quarta-feira, 23 de julho de 2014

O Túnel do Tempo



A gente nunca sabe, na hora, o que vai virar lembrança, e o que vai se perder para sempre, e virar poeira na nossa história.
Com exceção de alguns momentos marcantes, ou muito importantes, a gente não presta quase atenção no dia a dia. Vai acontecendo, vai vivendo, vai indo e vai levando.
Só que de repente o tempo passa. Passam meses, passam anos. Quando a gente vê, lá se foram duas décadas.
E aí a gente já virou museu. Museu de memórias. 
E memória é uma coisa engraçada. Mais ainda quando compartilhada. 
Há poucos dias, um colega da faculdade teve a feliz ideia de reunir a antiga turma em um grupo de conversas pelo celular.
(A gente nunca mais tinha se encontrado.)
Desde então, acontece uma divertida viagem no tempo, onde se alternam o passado e o presente. 
Entre fotos antigas e novas, piadas e apelidos, tantas lembranças. 
Um baú de memorias, aberto e redescoberto. 
Um álbum de emoções. 
Muitas risadas, algumas lágrimas. 
Infinidade de recordações. 
As mais diversas, as mais esdrúxulas, as mais doces. Muitas hilárias. Quase todas boas. A maioria, carinhosa.
Porque memória tem disso. É amiga.
Um sem fim de descobertas, escavações e desencavadas.
Um perdeu o cabelo, outro engordou, a outra casou, separou, viajou, quem teve filho, quem não, quem já é vó. Quem esta só .Que cachorro é de quem, quem faz o que, onde e como, enfim. 
Todo mundo tão diferente, desde sempre. E todo mundo tão igual, como nunca.
Uma vida. Várias.
Secretas, divididas, divertidas, sofridas, partidas. Unidas. Reunidas.
Reencontro.
Tem sido bom viajar no tempo.  Mesmo que por mais um instante. Não importa.
De que é feito o dia, se não de uma sucessão de horas. Assim é a história, a soma destes instantes.
( E os mais inesperados são os que se transformam em lembrança.)
E aquela vez que… e o fulano ainda… e o cochilo na aula de anatomia? E...
Uma coisa puxa a outra, e a outra, e de repente faz -se a mágica: temos todos vinte anos de novo.
Somos todos jovens, na recordação. Somos crianças, no afeto repartido. Retomado.
Agora.
Porque a gente nunca soube, na hora. A gente nunca sabe, antes.
Nem tem como saber. Mas tudo bem.
É sempre depois, na memória. E é como deve ser.

Dani Altmayer

domingo, 20 de julho de 2014

Antes de Amanhecer, ou Antes Ainda


Acordo com ressaca do vinho que não tomei. Um pássaro canta ao longe. Pelas frestas da cortina vejo que brilha o sol, no céu de um azul quase indecente. Acabou a noite, foi-se a madrugada longa e fria. Começa o dia, e é urgente. A luz que entra, sem pedir licença dissipa os restos do sono. Eu o vejo, fugindo pela janela como um ladrão. Tento chamar, quero gritar, mas a garganta está rouca pelos cigarros que não fumei. A voz não sai. Esfrego os olhos secos, e borro o rosto com o rímel que não passei. O pássaro canta mais alto. Não é feio seu canto, um triste e agudo lamento.
Quero que se cale e que me deixe em paz. Quero voltar ao silêncio da noite, e antes, e antes ainda. Quero ouvir tua voz, e a minha, e antes ainda. Quero antes de nossas vozes, antes de nossa pergunta, do nosso por quê, antes até de tudo acontecer. 
Mas o pássaro não deixa. Não cala. O tempo, não para. Não volta, não volta, não volta...
O sol invade meu quarto, meu apartamento, minha vida. Brinca de esconde esconde com as sombras, desenha na parede, avisa. 
Hora de levantar. De abrir as cortinas. Continuar.
É domingo, do ano corrente, não antes. Nem ontem. 
Tenho os lábios inchados dos beijos que não te dei. E os olhos borrados, e a voz rouca, e a cabeça oca, numa doce ressaca de ti. Sorrio ao lembrar do que não fiz.
Não tenho a tua resposta. Sinto muito, nunca vou ter. Não tem importância. Esqueci da pergunta, quando amanheceu.
Talvez tenha sido apenas um sonho. Que não sonhei com você. 
Será que sonhei?

Dani Altmayer

sábado, 12 de julho de 2014

Carta para Isabella- Sobre o tempo

Isabella dos olhos de céu, do sorriso de mar, da teimosia do vento, da palavra cantada.

