quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Meus desejos para 2021


 A sorte de um ano tranquilo, com sabor de vacina aplicada, nós no embalo da vida, algum dinheiro pra dar garantia, a paz de um amor bom, de muitos amores ótimos, a doçura infinita dos amigos, muitos abraços apertados e sorrisos abertos, um mar de águas mais calmas, marinheiros de tempestade já somos, muita ciência e seriedade, e paciência, e disciplina, e cuidado, auto e hetero, tolerância e paciência, paciência de novo e sempre, porque a virada do calendário não vai virar mais nada, por decreto ou por milagre, o ano que nasce amanhã ainda vai nos exigir álcool em gel e máscara e muita empatia, e muita paciência, em doses altas e eficazes, que o nosso melhor remédio continue sendo a prevenção contra o vírus, a ignorância, a maldade, o descaso e o desamor.

A sorte de um ano bom, e se não for, a sorte de sermos muitos e estarmos vivos, e juntos, mais fortes.
Para 2021, desejo cura, paz, amor, saúde.
E muita paciência. 

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Vê se não vai demorar

 






Para não dizer que não falei das flores, em meio a tantas dores, eles pensam que a maré vai e nunca volta, olha a voz que nos resta, vem, vamos embora, esperar não é viver, quem sabe faz a hora, mas quem sabe o quê, se as rosas não falam, se as narrativas nos calam, confundem, nos batem com suas botas sujas de lama de medo, Terra, o que fizemos contigo, nossa casa, nós os errantes navegantes, predadores de teu glorioso esplendor, gente é outra alegria canta o poeta, ele está errado e certo, o homem é o lobo do homem, poesia é o que nos resta para passar para o outro lado, a travessia deste ano inesquecível, mascarado, marcado, que não termina por decreto do tempo, este senhor tão bonito, compositor de destinos, o tempo que ficou suspenso e não, viver e não ter a vergonha de não estar feliz, nós os eternos aprendizes de uma lição que nunca será ensinada, somos uma gota ou mistério profundo, sabe lá, sabemos quase nada e podemos tão pouco, sozinhos, juntos podemos tanto, não tudo, farol na escuridão,  lanterna dos afogados, há uma luz no fim do túnel, porque a vida é curta e a noite pode ainda ser longa, mas sempre haverá um nascer do sol, enquanto houver sopro. Enquanto houver sol, haverá de existir um caminho. Basta poder se ajudar.



Não é verdade que não aprendemos nada, não.
A gente este ano aprendeu a fazer pão, a lavar a mão, a ser doação.
A gente aprendeu a parar e ficar por dentro, a buscar novas formas de encontro, a ser mais atento. Mais alento.

Foi um ano desafiador, e eu agradeço a todos que estiveram comigo neste 2020.
Deixo aqui minha homenagem e minha gratidão especial para os meus amigos e queridos colegas que trabalham na área da saúde, todos sem distinção. Vocês são mais que heróis, são super.
Só quem estava ali, dia após dia, sabe.
Obrigada por, mesmo cansados, não desistirem nunca.
Que venha um bom ano, um ano melhor.
Para toda a humanidade.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Alinhamentos e reencontros


 

Então é Natal. Ou quase. Na maior praia do mundo eu escrevo na areia palavras soltas, desejos desenhados com os dedos do pé:
Paz, cura, saúde, amor.
À tarde assisto na casa do pai ao documentário AmarElo, do maravilhoso Emicida, e ele me ensina e me comove, ele fala de esperança. Que tudo, tudo, tudo que nós tem é nós.
Nós e nossos laços de afetos, frouxos ou apertados na garganta deste ano insano, histórico, que desfez tantos planos, que nos levou tanto e tantos, que escondeu os sorrisos sob as máscaras, que desvelou tanta gente, um ano de medo e cansaço, de incansável trabalho, de impensáveis angústias e saudosas ausências. Um ano de rompimentos, e eu queria muito poder dizer, de aprendizados, mas eu ainda não sei o que vai ficar depois de tudo.
Só sei que é urgente o amor. Alguma (r)evolução. Que é tudo para ontem.
E que a chama da esperança precisa ser acesa a cada dia, de um jeito ou outro.
Chegamos vivos até aqui, e isso não é pouca coisa.
A vista da Lagoa dos Patos me faz chorar. Rio Grande me põe comovida feito o diabo. Amo o Cassino e até seus ventos e o frio estranho das manhãs.
Abraço o pai depois de dois testes negativos e uma breve quarentena. Abraço meu pai pela primeira vez em 2020. Ao fim de 2020. E sou imensamente grata.
Tudo que nós tem é nós. É isso que mais importa.
É quase Natal, e meu desejo tem 4 palavras: paz, saúde, amor, cura.
Cura individual e coletiva.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

