a loja está fechada. Que voltem outro dia, de dia.
Elas espiam pela fresta, o que vocês estão assistindo, tio?
- A final do mundial de snooker.
- Eu gosto de jogar bilhar, diz a magrela. Mas nunca assisti na televisão, nem sabia que passava. Minha mãe curte ver campeonato de golfe.
O Chico aparece na porta, e me chama para entrar. O jogo está começando.
Preciso de outro cigarro, já vou.
- Ah, esse vício...
Ele me alcança um latão. Daqui a pouco o Sérgio vem me fazer companhia, é só tomar mais uma e ele vira fumante do pior tipo, o se me dão.
As meninas vão embora, desaparecem na esquina sem dizer tchau. Geração estranha, essa.
Espio o jogo pela fresta.
Do outro lado da calçada, em frente ao bar, o Neco acende o fogo na churrasqueira de lata. O cheiro de carne gorda se mistura com o do meu cigarro, e as fumaças deixam a rua enevoada.
Faz um pouco de frio, aqui fora.


Texto oficina de escrita- correlato objetivo.

 


 

sábado, 10 de setembro de 2022

Ou a poesia




Às vezes eu guardo poemas

Por um verso ou dois eu me rendo
Uma palavra à toa uma rima boa
Sou dessas que gozam fácil

Preciso da pausa entre as estrofes o respiro o silêncio o intervalo
Daquilo que desliza lento sorrateiro calmo

Vai crescendo sem susto ou atropelo
Pegando jeito
Às vezes eu cometo poemas

Meu olhar desatento não sabe nadar em mar de tempestade
Tenho medo e coragem em proporções diversas

O desvio os presságios as marés as correntes o empuxo
As fases da lua e aqueles malditos coletes que só inflam depois

Às vezes eu perco poemas

Às vezes eu fico sem forças
E só teu abraço me reinicia.




domingo, 4 de setembro de 2022

Janelas



Ter uma janela por onde entra o dia.

O sol me beija a nuca, amenizando o ar frio do inverno que se despede ali adiante. Mais um plantão numa manhã de domingo.
O último ou o primeiro dia de uma semana sem intervalos, a falta que faz um pouco de silêncio e ócio, sinto saudade das palavras extraviadas nas horas produtivas que se acumulam feito a poeira do tempo, faz tempo que não escrevo, nem tento.
A cigarra não entende a formiga, e vice-versa.
Minha poesia está na pilha dos boletos a vencer, no mês de setembro que tem ainda os duzentos anos, uma revolução fracassada e o início da primavera. Em menos de trinta dias uma esperança que se renova, tenho fé na primeira volta, até o final do ano uma mudança que não era prevista, como não são previstas tantas e tão importantes mudanças.
E o ano que começou ontem, termina amanhã, no intervalo acho que fomos felizes.
Ao fim das contas, pelo inusitado da vida, só peço que não nos falte uma janela por onde o sol possa entrar, a casa das palavras de portas abertas, uma sacada com rede e um lugarzinho de paz que seja parecido com lar.
Lugar qualquer onde a saudade não tenha mais vez, apesar da imensa saudade que havemos de ter.