Hoje é dia de celebrar tua vinda. Tua vida.
Dois anos, já!
Bella, o tempo voa. Para gente crescida, voa mais ainda. Não, o tempo não tem asas.
Mas voa. Voa no esquecimento.
Porque a gente esquece, sabe, depois que cresce.
Esquece de catar conchinha, de dar pão para o patinho. De dar pão de queijo para o passarinho. 
Esquece de cantar musiquinha.
Destas coisas que fazem o tempo passar de mansinho. As coisas pequeninas.
A gente começa a ter medo de aranha. Dá para acreditar? Logo de aranha, tão bonitinha.
E passa a ter nojo de barata, e dor de cabeça, e outras coisas estranhas que só gente grande tem. 
Começa a te vergonha de dançar, de correr, de pular. Vergonha de usar fantasia, de sujar a roupa, e de ser feliz, por nada.
A gente não lembra mais das fadas. Coitadas.
E pior, a gente usa relógio. 
As asas do tempo são os relógios, Isabella. 
Eles é que fazem o tempo voar.
E a gente obedece. E esquece. Que tempo não se mede. Tempo se sente.
Às vezes dá vontade de parar o tempo. Ah, muitas vezes. Mas não dá.
O que dá, sim, é para fazer ele passar mais devagar. 
Com mais cuidado, e atenção, ele vai demorar. 
Hoje é teu aniversário, então é dia de fazer pedido. De ter os desejos atendidos.
Eu te desejo muitas coisas. Saúde, e paz, e amor sem fim.
E desejo ainda que você possa esquecer o relógio. Cortar as asas do teu tempo. Sempre que quiser, e precisar. 
Que a tua vida seja, desde já e para sempre, cheia de momentos presentes. Eternos e especiais.
Daqueles que tem gosto de chocolate, e cheiro de pipoca. Som de música bonita e recheio de algodão doce.
Plena de tudo aquilo que importa, de verdade.
Desejo que você pule, dance e cante pela estrada afora. Nunca sozinha.
Como agora. Sem vergonha, e sem medida. 
Como se  tivesse dois anos de idade.
Como se não houvesse amanhã. ( "E na verdade, não há"). 
Desejo que seja leve, e livre a tua vida. Abençoada, e longa.
Linda, como você. Bela.
Repleta de eternidades.
Hoje, e todos os dias.
Acima de tudo, desejo que as asas sejam sempre as suas. Não as do relógio.
E desejo que seja sempre você a voar. Não o tempo, mas você.
Você, Isabella. A menina dos olhos de céu, do sorriso de mar, da teimosia do vento, da palavra cantada...



Feliz aniversário, princesa!
Com amor. Com todo amor deste mundo.
   tia Dani




domingo, 6 de julho de 2014

A íncrivel Fase da Vida Quando o Mundo Gira ao Redor do Umbigo.

Ele não tem dezoito anos, ainda. Se tivesse, provavelmente estaria dirigindo seu próprio carro, dado pelos pais como presente de aniversário. Merecido. Alto, bonito, cabelo cuidadosamente desarrumado. Algumas espinhas na testa, uma barba mal aparada no queixo. Moletom de uma destas marcas de skate, bermudão, tênis Nike. Usa fones de ouvido e tem um olhar perdido, comum em quem saiu da cama, mas esqueceu de acordar.
Ele senta em um dos primeiros lugares do ônibus, logo depois da catraca. Às vezes, coloca os pés no assento à sua frente. A mochila preta, de uma marca de surf, ocupa o assento ao seu lado.
O ônibus, a esta hora da manhã, nunca vai vazio. Nem sempre está lotado, mas sempre está cheio.
E ele está sempre lá, ocupando dois lugares. Ele e sua mochila, preta. Entram idosos, senhoras, estudantes. E vão sentando onde dá. Até que, umas duas ou três paradas depois, o ônibus lota, finalmente. Alguém, então, pede a ele licença para ocupar o lugar. Em geral, alguém de mais idade. Em geral, uma mulher. Alguém sempre tem que pedir. Ele faz cara de enfado ( leia-se "ai que saco"), e puxa a mochila para o seu colo, com pouca vontade, liberando o assento. Desce dois pontos depois, na parada de um conhecido colégio particular da cidade. De segunda a sexta, bem cedo.

Observo ele sair do ônibus, e fico com uma dúvida.
Nestes tempos de tantos "selfies", seria o egoísmo uma prerrogativa adolescente?
Tomara. Torço para que sim. Porque adolescência demora, mas acaba. Para quase todos. Um dia, ela passa.

Dani Altmayer