O escritório da casa velha

 


O escritório da casa velha

O abajur sempre aceso o cheiro de madeira e cigarro a escrivaninha escura de mogno o carpete puído
as estantes até o teto a barsa laranja a coleção de revistas geográficas os livros proibidos nas prateleiras bem de cima as gavetas repletas de cadernetas e segredos os dedos rápidos da mãe na máquina de escrever o atlas de medicina do pai aqueles olhos vermelhos aqueles corpos estranhos os enfeites as tapeçarias mexicanas um berimbau um cachimbo o cinzeiro de pedra as baganas a coleção de pesos o abridor de cartas os envelopes rasgados a nossa senhora em madeira a bíblia aberta em papel de seda aquelas gravuras bonitas as canetas douradas um globo onde habitavam dinossauros e caravelas aventuras naquela ilha perdida era eu a descobrir a soma das letras e um mundo inteiro que só cabia ali.

sábado, 12 de dezembro de 2020

Luto






Sete horas da manhã e o suor escorrendo na nuca, touca, avental, máscara, óculos, luva, álcool, mais um plantão.

Porto Alegre quarenta graus, faz dezembro, já vai ao meio, findando este ano estranho de números redondos, de números indecentes, cento e oitenta mil e contando. Cento e oitenta mil mesas brasileiras onde vai estar faltando alguém e a saudade tanta está doendo em si.

Os números assim postos, estratosféricos, gráficos que sobem, descem sem convicção, sobem novamente, e o cansaço de fim do ano, tudo trocado de lugar, coração e corpo e descrença, tudo posto junto e ao contrário, e mais a falta que um bom norte nos faz, todo o desenho aponta o desastre, porque quando eu não te humanizo eu faço o oposto.

Quanto tudo é numeral, eu que detesto matemática, e não sei fazer a conta, eu deixo de te enxergar. Em respeito aos milhões, milhares, centenas, mas principalmente em respeito a cada unidade, a cada indivíduo, a cada amor de alguém que perdeu a vida, a saúde, a sanidade, um amigo, uma família, a quem ficou sem rumo e sem chão nesse terrível 2020, deixo meu sentimento, meu profundo pesar, um abraço apertado.

Tua dor é tua. Minha. Minha dor é tua. 

Seguimos. 

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Serendipidade


 

Uma vez em uma vida acontece
ele chega fazendo ninho sem cerimônia ele
se enfia entre os lençóis
edredom de plumas que cobre
acolhe sem pesar
os avessos cotidianos

travesseiro de conversas perfumadas
de soslaio olhares de sol pela fresta da janela em dias de chuva
entre vivas e gozos e poemas e lágrimas
sem lástimas sem sonhos recortes
ilusórios retalhos sem borda
colcha da realidade fugidia

em algodão de linhos envolta por brumas e lavandas
a lenta descoberta do prazer e a dor
de se estar sempre
nua



domingo, 6 de dezembro de 2020

Dezembrite

 



Dezembrite (na pandemia)

A tarde se esvai no cinza deste dia
feito a fumaça distante
numa chaminé imaginária

é aniversário de um amor ao longe

eu busco adjetivos que definam e não traiam e não digam
mas toda palavra é asa e corrente
limita livra acoberta uma outra coisa que não cabe

tem alguém cantando em algum lugar não aqui
aqui toda festa foi cancelada e o vento corta o silêncio triste dezembro
de um ano que também se esvai

um ano que não vai terminar
neste exato instante
só os pássaros sabem cantar a pungente urgência

só eu sei
que todos os afetos adormeceram
e também as melodias

mas chove agora

Daniella Altmayer

(o poema que nasce da tentativa do poema)

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Mirtilo





Um punhado enfio na boca

enrolo na língua mastigo
pequenas explosões azuis

gozo azedo em gostos sutis
agridoce como tudo que há
como
tudo

que amo

sábado, 28 de novembro de 2020

Cassino




Desejo o mar como a ti 

imensamente
quero andar na vastidão da praia
chão duro colchão da memória
morada de ventos e conchas
amanhecer de gaivotas e redes
e peixes a prata do horizonte a cor exata dos teus cabelos
as ondas nem sempre gentis o toque o remanso de tantos antes uma bicicleta um cachorro sem dono andarilhos

o infinito desenha um nome castelo de areia que o oceano desmancha
cabelos soltos e sonhos ao sabor vontades solares salgadas de azul
corpos famintos agora outros
acordam quereres suados
enquanto
na sua paz mais bonita
faz silêncio

e os enormes navios riscam
os molhes da barra


domingo, 22 de novembro de 2020

Pão com manteiga

 


Amanhece

O cheiro do café passado se confunde com o cheiro de alguns cafés passados 

Sinto saudade de um cheesecake de frutas vermelhas

Um abraço jogado entre as mesas na calçada
Pela janela o sol acordando uma brisa indiscreta
Sinto falta das promessas não feitas
Das conversas ao pé do ouvido
Dos olhares ávidos de sorrisos lentos
Dos anseios alheios às avenidas
A manhã tem as nuvens exatas as mesmas
Que vão entardecer
E o céu é o mesmo céu da zona sul
Sorvo devagar o café sem açúcar
Nas memórias há sempre um sabor 

sábado, 21 de novembro de 2020

Minha culpa


na memória o ferro e o tronco
a marca ancestral do chicote

seja no teu lombo negro
seja na minha branquitude

maculada para sempre por
teu sangue manchando

minhas mãos



Sinto muito.
Daniela Altmayer

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Aguaceiro

 


Nenhuma folha move o silêncio de vento só a brisa do suspiro o céu pesa chumbo suor calor do diabo quarenta graus a saia colada nas coxas a marca do verão grudada entre as pernas teu corpo dormente a tormenta do meu prenúncio de vendaval redemoinho de pétalas dentes a língua saliva salgada agonia desaba a chuva gotas grossas represada tempestade desassossega a terra seca sedenta tumulto profano temporal desagua com fúria inunda o incêndio apaziguando.

Sombras

 Acordo com um grito trincado entre os dentes

foi só um sonho ainda bem quase sempre ainda bem
porque os sonhos desses dias não são tranquilos
como não são os dias desses tempos estranhos
em que o medo e a raiva ficam retidos na placa
que impede o ranger das mandíbulas
cansadas de mastigar tanta incerteza mal passada

o rosto no espelho que envelhece e eu não reconheço
sem a máscara que agora é hábito neste lugar
onde habito por ora nas horas escuras das noites
madrugadas de silêncios intramuros dormentes
olhos sem rímel boca sem batom
sorriso borrado entre os véus de algodão
uma tristeza envolta à volta nos espreita
feito a gata embaixo da cama querendo brincar
o que ainda me salva é isso e aquela porta secreta
que fecho em algumas tardes de chuva
e também de sol




segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Finados

 


Todas as minhas escolhas me trouxeram até este lugar de solidão, e que eu não me engane, sempre foram escolhas. Algumas sem consciência plena, não menos escolhas por isso.

Minhas leituras, escritas, pedaladas ( ô saudade) se alimentam de silêncio e quietude, minha profissão exige fala e escuta, interação plena e atenção. 

Eu achava ter o equilíbrio perfeito entre estar no mundo e ter um refúgio.
Mas este ano roubou minha solidão, ou seria minha solitude? Este ano roubou minha solitude e a trocou por solidão.
Todos os bons encontros foram interditados.
Não vejo meu pai há meses, não o abraço há quase um ano. Minha menina predileta não vem para o Natal. Minhas amigas, eu as reconheço através de uma tela.
Atravesso os dias através de uma tela.
São tantas as mazelas deste annus horribilis, que é impossível contar e olha que tenho sorte.
Hoje é dia de finados, sinto alguns sintomas de gripe. Mas sei que talvez não seja. O mais provável é que o corpo pese pelo cansaço, que a garganta arranhe pelos risos perdidos e lágrimas contidas, pelas vidas arrancadas e pela nossa pátria, assim subtraída.
São muitas as razões para ser grata, em perspectiva. E eu não sou ingrata.
Mas hoje eu me permito o luxo do luto.
Em respeito à morte que nos ronda, à perda de tantos amores, a todos os abraços que não foram dados: meu choro contém infinitas saudades.

sábado, 31 de outubro de 2020

Dia das bruxas






As mulheres evocam poderes
também elas sabem que bruxas
não existem só o medo
que eles nos têm 

na véspera de todos os santos
asas de morcego estarão proibidas
por motivos óbvios qualquer gozo
também

acendo uma vela porque não creio
nas poções mágicas mentiras líquidas incensos falsos
que eles insistem em nos tomar

dia dois
enterraremos apenas os mortos
os vivos já morreram faz tempo
nesta terra chamada pátria

Brasil

domingo, 25 de outubro de 2020

Há uma angústia dançando no ar








Todos os dias à tal hora em ponto

silenciosa ela me abraça por trás
segura nas mãos meus seios
me aperta até eu quase sufocar

o nó na garganta arranha a tinta
os azulejos os olhos marejam
com saudades dum certo mar
o sal das lágrimas que engulo
encheria um pote até aqui de mágoa

qualquer desatenção é um nome qualquer destes tempos

quando o cansaço dos dias é maior
quando o som surdo vence a barreira
dos silêncios
quando desmaiam as esperanças enfim

são estas vozes que restam as músicas que se confundem e
é sempre este tolo coração à espera
de uma gota d'água que
não vem porque

aprendi a me virar sozinha
e meu grito ecoa
nas fronhas do meu travesseiro

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Lista


 

         Lista

Mudar a roupa da alma
trocar a calma da cama
regar as flores de plástico
roubar do poeta um verso
dobrar o lençol de elástico
driblar o eterno cansaço
fazer faxina nas dores
limpar os cantos escusos
espanar a poeira das fotos
dia primeiro soprar a canela
temperar o peito de frango
salgar a sede na saliva
vigiar as vagens na panela
salpicar no azeite de oliva
ferver tudo em fogo manso
esquecer de fechar as janelas
deixar entreaberta a porta
da casa recém descoberta
receber os vivos os ventos
pássaros passos notícias
as cartas carícias escritas
dos amores sobreviventes
às intempéries e ao tempo.





















domingo, 18 de outubro de 2020

Sonhando acordada

 Outra tarde muito azul

é feriado na cidade é
findo o longo inverno
estação dos silêncios

ao longe uma criança ri
os pássaros cantam o dia
o vento toca uma harpa
no alumínio das cortinas
da sala

são os sons da primavera
crianças, pássaros, ventos
as noites já tardam e o sol
se põe em tintas mais fortes
definitivas

logo será verão e seus cheiros
seus sabores seus devaneios
o verão sabe a sal e areia
maresias e suores secretos
o mar se quebrando lento
o tempo ambíguo à beira

os corpos besuntados de óleo
de coco águas sorvetes
a preguiça quentinha na rede
a tua sombra escaldante
colada lambuzada
na minha








Dezoito de outubro


 Eu já contei uma história de amor sobre ela, há uns anos. Fazia tempo que não aparecia, olho o prontuário. Teve um câncer e um infarto no ano passado. É diabética com um controle ruim. Vejo que está tomando remédio para depressão. 

Entra na sala abatida, bem mais magra. Fala do filho, de um neto a caminho, mas conta sem brilho. Fala de uma dor na coluna. Tem a desesperança estampada no olhar, nos ombros caídos. É uma mulher bonita. A gente conversa por um tempo, faço o encaminhamento para a fisioterapia.
Uma semana depois, ela volta. Quer tirar uma dúvida, porque confia muito em mim.(sic)
No fim da consulta, ela me diz, com lágrimas nos olhos:
- Sabe que na semana passada saí chorando daqui? De felicidade, doutora, de te encontrar de novo, de conversar contigo. Tu me faz muito bem.
A fala dela me toca e me deixa contente comigo mesma.
Porque para mim, antes de tudo, a medicina é sobre isso.
É escuta e é amparo.
"Curar algumas vezes, aliviar quase sempre, consolar sempre."

Num ano de tantos desafios, meus parabéns a todos os que dividem comigo o juramento de Hipócrates.
Que possamos ser não heróis, mas humanos a serviço de seres humanos.
Que sejamos o melhor que podemos ser.
Obrigada!

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

O cata-vento



 




As paredes mofadas do prédio antigo

destes com floreiras no parapeito
onde crescem desordenadas folhagens
onde alguém plantou um cata-vento
destes que se vendem nos parques
junto com algodão doce e pipoca
destes de papel laminado
o catavento

é azul como aquelas flores desbotadas
de plástico que enfeiam as lápides
mas o brinquedo enterrado
num canteiro está vivo
é a insistência

que tem a infância de retornar
nas coisas desimportantes
já quase fora de moda
como bambolês petecas ioiôs
bilboquês bonecas de pano
e maçãs
do amor





sábado, 10 de outubro de 2020

Despedidas


 



Ele me disse obrigado por tudo, amor.
Veio para me dar um abraço, está de partida.
Eu, que não sou o amor dele há tantos anos, ele que não é meu amor há muito tempo.
Mas um dia fomos o amor um do outro. Ou pensamos que éramos.
Deste amor quase por engano nasceu um AMOR maior.
E é por ele que compartilhamos, abraçamos e entrelaçamos nossas vidas para sempre.
Por este AMOR maiúsculo que torna tudo o mais pequeno, sobrevive a palavra com que agora ele se despede, e fico aqui, neste lugar, ao mesmo tempo feliz e triste.
Porque o fim foi lá atrás, há muitos anos. Mas nunca termina.
Porque amar é verbo, e pode ser conjugado de tantos jeitos, e amor é mesmo o que fica, depois de tudo.
Transformação.
No meio de tantos erros, alguma coisa a gente fez muito certo.


terça-feira, 6 de outubro de 2020

Em Porto Alegre




 Ipês floridos roxos amarelos

 pródomos coloridos

da invencível primavera 

são prefácio perfeito
indolente preâmbulo
à estação de ventos e flores
aromas de pólen e rinites
mas este ano

entre pétalas sem páginas
nem versos
nem letras
nem tendas
nem lama
nas enxurradas de novembro
as preliminares de outubro
esta chuva patética
este ano

não haverá feira na praça
apenas

os jacarandás silentes
os ambulantes
os jogadores de gamão e
as pombas prenhas
de sempre

domingo, 4 de outubro de 2020

Sem título

 


procuro sempre nos lugares errados
penso nas cem formas de terminar um amor penso em três
nenhuma parece mais triste ou melhor
comparo o amor a balões
-o poema é onde as metáforas moram
e o amor é o álibi da poesia-
às vezes, o fim do amor é um balão que escapa lento até se perder no azul
ou estoura num susto ruidoso
espantando a gata
noutras tantas quiçá maioria
o fim é somente o balão
esquecido da festa
que murcha aos poucos
por trás da poltrona preferida

ninguém vê
nem sente falta

o amor definha sozinho na distração

sábado, 3 de outubro de 2020

Até o próximo


Até o próximo

Há sempre uma dor embutida
em todo prazer

acho que foi tu quem primeiro
me ensinou sobre despedidas
chego a teu fim relutante e faminta

ávida de pertencimento meus olhos
te devoram os dedos percorrem
teu corpo sublinhando
as páginas invadindo
teu mundo descortinando
capítulos

encerro esta história comovida
à última letra resto
sozinha e perplexa
por um tempo ainda tua voz
ecoando na minha

nunca fui de alguém como tua
jamais serás de ninguém, como meu
mas, como dizem por aí ...
só um livro cura o outro

 

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Manual de direção para homens sem noção

 



 
Manual de direção para homens sem noção

“Porque a gente só se interessa por aquilo que nos interessa.”
  Pedro Gonzaga

Você não é o primeiro
talvez não seja o último
do pacote, então.

Ela não é mais só
um rostinho bonito.
Nem tampouco somente
é bunda e seios e anseios.

Não pense, senhor
que ela não pensa,
experimenta: converse.
Não apenas fale
ouça, seu moço-
mas não atropele.

Para. Escuta e olha.
Espera o sinal verde,
não avança. Pergunta.
Na dúvida, não.

Veja bem, meu bem:
século vinteum
-nem todos-
eu sei
e nem toda

Mulher
está em modos
de espera.







segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Sete

 



Sento para meditar e ela se acomoda entre as
minhas pernas, ronronando. O som suave me acalma, lembra um mantra de paz, ela dorme e eu divago. Não sei silenciar a mente- raramente. Muitos pensamentos, lista de coisas para fazer, mesmo neste feriado embuste.
Alguém varre a calçada lá fora, ouço o som seco da vassoura no chão molhado. A chuva deu um tempo.
Ontem à noite um pássaro cantava. Onze horas e aquele canto solitário, pungente. Fazia silêncio de outro jeito, não lembro de ouvir pássaros, à noite.
Talvez eles tenham começado a confundir os relógios, como nós, no meio desta infindável pandemia.
Estou na metade do livro da Ferrante, é, como sempre, forte. Ela me captura todas as vezes. E me incomoda bastante.
Esta madrugada sonhei com a minha mãe e a casa do Cassino, depois sonhei com a Inglaterra, meu pai, a não mais tão pequena Isabella, meus irmãos. Minhas saudades todas me visitaram no sonho. Foi bom, mas agora há um manto cinza de melancolia, como o deste céu monocórdico sem nuvem ou nuance.
Preciso levantar, pegar o note, escrever um poema irônico- ideias, onde se escondem, do que se alimentam- como sobrevivem?
Mas a gata se espreguiça e volta a dormir, quem tem, sabe: quando um gato está no seu colo, é proibido se mexer até alguma ordem em contrário.
Estou presa, neste instante.


terça-feira, 1 de setembro de 2020

Lagartas


 

Folhas de amora
na xícara de chá
mulher madura,
bicho de seda

em firmes crisálidas
a lenta tecitura
toque macio suave
incansável delicadeza

o tempo são larvas
que tecem
casulos que fiam
os finos fios
da vida,

tecido feminino













domingo, 30 de agosto de 2020

Quando setembro vier


 


Setembro se avizinha a passos largos, aquele mês tão longe lá em março está batendo à porta, logo é primavera e os ipês estão floridos em Porto Alegre.

O domingo de chuva roubou o sol e o calorzinho do sábado, hoje é um daqueles dias bons de não fazer nada, mas ontem saí para caminhar pelo bairro, precisava arejar meus cansaços, passear as dores que vem se acumulando nos ombros, desde lá, daquele março.

O cheiro inconfundível de jasmim em flor me fez parar para sorver o perfume que todo ano me lembra, este mês seria aniversário dela. Minha mãe libriana, cheirosa. Fotografo o arbusto, presa no instante, guiada pelas memórias olfativas afetivas.

Uma outra mãe está no meu pensamento, desde sexta ecoa dentro de mim o desespero da sua voz, me dizendo as (quase) piores notícias que se pode ouvir em meio à pandemia: o tubo, o tubo, o tubo. No filho.

Esta mãe leonina como eu, leoa. Como todas nós.

Ela, com quem convivo desde lá em março, que me chama de doutora Barbie, que luta comigo e outros tantos as lutas diárias de cuidados, medos, angústias e (des)informações que modificaram nossas rotinas de trabalho e de vida.

Nem posso, ou só posso mesmo, imaginar. O tamanho desta dor, desta agonia.

Só posso desejar que ninguém esqueça do que não dá para esquecer: não passou, não passou, não passou. Se cuidem, e cuidem dos outros. Porque a gente nunca sabe quando, ou como, quão grave vai ser.

O filho desta mãe tem 28 anos.

Que logo a primavera suceda o inverno, com seus dias mais longos e perfumados. Que venha a vacina, e com ela os abraços. Que, muito em breve, a mãe que agora sofre tanto, possa nos dar as boas-novas e ter seu filho de novo, nos braços.

Ela e todos nós, que estamos, desde março, sobrevivendo. Tão precisados e carentes de bons ares, vento na cara, sorrisos visíveis e boas notícias.




terça-feira, 25 de agosto de 2020

Imigrantes

 

         Imigrantes

Atravesso e aporto
teu corpo
em pequenos
precários botes

alhures a terra
desejada esta
terra infértil

adejante promessa
de ninguém
para ninguéns

terra desprometida
onde serei sempre
outra







domingo, 23 de agosto de 2020

Sobre domingos


 

Canta o pássaro como
noutros dias em que não ouves
o sol tem cheiro de café
sem pressa

as manhãs se demoram
nas leituras preguiçosas
as tardes se evaporam
em poesias e bolos formigueiro

a música do vizinho é sempre
aquela
chega a noite e a gata acorda
as roupas estão secas no varal

os que não gostam
são os mesmos
que não suportam

solidões e silêncios





sábado, 22 de agosto de 2020

Uma fotografia

 

         Anos 1980

A mulher agora se espanta
da menina de ombreiras

séria em seus dezesseis
o corte de cabelos a moda
bufante neon

as bochechas de lua
os dentes apertados
nada é feliz nesta foto

a não ser, talvez,
lá no fundo
a menina

na mulher que
em linhas mais finas,
sobreviveu



terça-feira, 18 de agosto de 2020

Vinte anos

 Ele não gosta deste dia, que há 20 anos é o meu dia preferido.

Posso entender, porque eu também sou avessa a comemorar aniversário, talvez seja genético ou pode ser culpa minha, já que a culpa é sempre da mãe.
Mas o fato é que, clichês à parte, o dia em que ele nasceu foi o dia em que eu nasci. Não só como mãe, mas como uma pessoa inteira, complexa, alguém capaz de amar além de qualquer limite, apesar de todas as minhas muitas limitações.
Hoje a gente se despede da nossa adolescência, vão-se os teens, estamos entrando na maravilhosa casa dos vinte, ele na vida, eu como aprendiz deste que foi, é, e sempre será, meu melhor professor.
Tenho muito orgulho do menino de olhos azuis, tão bonito, que cresceu comigo e apesar de mim, que tem um coração enorme, valores sólidos, uma inteligência emocional imbatível.
Eu nem ia escrever nada, só o poema. Mas, como ele mesmo disse outro dia, acho que duas décadas merecem um textão.
Então, vai mais um para a conta dos muitos que tenho escrito ao longo destes anos.
Para ele, que tem sido um baita parceiro de pandemia, com todas as nossas chatices, companheiro de séries, de indignação, de opiniões políticas e sociais, agora também de livros (para orgulho da mamãe).
Para ele que é forte, querido e resiliente de fazer inveja, desejo muita saúde, muito amor, muitas viagens e bons amigos, muito esporte, muitas alegrias, e que ele saiba sempre, como soube até agora, ser a melhor versão de si mesmo.
Sou grata pela tua vida, filho. Sem grandes comemorações, mas vamos celebrar, sim.
Feliz vinte anos!
Te amo para sempre.

Um menino
disse o médico
naquele tempo
as paredes
do quarto
as roupas
os olhos

vinte anos já
um homem
de barba
o susto mas
aqueles olhos
os mesmos
onde habita
ainda

pequenino
e azul
um menino

como só as mães podem ver